A História em seu estado puro estava no lugar de honra do lançamento da campanha de Lula
A História tem cheiro. Tem cor. Tem rima. Tem sentido. Tem razão.
Nasci há quase 65 anos. Com seis anos, vi meu pai, que jamais havia desempenhado uma tarefa doméstica, chegar com provisões que, na cabeça dele, não deixariam morrer de fome a mulher e os cinco filhos durante o golpe militar que se prenunciava.
Era março de 1964. Carlos Lacerda ladrava como um cão. Os militares conspiravam. E eu senti, pela primeira vez, o cheiro de História no ar. No dia seguinte o golpe era oficializado. O Brasil caía no escuro. Foram 21 anos até se acender a luz.
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Lembro de depois ter ouvido, intrigada, a história em linha direta. Era 1973. O general Ernesto Geisel, o duro, era o candidato dos militares a presidente da ditadura que seria referendado pelo Colégio Eleitoral, no ano seguinte, e viria com a promessa de fazer uma abertura “lenta, gradual e segura”. Ouvi a conversa de meu irmão com um ex-guerrilheiro que havia sido preso e condenado à morte, acusado de matar uma criança numa “expropriação” de um banco, mas foi salvo pelo pai da vítima, que provou que o tiro partira da polícia.
Recém-saído da prisão, desfilava informações trazidas do cárcere e concluía que Geisel poderia ser a porta de saída daqueles tempos sombrios. Achei que ele tinha uma crença excessiva e injustificada num homem que, além de general, era duro, inflexível – era esta a sua imagem filmada, fotografada. Seu rosto era crispado, era possível antever a raiva na boca sem sorriso e nos olhos sem brilho. Mas em momentos de ruptura, na ausência dos personagens certos, talvez prevaleça apenas o rumo inexorável da História.
Mais tarde, pesquisando sobre a Guerrilha do Araguaia com a minha amiga e companheira de missões impossíveis, Paula Simas (temos gravações várias sobre o tema), chegamos à conclusão de que ele era duro mesmo. Ao longo de nossas pesquisas, não sobraria em nós nenhuma sombra de dúvida de que Geisel era parte de um projeto militar (como Bolsonaro é hoje parte de um projeto de golpe militar), jamais alguém que, dentro da corporação, se opusesse ao regime ditatorial.
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Geisel não impôs aos militares a “democracia lenta, gradual e segura”. Era apenas parte de um projeto gestado lá dentro. Essa abertura concedida tinha um pressuposto: a eliminação física da luta armada. O ministro do Exército de Médici, Orlando Geisel, irmão de Ernesto, começou a limpeza um ano antes de sua posse, em 1973. De 1974 até o fim da ditadura, mais 89 opositores políticos morreriam ou simplesmente desapareceriam do mapa. Política de extermínio.
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O serviço sujo foi feito pela geração de saídos das academias militares naquela década, altamente treinados para odiar a esquerda e para eliminar a guerrilha urbana e rural. Posteriormente os exterminadores de oposição encurralaram a esquerda não-armada – a controvérsia histórica é se, para isso, tiveram o aval de seus chefes.
O jornalista Wladimir Herzog foi morto por essa turma. Ele nunca pegara em armas. Nem o PCB, do qual fazia parte. Em tempo: a geração treinada para matar comunistas está hoje no poder. Ocupa todos os postos de importância do governo Bolsonaro. E ameaça a Justiça Eleitoral.
A história do companheiro mineiro ao qual me referi alguns parágrafos atrás, e que tinha esperanças em Geisel, pode não ter me convencido, mas de alguma forma entendi, a partir do que ele contava, que o mecanismo da História havia sido acionado. Com 20 anos, me formei jornalista. Pouco tempo depois fui trabalhar em Brasília. Era lá que queria estar quando a ditadura se desfizesse no ar. O general João Figueiredo seria o último presidente militar, pensava, porque a História é inexorável.
O cheiro da História estava no ar quando assisti, aos prantos, a rejeição da emenda Dante de Oliveira, que definia eleições diretas para a sucessão do general Figueiredo, aquele que só gostava dos cavalos e queria ser esquecido. Prevalecia uma ideia maluca de que jornalista, a bem de algo definido como imparcialidade, deveria fingir que não se importava se vivíamos sob uma ditadura ou uma democracia.
O importante era não ter lado – embora o jornal pudesse ter (ou vender) o seu. Eu e vários jornalistas que fomos tomar uma cerveja depois da derrota com os olhos vermelhos e os corações sombrios tínhamos dúvidas disso. Alguns continuaram questionando. Outros não.
A História, todavia, não acabaria ali. Ela é rainha, suprema, incontestável. Naquele momento, pelo menos para mim, seu cheiro deixou marcas no ar quando um deputado do PDS, ex-Arena, teoricamente partido do governo militar, contou uma história fantástica. Ele estava em pé na entrada do gabinete de um senador do seu partido, em incontido êxtase. A uma simples pergunta, o parlamentar de primeiro mandato desfilou um plano detalhado para derrotar o regime militar no Colégio Eleitoral, que se baseava num único e inconteste trunfo: uma dissidência de 36 parlamentares que votaria contra o candidato do governo, Paulo Maluf. Era número suficiente para eleger Tancredo Neves, disse o deputado. Tancredo sequer era candidato naquelas alturas dos acontecimentos.
2002 foi mais um ano em que a História se fez, plena, sem subterfúgios. Nunca houve uma subversão tão completa da visão de uma elite ignorante e atrasada. Lula era a própria História que se posicionara na direção oposta do vento: um operário conquistara o coração do país. De repente, a política passara a ter alma. E a alma tinha compromisso. E o compromisso com o passivo social que o Brasil acumulara ao todo tempo da Colônia, Império e República pousaram sobre o ombro de um nordestino de origem, favelado, forjado na fome e produto do descaso do Estado. Lula era a História.
Lula continuaria História em 2005. No meio do chamado Escândalo do Mensalão, quando toda a imprensa – e toda a “generosa” elite brasileira – dizia que o processo que envolvia dirigentes do PT no Supremo Tribunal Federal (STF) era o fim de Lula, percebi que a História profunda do país era outra.
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O presidente-operário entendia tanto de fome que percebeu a extensão que poderia ter um projeto social. O Brasil era tão, mas tão pobre que menos de três anos de programas de transferência de renda e de inclusão social mudaram a cara dos grotões de miséria. Não foi à toa que, enquanto o STF, sob a batuta do inesquecível (no mal sentido) ministro Joaquim Barbosa, levava o primeiro caso coletivo de lawfare da chamada Nova República, numa guerra propagandística amplificada pela mídia tradicional, a popularidade de Lula, indiferente, cresceria na mesma proporção que os ataques a ele junto à população mais pobre do País.
O frágil processo do chamado Mensalão, uma das peças jurídicas mais intencionalmente equivocadas (depois da Lava Jato, hors concurs), de objetivo político, levou petistas para a cadeia, mas não tirou Lula dos braços do povo. Ele foi reeleito, e elegeu sua sucessora em 2010.
A marcha da História não foi interrompida em 2006, nem quando Dilma disputou a reeleição, em 2014, sob ataque explícito da direita.
A partir do golpe que tirou Dilma do governo, em 2016, a História se recolheu à vergonha, à desesperança. Em dado momento foi seduzida a andar para trás em alta velocidade. Mas ela não tem dono.
Era a História em seu estado puro que estava no lugar de honra do lançamento da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para mais um mandato de presidente. Eu a vi, teimosa, disposta a seguir seu curso. Vivi para ver. Se morrer depois disso, morro feliz, com a certeza de que, se minha geração não conseguiu deixar de herança para as que vieram depois a certeza de que a democracia é uma linha reta, sem riscos e sem volta, a candidatura de Lula vai poder legar a elas a certeza de que a luta pela democracia é sempre o melhor caminho.
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Se ainda assim minha geração não puder legar a democracia, vai deixar pelo menos a convicção de que esta luta será sempre a luta justa. Sempre.
*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante