A Hutukara Associação Yanomami divulgou nesta sexta-feira (6) uma nota com relatos de crimes bárbaros cometidos contra moradores da comunidade Aracaçá, na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima.
São casos de assassinato, prostituição, violência sexual e suicídio que se arrastam há anos e foram provocados pela presença de garimpeiros ilegais, sem nunca terem sido investigados. Leia abaixo o relato completo.
No comunicado, a Hutukara disse que acompanha a investigação da denúncia de estupro e morte de uma adolescente na mesma comunidade, tornada pública no final de abril, mas frisou que esse está longe de ser um caso isolado.
“As denúncias sobre Aracaçá só podem ser compreendidas dentro desse cenário, no qual metade das aldeias da Terra Indígena Yanomami está sujeita ao assédio dos invasores”, escreveu a entidade indígena.
Hoje (6), a Polícia Federal (PF) comunicou não ter encontrado evidências que comprovem o estupro seguido de morte e concluiu que o caso não passou de um mal entendido entre os indígenas.
Sem citar diretamente a PF, a Hutukara escreveu: “Defendemos que se conduza uma apuração mais ampla e aprofundada do histórico de violências vivida pelos indígenas em Aracaça por consequência do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami”.
Família dizimada pelo garimpo
Segundo a Hutukara, a sequência de tragédias na Aracaçá teve início há cinco anos, com a morte de um homem conhecido como C. Sanumá. Ele teria perdido a vida durante um incidente provocado por garimpeiros que distribuíram cachaça aos indígenas.
A história dos crimes foi contada por moradores. Os relatos foram cruzados com dados oficiais do distrito de saúde indígena “de modo que foi possível identificar a cronologia dos episódios narrados”, diz a Associação. O nome das vítimas foi preservado por motivos de segurança.
O polo de saúde local registrou a morte de um homem entre 50 e 59 anos vítima de agressão e disparo de arma de fogo, corroborando o relato oral colhido pela Hutukara sobre a morte de Sanumá.
O indígena tinha duas esposas, que ficaram vulneráveis após sua morte. Elas se tornaram prostitutas em uma área de garimpo. A segunda esposa, chamada pelos indígenas de W., morreu em seguida, ao que tudo indica, por suicídio.
“Há diferentes versões sobre sua morte, mas foi possível confirmar no registro de óbitos o falecimento de uma pessoa da mesma faixa etária de W., em 2018, tendo por causa de óbito o envenenamento autoprovocado”, afirma a Hutukara.
A filha de Sunumá com sua primeira esposa, chamada K., tinha 16 anos. A adolescente foi levada para se prostituir em um acampamento do garimpo perto da comunidade.
“As entrevistas apontam que K. era explorada sexualmente por garimpeiros, por vezes sendo obrigada a manter relações sexuais com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, entre outros abusos”, escreve a Hutukara.
No período em que era submetida aos abusos, K. perdeu um bebê, que morreu por traumatismo intracraniano. A morte de uma criança nesta faixa etária também está registrada na lista de óbitos oficiais em 2019.
Conforme os relatos, K. sofreu sequelas em decorrência dos abusos. Um acidente provocou uma deficiência física permanente que a fazia se locomover com dificuldade. Ainda mais fragilizada, K. engravidou de um garimpeiro. “Seu filho foi levado à cidade. Desesperada, tirou a própria vida se enforcando”, descreve a nota.
“A sequência de tragédias que marcaram a família de C. demonstram que na aldeia de Aracaçá há casos generalizados de abusos e violência. A vulnerabilidade das pessoas da comunidade é tamanha que é bastante provável que episódios assim se repitam cotidianamente”, afirmou a Hutukara.
Denúncia “não condiz com os fatos”, diz PF
Por meio de nota, a Polícia Federal de Roraima informou hoje (6) que a denúncia da morte e estupro de uma criança de 12 anos na Aracaçá, bem como o desaparecimento de um bebê de 3 anos, “não condiz com os fatos concretos e reais”.
A conclusão da PF se refere apenas ao caso denunciado pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kwana (Condisi-YY). Os outros crimes descritos pela Hutukara não foram investigados.
“As investigações ainda se encontram em andamento, e as diligências da área Ianomâmi foram realizadas com a mesma presteza e responsabilidade com que são apuradas quaisquer denúncias encaminhadas à corporação”, divulgou a PF.
“Em relação a eventual desaparecimento de indígenas que residiram na tribo, a investigação apontou que, ao menos, nove Ianomâmis moram no local, sendo que seis foram contatados presencialmente no primeiro dia das diligências no local e outros três – uma mulher e dois netos – estão em Boa Vista para tratamento de saúde da mulher”, continua o comunicado.
Associação Yanomami sugere investigação mais detalhada
Por outro lado, a Hutukara, em atividade desde 2004 e principal referência no território, disse que a investigação envolvendo povos que vivem imersos na própria cultura e falantes do idioma ancestral “exige a participação continuada de especialistas com formação técnica em antropologia, com domínio da língua e durante tempo suficiente para que os fatos sejam analisados com a profundidade que merecem”.
“Também é importante lembrar que na tradição cultural Yanomami o corpo e os pertences dos mortos são todos incinerados, de modo que é bastante provável que, ocorrido o assassinato, os restos mortais da vítima sejam impossíveis de se localizar a não ser a partir de suas cinzas. Por isso, é fundamental a coleta de relatos e a busca por testemunhas da comunidade.”
A Hutukara voltou a ressaltar que é preciso impedir a “tragédia humanitária” que assola os Yanomami. No ano passado, mais de cem indígenas morreram em decorrência do garimpo ilegal na região, o equivalente a 90% das mortes por conflitos agrários de 2021, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra.
“Se a União estivesse cumprindo a ordem judicial do Tribunal Regional Federal da 1a Região, que, desde 2020, determinou a retirada dos garimpeiros ilegais de nossas terras, muitas das tragédias sofridas pelos Yanomami teriam sido evitadas”, afirma a entidade.
Edição: Rodrigo Durão Coelho