Fundada apenas dois anos após a inauguração da capital federal, a Universidade de Brasília (UnB) completou 60 anos neste mês de abril com o desafio de manter seu DNA vanguardista e democrático. A tarefa é reconhecidamente difícil, já que os seguidos cortes de orçamento no Ensino Superior, aprofundados no governo de Jair Bolsonaro (PL), afetam uma das mais bem avaliadas universidades do mundo.
A proposta de criar um ambiente de ensino humanista, inovador e contemporâneo é fruto do árduo trabalho de convencimento de dois dos seus principais criadores, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) e o educador Anísio Teixeira (1900-1971).
O próprio campus Darcy Ribeiro, como foi posteriormente batizada a primeira das quatro sedes da universidade no Distrito Federal, segue a linha da arquitetura de Brasília: totalmente aberta, sem muros e que preza pelo livre trânsito de estudantes e de ideias — “um convite à reunião e ao debate sobre os grandes problemas do Brasil”, como define reitora Márcia Abrahão, que ocupa o cargo desde 2016.
“Até por essa característica de ser ousada e defensora das liberdades e da democracia, a universidade foi muito atacada durante a Ditadura”, relembra Márcia, que ingressou na UnB como estudante de Geologia em 1982. “Nós chegamos a perder quase todos nossos professores. De 300 professores, 15 foram demitidos e mais 200 pediram demissão em solidariedade. Tivemos alunos presos, mortos, uma marca triste que perdura até hoje”.
A memória da Ditadura se mistura com a história da própria universidade, que passou o primeiro terço da sua existência sob constantes ameaças e ataques, situação agravada pela proximidade física com o núcleo do poder repressor. Há casos emblemáticos, “que servem até hoje de inspiração para sermos resilientes e nos superarmos”, segundo a reitora. Um caso de destaque é o do estudante de geologia Honestino Guimarães.
Líder estudantil na Universidade de Brasília, Guimarães foi preso durante a invasão militar ao campus em 29 de agosto de 1968, durante mobilizações. Acusado de comunismo e insubordinação, desapareceu nos porões do regime no Rio de Janeiro ou em São Paulo entre o fim de 1972 e o início do ano seguinte.
Muitos outros estudantes e membros da comunidade acadêmica também foram presos na ocasião. O caso aconteceu apenas duas semanas antes da imposição do Ato Institucional número cinco, o tenebroso AI-5, que fecharia o cerco de vez para qualquer tipo de oposição.
Exilado, Darcy Ribeiro deixou registrada sua impotência diante das barbáries cometidas em entrevista presente no documentário “Barra 68: sem perder a ternura” (2001), de Vladimir Carvalho. “Eu pensava, vaidoso que sou, que podia oferecer a eles que me prendessem, me matassem, mas que salvassem a universidade. Mas ninguém queria me matar para salvar nada. Queriam matar só para continuar fazendo sacanagem”.
Renascimento após os Anos de Chumbo e o caminho para a excelência
Após longo período sob o comando de interventores recomendados pelo governo militar, a UnB retomou suas raízes nos anos 1980. Seu método de ensino multidisciplinar, que estimula o aluno a explorar outras áreas do conhecimento durante sua formação, guiaram ao reconhecimento com uma das principais universidades do Brasil e do mundo.
De acordo com a consultoria Center for World University Rankings (CWUR), dos Emirados Árabes Unidos, a universidade federal brasiliense faz parte do grupo das 4,4% melhores instituições de ensino superior do mundo. Outro ranking internacional, também divulgado este ano, o QS World University Rankings by Subject, coloca a UnB entre as principais universidades em dez áreas do conhecimento, com destaques para ciências agrárias e florestais e sociologia.
A expansão também foi numérica. De acordo com dados da própria UnB, se nos anos 1980, a comunidade acadêmica se resumia a cerca de 8 mil alunos, apenas entre 2011 e 2020, a instituição formou mais de 45 mil profissionais. Atualmente, são oferecidos 131 cursos de graduação e mais de 170 opções de pós-graduação, espalhados em 4 campi.
Aliás, a construção de três novas unidades em cidades satélites de Brasília a partir dos anos 2000 — em Gama, Ceilândia e Planaltina — coincidiram com um processo de democratização do acesso à universidade pública. Em 2004, a UnB se tornou a primeira universidade federal do país a implantar o sistema de cotas raciais.
Morador de Samambaia, outra localidade do Distrito Federal, Diogo Alcântara era um dos poucos entre seus amigos e colegas de escola que alimentava o sonho de ir para a faculdade, especialmente para uma universidade pública, superando um vestibular concorrido. Seu ingresso como estudante de Jornalismo, na primeira turma de cotistas da UnB, serve como exemplo para uma espécie de ponto de virada, não apenas na própria história, mas também nas de muitos jovens negros e moradores das periferias urbanas.
“Nos últimos semestres, eu notava mais pessoas do meu bairro no ônibus pra UnB. Eu ficava feliz e pensava 'que legal, que tem mais gente daqui indo pra lá'. Hoje em dia, isso parece bem mais comum”, relembra Alcântara, que também descreve a “bolha” que encontrou no curso de Jornalismo logo no início: “alunos brancos, de uma determinada classe social, que moravam em determinados bairros e que se conheciam da escola. Ou seja, nada plural”.
Uma vez com os dois pés dentro da universidade, o então estudante descobriu um outro universo de possibilidades, estimulado pela visão crítica e pela interdisciplinaridade. “No início eu pensei que ia aprender apenas um ofício (...), mas acabei transitando por disciplinas de História e Relações Internacionais, o que acabou sendo decisivo para a segunda metade da graduação quando comecei a fazer estágios”, conta.
Diversidade e pluralidade como metas para o futuro
Após o primeiro passo, outras políticas afirmativas abriram as portas da UnB a populações que antes não sonhavam em ingressar no Ensino Superior. De acordo com a própria universidade, em 2003, havia apenas 7 estudantes indígenas inscritos. Atualmente são 229 indígenas alunos de graduação e 33 de pós-graduação em diferentes áreas.
Além de um Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas, a Maloca, criado no campus Darcy Ribeiro e aberto também a não-indígenas, o acesso aos povos originários começou pelo pioneiro vestibular indígena, cuja primeira edição ocorreu em 2006. As provas eram aplicadas em centros próximos às comunidades e eram complementadas por entrevistas e análise de documentação.
A iniciativa consolidou centenas de carreiras acadêmicas e profissionais, como a de Altaci Rubim, destacada pelas lideranças da comunidade Kokama, do Alto Rio Solimões, na Amazônia. Pouco tempo depois de concluir o doutorado em linguística na própria UnB, em 2016, ela viria a se tornar a primeira professora indígena da universidade.
Sem ofertas na sua área de atuação em universidades locais, a chegada de Altaci a Brasília foi um passo fundamental para a luta histórica do seu povo em preservar a sua língua. “Esse conhecimento ajudou a expandir as oficinas que nós levamos de município a município lá na minha região, que nós chamamos de oficinas itinerantes, onde nós formamos professores para dar aulas da língua nessas comunidades”, exalta a professora.
Ela também lembra que a via é de mão dupla, já que a própria comunidade acadêmica se beneficia e ajuda na preservação das culturas: “Nós contribuímos trazendo essa diversidade e ajudamos os alunos a serem mais sensíveis, mas é importante que todo o conhecimento não fique engavetado na universidade e retorne para as comunidades”, pontua.
Gargalos financeiros e desvalorização do ensino e da ciência
Com sucessivos cortes de orçamento desde o início de 2017, a UnB precisou passar por mudanças forçadas de rota. Márcia Abrahão relembra que assumiu o comando da universidade com um orçamento “cerca de 50% menor” do que o do ano anterior, e que foi obrigada a tomar decisões impopulares, que mobilizaram a comunidade e foram alvos de protesto.
Ela cita como exemplo o reajuste do restaurante universitário, “que não tinha alterações de preços há 24 anos, o que se tornou insustentável diante da inflação dos últimos anos”. “A situação se agravou ainda mais em 2021, quando pela primeira vez na história, a UnB não recebeu um tostão para investimentos, como compra de livros, equipamentos e obras”.
Mesmo diante dessas dificuldades, a reitora diz ter feito rearranjos para manter e ampliar o número de bolsas e investimentos em centros de pesquisa. “Tivemos que reduzir contratos com terceirizados, por exemplo, mas em compensação estamos investindo mais nas atividades-fim da universidade, que são o ensino, a pesquisa e a extensão”.
Edição: Felipe Mendes