Coluna

Não se pode viver do pão de amanhã

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Joseph Bertiers (Quênia), O bar, 2020 - Reprodução
Liberdade é uma forte semente plantada em grande necessidade

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 19 de abril, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou seu relatório anual World Economic Outlook, que prevê uma severa desaceleração no crescimento global, juntamente com a disparada dos preços. “Para 2022, projeta-se uma inflação de 5,7% nas economias avançadas e 8,7% nos mercados emergentes e economias em desenvolvimento – 1,8 e 2,8 pontos percentuais acima do projetado em janeiro”, observou o relatório.

A diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, fez uma séria reflexão a partir desses dados: “A inflação está atingindo os níveis mais altos em décadas. Os preços acentuadamente mais altos de alimentos e fertilizantes pressionam famílias em todo o mundo – especialmente as mais pobres. E sabemos que crises alimentares podem desencadear agitação social”.

Qual é a causa raiz dessa extraordinária onda inflacionária? O presidente dos EUA, Joe Biden, atribuiu a culpa à guerra da Rússia na Ucrânia. “O que as pessoas não sabem é que 70% do aumento da inflação foi consequência do aumento de preços do [presidente russo Vladimir] Putin em razão do impacto dos preços do petróleo”.

No entanto, até mesmo o conselho editorial do The Wall Street Journal observou que “esta não é a inflação de Putin”. Georgieva, do FMI, tentou chegar a um meio-termo, dizendo que “a invasão russa na Ucrânia criou uma crise em cima de uma outra crise”. Sua visão coincide com a do World Economic Outlook, que aponta que “a crise se desenrolou enquanto a economia global estava em um caminho de recuperação, mas ainda não havia se recuperado totalmente da pandemia de Covid-19”.


Beauford Delaney (EUA), Local de trocas, 1943 / Reprodução

A plataforma No Cold War, com a qual o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social mantém uma estreita relação de trabalho, produziu uma intervenção muito importante nesse debate. O boletim n. 2, Os Estados Unidos desestabilizaram a economia mundial, veiculado abaixo, afirma que um fator determinante na atual crise inflacionária é o impacto desproporcional dos Estados Unidos na economia global; aqui, os gastos militares estadunidenses, a escala dos Estados Unidos no consumo global, o papel do regime de Wall Street-Dólar-FMI e outros fatores desempenham um papel fundamental. Esperamos que você leia e compartilhe o boletim n.2, fazendo-o circular amplamente.

O Fundo Monetário Internacional anunciou que a economia global está entrando em uma grande desaceleração, rebaixando as perspectivas de crescimento de 143 países. Ao mesmo tempo, as taxas de inflação atingiram níveis históricos. Em todo o mundo, centenas de milhões de pessoas estão caindo na pobreza, principalmente no Sul Global. A Oxfam acendeu a luz vermelha e afirma estarmos “testemunhando o mais profundo colapso da humanidade em termos de extrema pobreza e sofrimento que se tem na memória”. O que está produzindo esse imenso sofrimento humano?

O Brasil e a escassez: o que os momentos históricos de carestia nos ensinam?

Uma crise econômica “Made in Washington”

Em 13 de abril, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, afirmou que essa deterioração econômica global se devia à guerra russa na Ucrânia, o que é factualmente incorreto. Embora o conflito tenha piorado a situação, o principal fator que desestabilizou a economia mundial é a enorme onda inflacionária que já havia se formado nos Estados Unidos e agora começou a atingir o mundo.

Antes da guerra na Ucrânia, a inflação dos EUA já havia triplicado nos últimos anos, de 2,5% (janeiro de 2020) para 7,5% (janeiro de 2022), antes de acelerar ainda mais para 8,5% (março de 2022) após o início da guerra.

“Esta não é a inflação de Putin”, observou o conselho editorial do The Wall Street Journal. “Esta inflação foi feita em Washington”.

O mercado consumidor dos EUA absorve um quinto dos bens e serviços do mundo; como a demanda por esses bens supera a oferta global, a tendência da inflação estadunidense se espalhar pelo mundo é muito alta.

O índice médio do Commodity Research Bureau Index, um indicador geral dos mercados globais de commodities, subiu astronomicamente; desde 25 de abril, os preços anuais dispararam, como o do petróleo (60%), óleo de palma (60%), café (56%), trigo (45%), gás natural (139%) e carvão (253%). Esses aumentos de preços enviaram ondas de choque pela economia global.

Essa instabilidade está inseparavelmente ligada à política econômica dos EUA. Desde 2020, os Estados Unidos aumentaram seu orçamento em 2,8 trilhões de dólares. Para financiar essa expansão orçamentária, o governo dos EUA aumentou os empréstimos para 27% do produto interno bruto (PIB) e o Federal Reserve Bank aumentou a oferta monetária (a quantidade de dinheiro emitido) em 27% ano a ano. Ambos os aumentos são os mais altos da história nos EUA em tempos de paz.

Esses enormes pacotes econômicos foram gerados para colocar dinheiro nas mãos dos consumidores. O governo estadunidense se concentrou ao lado da demanda da economia, colocando dinheiro em circulação para consumo, mas não aumentou os gastos no lado da oferta, colocando dinheiro em investimento.

De 2019 a 2021, 98% do crescimento do PIB dos EUA foi em consumo, enquanto apenas 2% em investimento líquido. Com um grande aumento na demanda dos consumidores e quase nenhum aumento na oferta, uma enorme onda inflacionária cresceu nos Estados Unidos.


Carmen Lomas Garza (EUA), Tamalada, 1990 / Reprodução

Investir em armas ou no povo?

A inflação nos Estados Unidos, que tem implicações globais, é um subproduto de suas prioridades econômicas. No último meio século, os governos dos EUA não usaram a riqueza social do país para fazer investimentos sociais substanciais em áreas como educação, saúde e infraestrutura, nem investiram no setor manufatureiro para aumentar a oferta. Em vez disso, para controlar a inflação, o governo optou por promover uma agenda que reduz a demanda. Esses cortes na demanda já reduziram os padrões de vida; por exemplo, os salários reais nos Estados Unidos caíram 2,7% no ano passado.

Em vez de fazer investimentos sociais para evitar essas retrações econômicas, o governo dos EUA tem priorizado suas forças armadas, que recebem um aumento orçamentário a cada ano. Em 2022, o governo Biden propôs um orçamento militar de 813 bilhões de dólares, um aumento de 9,2% em relação ao orçamento militar em 2021 – maior do que os próximos onze países com maiores gastos combinados. Para justificar esse gasto maciço, o governo Biden, como o governo Trump antes dele, invocou a necessidade de “combater ameaças” representadas pela China e pela Rússia.

Uma redução nos gastos militares dos EUA liberaria fundos do governo para investir em educação, saúde, infraestrutura e manufatura. No entanto, isso exigiria uma mudança na política externa dos EUA, o que não parece estar no horizonte. Até lá, o povo dos Estados Unidos e de outros países terá que arcar com os custos da nova Guerra Fria de Washington.

Contra a avaliação superficial de que a inflação global é causada pela guerra da Rússia na Ucrânia e as sanções ocidentais à Rússia, o boletim No Cold War n. 2 aponta para a raiz da crise: as distorções produzidas pelos gastos militares dos EUA e pelo regime de Wall Street-Dólar-FMI que domina a economia mundial.

Em dezembro de 2021, Georgieva, do FMI, disse que os governos da Europa não devem permitir que a recuperação econômica seja ameaçada “pela força sufocante da austeridade”. Isso faz parte dos surpreendentes padrões duplos do Ocidente: ao mesmo tempo, o FMI impôs duras medidas de austeridade nos países da África, Ásia e América Latina. Como observa a Oxfam em uma nova análise, durante o segundo ano da pandemia (de março de 2021 a março de 2022), o FMI aprovou 23 empréstimos para 22 países do Sul Global – todos incentivando ou exigindo medidas de austeridade.

O empréstimo de 2,3 bilhões de dólares do FMI para o Quênia, por exemplo, exigia um congelamento de quatro anos no pagamento do setor público, juntamente com impostos mais altos sobre gás e alimentos, enquanto 63% das famílias quenianas experimentam pobreza multidimensional, de acordo com um relatório do Instituto de Políticas Públicas do Quênia. Pesquisa e Análise (KIPPRA).

As políticas de austeridade que impactam a vasta massa da população desses países precisam ser revertidas. É necessário gastar menos dinheiro com guerras e mais para resolver o que Frantz Fanon chamou de fatos obstinados da vida humana, como fome, analfabetismo e miséria.


Langston Hughes por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / Reprodução

A poesia de Langston Hughes se concentrou no impacto desses “fatos obstinados” sobre a vida do povo estadunidense, pessoas que lutaram contra uma vida construída sobre salários que equivaliam a “dois bits menos dois”. Em 1962, os Estados Unidos gastaram 49 bilhões de dólares em suas forças armadas (correspondente a 431 bilhões em 2022); em 2022, conforme observado no boletim n.2, o governo dos EUA propõe gastar 813 bilhões em suas forças armadas, quantia superior aos gastos militares dos próximos onze países juntos.

Há imensa riqueza social disponível para nós, mas ela é gasta nas partes da vida humana que são mais destrutivas que produtivas. Em 1962, quando o orçamento militar dos EUA começou a aumentar, Langston Hughes escreveu:

 

Me canso tanto de ouvir as pessoas dizerem:
Deixe as coisas seguirem seu curso.
Amanhã é outro dia.
Não preciso da minha liberdade quando estou morto.
Não posso viver com o pão de amanhã.

Liberdade
É uma forte semente
Plantada
Em grande necessidade.
Eu moro aqui também.
Quero minha liberdade
Tanto quanto você.

 

Precisamos avançar no sentido da emancipação humana agora. Não amanhã, mas agora.

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas