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Encantar a política

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"Sem mística, sem paixão não se faz política, ou esta torna-se insossa, desbotada, não humana. Sem mística, a política torna-se razão pura. E sendo pura razão, acaba mecanicista, dogmática, doutrinarista"
"Sem mística, sem paixão não se faz política, ou esta torna-se insossa, desbotada, não humana. Sem mística, a política torna-se razão pura. E sendo pura razão, acaba mecanicista, dogmática, doutrinarista" - Gisele Brito
Tão importante quanto ligar mística e política é juntar a ética e a política

A Rede de Fé e Política (REFEP), composta por diversas organizações, entre elas o CNLB (Conselho Nacional de Leigas e Leigos), o Movimento Fé e Política, lança o Projeto Encartar a Política: “A proposta é atuar na formação do eleitorado brasileiro, por meio de um processo que possibilite uma leitura crítica do momento atual e aponte para o exercício de uma cidadania ativa. A iniciativa vai para além das eleições de 2022. O Projeto busca uma formação e consciência política permanentes para as próximas eleições. Ou seja, o Projeto lançado agora é apenas o início de uma longa jornada. Dentre as ações, estão previstos materiais de comunicação como vídeos, podcasts, cards para as redes sociais, curso e a publicação de um Caderno de Estudos.”

O Caderno retoma questões centrais das Encíclicas do Papa Francisco, ´Laudato Sì´ e ´Fratelli Tutti´, da Exortação apostólica pós-sinodal ´Alegria do Evangelho´, que tratam a Política como mandamento do amor. O Caderno foi pensado para leitura e reflexão coletiva, entre outros espaços. Isso para alcançar as pessoas que estão na comunidade de base com uma vida pastoral ativa, como animadoras e animadores de cultos, catequistas, Ministras e Ministros da Palavra, participantes de grupos e movimentos e agentes de pastoral em geral.

“A partir da leitura crítica, espera-se que as leigas e os leigos se animem a atuar na política como ´forma sublime´ de caridade, exercendo assim uma cidadania ativa, o que possibilitará a superação dos problemas cotidianos” (Mais informações em www.fepolitica.org.br).

Muitas e muitos poderão perguntar nesta altura do campeonato. É possível ´Encantar a Política´ nestes tempos, 2022, em meio ao ódio, intolerância e violência reinantes, ao descrédito quase geral da política e dos partidos políticos, vistos como espaço de corrupção, ou de que a política não serve para nada, muito menos para mudar o Brasil e o mundo?

Escrevi em ´Mística e Política´, quando era deputado estadual constituinte, em 1990: “Não são apenas a razão e a teoria que informam o militante revolucionário, e o levam à luta, ao compromisso, ao sacrifício, à dedicação. Mas o que eu chamo de ´mística´, ou pode ser chamado de paixão (não esquecendo as diferenças das duas expressões). Sem mística, sem paixão não se faz política, ou esta torna-se insossa, desbotada, não humana. Sem mística, a política torna-se razão pura. E sendo pura razão, acaba mecanicista, dogmática, doutrinarista. Não envolve mais o ser humano como um todo, com suas emoções, seus vacilos, suas contradições e seu vigor. A mística sustenta a militância, qualifica-a, move-a, torna-a mais humana e global. A mística vai além da razão teórica, faz o ser humano envolver-se todo, inteiro na sua ação. Mística é vida, é alimento, é explosão de corações e mentes.

A mística é o que sustenta a vida, o que a alimenta, o que a recheia, o que a faz ir além da razão, o que a informa do transcendente. É o que faz uma bandeira, um gesto, uma ação coletiva serem estimuladores, confortadores, darem um sentido novo e mais amplo ao que foi realizado” (Selvino Heck, Mística e Política, 1990).

Entre diferentes aspectos e elementos a estarem presentes na ação política e na relação ´Mística e Política´, apontei, em 1990: “TERNURA E AFETIVIDADE. É preciso saber chorar, olhar as pessoas com amor e carinho, ser capaz, às vezes, do gesto simples, de dizer ´muito obrigado´, ´parabéns´. O militante revolucionário deve ter um jeito especial de tratar a Outra, o Outro. Porque a Outra, o Outro são sua causa, são seu motivo, sua origem, seu tudo. Sem a Outra, sem o Outro, sem o ser humano, não existe Causa, transformação, mudança, revolução. Ternura é saber ver, conhecer as dificuldades de apreensão, pessoais, de experiência vivida da/o companheira/o. Ternura é ter relação de companheira-o, sabendo que é uma trabalhadora ou trabalhador braçal, outra, outro é operária/o. A ternura faz o revolucionário mais aberto, mais transigente quando tal se faz necessário, mais livre espiritualmente e, na sua prática, mais capaz de entender o outro e, às vezes, suportá-lo.

A GRATUIDADE. O revolucionário é feito de gratuidade. O seu grande gesto gratuito é voltar-se para a humanidade, para um povo, querer seu bem e sua libertação, jogar-se nesta luta porque acredita nela, assumir uma classe de forma coletiva, sem esperar nada em troca, sem outra recompensa que a vitória e o bem de todas e todos.

A INDIGNAÇÃO, A REVOLTA, O INCONFORMISMO. A mística revolucionária não é conformada. Ela se indigna permanentemente com a injustiça, está sempre em movimento, não se conforma nunca com a corrupção e com a violência.

A ALEGRIA E A GENEROSIDADE. A mística deve ter um traço alegre e generoso. De quem vai para a luta com disposição. De quem não se queixa todos os dias com as agruras da vida. Política é alegria generosa de estar a serviço, de poder contribuir com o homem, a mulher e o povo. Às vezes, é preciso parar e dar-se conta disso. Afinal, por que esta vida agitada e intensa se não é para ser mais feliz, individual e coletivamente?

A BUSCA DA VERDADE. Nenhuma mística sustenta-se com a mentira e a falsidade A busca incessante da verdade como relação homem-mundo, homem-natureza, homem-homem, mulher-mulher é parte essencial de uma mística revolucionária.

MULHER NOVA, HOMEM NOVO. A práxis política constrói uma nova humanidade nas suas relações econômicas, sociais e pessoais. Por isso, é necessária uma mística globalizadora e impulsionadora da nova mulher e do novo homem: duras e duros quando preciso, generosas/os o tempo todo, ternas/os e afetivas/os na gratuidade, avessas/os à mentira e à falsidade, superioras/es na sua relação com a outra e o outro, servidoras/es do mais modesto e simples, democráticas/os e livres” (Selvino Heck, Mística e Política, 1990).

Escrevi em 1990, e reafirmo em 2022: “É preciso dar um sentido maior à luta e perceber toda sua dimensão. E criar uma mística capaz de empolgar as massas, superar o puro racionalismo e uma dinâmica de identificação e celebração coletivas. A mística consciente assumida ajuda a atravessar o tempo, solidifica a militância, reanima-a a cada momento, faz que transcenda a dureza do dia a dia, o sensabor dos mesmos e aparentemente inúteis gestos cotidianos, estimula o sentimento que foge ao controle, faz explodir a paixão revolucionária. O amor é vivido por gestos, palavras expressos a cada momento. Assim, sobrevive e se revigora. O amor à humanidade e ao povo não é diferente. A mística, além da razão, faz que este amor sobreviva, se revigore e não morra nunca.”    

Tão importante quanto ligar mística e política é juntar a ética e a política. Escrevi, em 1990: “Trata-se, desde logo, de afastar qualquer sentido moralista a esta dimensão ética da política. Não se faz política de forma moralista. A ética, sim, sempre deve estar junto da política. Sem dúvida, a prática de hoje é garantidora da prática de amanhã. Quem hoje constrói um partido sem ética ou na sua prática não leva em conta a ética política e partidária, amanhã, vitoriosas a revolução e o socialismo, incorrerá nos mesmos erros e equívocos, muitos deles trágicos. Não disputamos apenas o Estado, o Parlamento ou o Poder como tal, embora esta seja a disputa principal. Disputamos também a credibilidade, a confiança numa determinada prática e em determinados valores, em grande parte subvertidos e liquidados na atual cena política brasileira. Disputamos, enfim, a hegemonia em todos os setores da sociedade. Somos fiadores da esperança de tornar-nos capazes de resgatar a atividade política e dar sentido àquilo que é efetivamente essencial para mudar o Brasil e o mundo” (Selvino Heck, Ética e Política, abril/1990).

Estamos diante da eleição das nossas vidas, em outubro de 2022. Como em 1990, mais que hora, pois, de (re)encantar a política, com ética, com mística. Ninguém solta a mão de ninguém.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko