Coluna

Dia das Mães pra quem? Maternidades dignas de proteção e maternidades “sacrificáveis”

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Às mães que não se enquadram nas maternidades “protegíveis”, retratadas pelas propagandas dos “Dias das Mães”, resta o esforço de sobreviver - Albert Gonzalez Farran/AFP
Cabe questionar sobre o próprio papel do Estado diante das mães brasileira

Por Cláudia Maria Dadico*

 

O estuprador é você

São os policiais, os juízes, o Estado, o presidente

O patriarcado é um juiz que nos julga por nascer

E nosso castigo é a violência que se vê

É o feminicídio, a impunidade para o meu assassino

É o desaparecimento, é o estupro

E a culpa não era minha, nem de onde estava, nem do que vestia

O estuprador é você

São os policiais, os juízes, o Estado, o presidente

O Estado opressor é um macho estuprador

(Canto de protesto criado pelo coletivo chileno “Las Tesis”, em 2019)

 

No próximo domingo o Brasil festeja o “Dias das Mães”.

A data, capturada pelo capitalismo, é associada pela cultura de massas e comércio à compra de presentes, às refeições em família, às encenações escolares.

No mercado de serviços, é quando parte da classe média (cada vez menor, diga-se de passagem, diante do crescimento da inflação) pedirá uma refeição a ser entregue em domicílio, via plataformas ou aplicativos, ou irá a restaurantes, para “tirar a mamãe da cozinha” (ignorando, consciente ou inconscientemente, que em ambas opções, mães e filhos trabalhadores, ocupantes dos postos de trabalho precarizados aí implicados estarão separados, impedidos de celebrar a data reunidos).

A veiculação das propagandas alusivas ao dia das mães é também uma data em que, de forma massiva, circulam estereótipos que atribuem conhecidos papéis às mulheres: um lugar de destaque numa família “tradicional”, em geral associado ao cuidado, à doçura, ao carinho, à passividade.

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O “Dia das Mães” é uma daquelas efemérides em que as armadilhas engendradas pelo capitalismo patriarcalista e virilista serão suavemente disseminadas, em peças publicitárias e cenas de novelas recheadas de cores pastéis, ambientações diáfanas, cenas felizes e tocantes que penetrarão no imaginário social, naturalizando a maternidade como destino inevitável, a verdadeira "razão" justificadora da existência do ser feminino.

De forma associada aos produtos da indústria cultural que atuam na construção e reforço da imagem da mãe associada ao “dever sagrado” das mulheres – na expressão de Alexandra Kollontai -, o direito também dará sua contribuição, não somente para disciplinar e criminalizar os corpos femininos desviantes da missão da reprodução compulsória, mas também para preconizar a maternidade como “locus” a ser protegido.

Assim é que a Constituição Federal de 1988 elenca a “proteção à maternidade” no rol dos direitos sociais (artigo 6º, caput; artigo 201, II; artigo 203, I), emprestando-lhe natureza de direito fundamental, de forma particular no âmbito da seguridade social.

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No entanto, pensar na tutela constitucional da maternidade como direito humano e fundamental, em mais um “Dia das Mães”, nos convoca a múltiplas interrogações: essa proteção efetivamente existe? Como e em qual medida ela se concretiza? E, sobretudo, quais mães são aptas a receber a guarida constitucional?

Se, por um lado, o trabalho formal outorga direitos tais como licença-maternidade, irredutibilidade salarial e estabilidade, de outro lado a precarização, o desemprego e a informalidade excluem a maternidade exercida por milhões de mulheres pobres e racializadas do âmbito de qualquer tipo de proteção estatal.

O desemprego e a informalidade excluem a maternidade exercida por milhões de mulheres pobres e racializadas do âmbito de qualquer tipo de proteção estatal

Aprofundando um pouco mais o nível da análise, cabe questionar sobre o próprio papel do Estado diante das mães brasileiras, como sobreviventes do processo colonizador do Sul Global. Seria o Estado a instância apropriada para demandar a proteção prometida pelo texto constitucional?

Nesse sentido, as perspectivas trazidas pelo feminismo decolonial são fundamentais.

Sayak Valencia oferece uma instigante análise de conjuntura, ao afirmar que as mulheres do sul global estão inseridas naquilo que ela denomina de “capitalismo gore”. Nesses territórios, o aspecto violento, inerente à ordem capitalista, atinge uma forma ainda mais brutal e cruel. “Gore” significa “sangue derramado” e designa um gênero cinematográfico que se caracteriza pela violência explícita, com muito sangue em cena. Valencia atualiza o conceito de necropolítica de Achille Mbembe e o aplica no contexto das violências de gênero.

Rita Segato fala da “economia do esgotamento” na qual “a pilhagem e a espoliação do feminino” manifesta-se por uma “destruição corporal sem precedentes” e, por outro lado, pelo “tráfico e a comercialização, levados ao extremo, do que esses corpos podem oferecer”.

As reflexões de Sayak Valencia e Rita Segato entrelaçam-se com a perspectiva de Elsa Dorlin, para quem “o Estado é o principal instigador da desigualdade” e “justo o responsável por armar aqueles que nos golpeiam”. Vale dizer, como é possível demandar proteção ao Estado se ele próprio é o principal veículo de produção e instigação de violências contra as mulheres, as mães aí incluídas?

O elenco das situações que comprovam essa afirmação é longo, mas algumas podem ser lembradas, de forma emblemática:

Ana Paula de Oliveira, criadora do coletivo Mães de Manguinhos, que teve seu filho Johnatha assassinado por um policial militar há sete anos no Rio de Janeiro, com um tiro pelas costas e que até hoje não sofreu qualquer tipo de punição. Ana Paula representa muitas outras mães – negras e pobres – que perderam seus filhos para a violência estatal, aí também incluídos os policiais militares – também negros em sua maioria – vítimas da insana “guerra às drogas”.

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Marinete Franco, mãe da Vereadora Marielle Franco, vítima de feminicídio político, até hoje ainda não elucidado. Depois de quatro anos, a sociedade brasileira ainda não sabe quem mandou matar Marielle e por quê.

As mães de Brumadinho e Mariana trazem em seu luto a dor das mortes geradas por um processo irresponsável de acumulação capitalista e predatório dos recursos naturais, sem freios, nem limites e potencializado por desastres climáticos aos quais ainda não se deu a importância devida.

A mãe da menina yanomami de 12 anos, estuprada e morta simboliza a dor de tantas mães indígenas, quilombolas e campesinas que viram seus filhos e filhas perecerem no bojo da violência que os vitimiza há séculos e que só faz aumentar nos últimos anos.

As mães que perderam seus filhos e filhas na pandemia da covid-19. O necessário exercício da memória, da justiça e da reparação não permite olvidar que muitas dessas mortes seriam evitadas se as vacinas tivessem chegado antes aos braços dos brasileiros e brasileiras.

As mães das vítimas de violência letal contra pessoas trans, homossexuais e mulheres devem ser lembradas, assim como as mães das vítimas de estupros de crianças e adolescentes, cujos números tornam o Brasil um lugares mais inseguros do planeta para mulheres, adolescentes, crianças e pessoas LTBQIA+.

As mães que perderam seus filhos na ditadura militar de 1964, muitas das quais, décadas depois, nem sequer ainda encontraram os restos mortais de seus entes queridos.

O Estado opressor é um macho estuprador”. O canto que embalou as performances militantes criadas pelo coletivo chileno “Las Tesis”, em 2019, permanece mais atual do que nunca.

Esse contexto, ainda persistente, não apenas de “desproteção”, mas de violência estatal “gore” que se exerce nos territórios do sul global contra as mães pobres e racializadas e seus filhos e filhas, demonstram o acerto das análises das feministas decoloniais.

Françoise Vergés, afirma que “esses contrastes traçam uma fronteira entre quem deve e pode ser protegida e quem não pode ou não deve sê-lo. Essa divisão da humanidade que teria direito à proteção e outra que não o teria (quase por natureza) permanece para mim uma divisão tangível, organizadora do mundo social”.

Diante disso, conclui-se que a ordem neoliberal, patriarcal, colonial e virilista característica do tempo presente divide as maternidades de forma binária, entre maternidades “protegíveis” e “sacrificáveis”.

Às mães que não se enquadram nas maternidades “protegíveis”, retratadas pelas propagandas dos “Dias das Mães”, resta o esforço de sobreviver. “Costurar a vida com fios de ferro”, como diria Conceição Evaristo. São existências que, pelo mero fato de sobreviver e resistir, por si só, já desafiam o Estado necrocapitalista.

Nesse “Dias das Mães” resta àqueles e àquelas que acreditam em outra ordem possível, a busca incessante e comprometida pelo novo, em aliança de corpos – das sobreviventes da violência estatal com todes que se irmanam com elas - num caminhar para além das expectativas geradas pelas promessas constitucionais de um Estado estuprador.

 

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante