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"Bolsonaro incita o ódio no debate público", diz Kennedy Alencar

Jornalista, convidado desta semana no BDF Entrevista, fala também sobre sua carreira, guerra, Lula e as eleições de 2022

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Jornalista Kennedy Alencar é o convidado desta semana no BDF Entrevista - Reprodução
Muitas vezes esse "jornalismo profissional" não foi nada profissional

Os casos de violência contra profissionais de imprensa em todo o Brasil bateram recordes no último levantamento realizado pela Fenaj, a Federação Nacional dos Jornalistas. Em 2021, foram registrados 430 casos, o maior número da série histórica, que teve início em 1990. Não por acaso, desde a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018, os números aumentam a cada ano.

Em 2019, o número de casos de ataques a jornalistas e também aos veículos de imprensa aumentaram 54%. No ano seguinte, o aumento foi de 105% E, obviamente, o grande perpetrador destas violências é o próprio presidente da República. Do total de 430 casos, somente ele foi responsável por 147 casos, 18 deles de agressões verbais a jornalistas. 

Para o jornalista Kennedy Alencar, colunista do UOL, o governo Bolsonaro “incita o ódio no debate público”. “O Brasil, desde o golpe parlamentar de 2016 enfrentou uma sequência, a meu ver, de momentos negativos que foram se retroalimentando, e a imprensa passou a ser mais hostilizada.”
 
“Acho que parte disso se deve, inclusive, a uma falta de vigilância da imprensa em relação à democracia, porque normalizou figuras autoritárias”, completa o jornalista, convidado desta semana no BDF Entrevista
 
Com mais de 40 anos de profissão e passagem por diversos veículos de imprensa, Alencar lembra que as agressões a jornalistas são condenáveis, mas que a “onda de solidariedade” que se cria após essa violências, devem “ser estendidas a todos os que são jornalistas e que exercem esse ofício no Brasil”. 
 
“Muitas vezes a gente não vê isso acontecer, eu vejo uma omissão da grande imprensa, inclusive, que tem poder para fazer mais cobranças ao Congresso Nacional, à Polícia Federal, ao Judiciário, para coibir esse tipo de violência contra jornalistas no Brasil”, afirma.

Na conversa, Alencar lembra a carreira de repórter, os anos de repórter especial em Brasília, a cobertura das guerras do Kosovo, em 1990, e do Afeganistão, em 2001, e também sua passagem pela assessoria de imprensa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 1994, durante as eleições daquele ano.  

“Quando eu entrei na campanha, ainda havia um clima…não tinha Plano Real e o Lula liderava as pesquisas. Veio o Plano Real e o Fernando Henrique inverteu a liderança e venceu no primeiro turno. E o Lula, que é o maior líder popular da história do Brasil, e é um político extraordinário, acima da média, tinha dúvida se o eleitor brasileiro votaria num ex-metalúrgico para a Presidência da República”.
 
“Ele chegou a pensar em preparar o [Aloizio] Mercadante, que foi vice dele naquela eleição, quando o [João Paulo] Bisol saiu da chapa. Ainda bem que ele foi candidato em 1998 e em 2002 se elegeu, porque eu acho que o Lula fez bem ao Brasil. Aquele período de 1994 e 2002, ou seja, os quatro mandatos: dois Fernando Henrique e os dois do Lula, levaram o Brasil para frente.”
 
Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Nos últimos anos, muito por conta de um incentivo oficial do Estado brasileiro, a violência contra jornalistas aumentou e muito. Ela sempre existiu, principalmente em regiões mais afastadas dos grandes centros, perpetradas por matadores de aluguel e jagunços. Hoje, ela aparece mais aos nossos olhos, em grandes cidades. Como você tem visto esse risco cada vez maior para o exercício da profissão?
 
Kennedy Alencar: Vejo com muita preocupação. Acho que a gente vive tempos de dificuldade, o governo Bolsonaro é um governo que incita o ódio no debate público. O Brasil, desde o golpe parlamentar de 2016 enfrentou uma sequência, a meu ver, de momentos negativos que foram se retroalimentando, e a imprensa passou a ser mais hostilizada.
 
Acho que parte disso se deve, inclusive, a uma falta de vigilância da imprensa em relação à democracia, porque normalizou figuras autoritárias, sobretudo a grande imprensa, que ameaçam a democracia brasileira. Agora, qualquer ameaça, contra qualquer jornalista da grande imprensa, de um veículo pequeno, ela tem que ser criticada, condenada, por todos nós. 
 
E não pode valer dois pesos e duas medidas, ou seja, quando um medalhão, um figurão, recebe um ataque do Bolsonaro, acontece alguma coisa, há uma onda de solidariedade, uma cobrança para uma onda de solidariedade. Acho que essa onda tem que ser estendida a todos os que são jornalistas e que exercem esse ofício no Brasil.
 
Muitas vezes a gente não vê isso acontecer, eu vejo uma omissão da grande imprensa, inclusive, que tem poder para fazer mais cobranças ao Congresso Nacional, à Polícia Federal, ao Judiciário, para coibir esse tipo de violência contra jornalistas no Brasil.
 
Você acredita que a grande imprensa tenha se perdido no meio desse processo todo? Porque a mídia perdeu parte de sua validade com a população, com alguns personagens, alguns assuntos. O Whatsapp, o Telegram, o Twitter, enfim, fazem  o papel de responsáveis pelo intermédio da notícia. Muito mais do que o próprio jornalista.
 
Tenho certeza que a grande mídia se perdeu nesse processo e não compreendeu bem. Inclusive, a grande mídia gosta de usar o jargão “jornalismo profissional”, e muitas vezes esse jornalismo profissional não foi nada profissional. 
 
Em relação à Lava Jato, por exemplo, não foi jornalismo, foi uma assessoria de imprensa o que a TV Globo e alguns jornalistas de alguns veículos fizeram, em relação ao [Sergio] Moro, ao [Deltan] Dallagnol e os procuradores da força-tarefa de Curitiba. Aquilo não é jornalismo investigativo nem aqui, nem na China.
 
Muitas entidades representativas do jornalismo, como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), por exemplo, abraçaram esse tipo de jornalismo que, a meu ver, não é jornalismo investigativo. Eu entendo que a grande imprensa e a imprensa como um todo, contribuiu para seu descrédito em relação a alguns setores e isso permitiu que a extrema direita, setores que usam a mentira como arma política, tentassem nivelar todo mundo por baixo.
 
Em um ataque à democracia, essas figuras autoritárias procuram tirar a credibilidade da imprensa e dos jornalistas, porque no momento em que a imprensa e os jornalistas perdem credibilidade, as pessoas passam a dar credibilidade a qualquer tipo de corrente no Whatsapp, numa rede social, a fake news. Portanto, eu entendo que é uma parcela sim de culpa do jornalismo profissional, da grande imprensa, em relação à perda de prestígio de credibilidade da própria imprensa.
 
Como jornalista, você entrevistou os principais líderes da América Latina, entre outros tantos do mundo, naquela onda progressista dos anos 2000. Você acredita que ainda há espaço para esse tipo de união do cone sul e também para líderes com aqueles perfis? E há uma entrevista preferida dentre elas?
 
A do [Hugo] Chaves foi bastante especial, porque ele, inclusive, cantou no finalzinho uma canção que a avó cantava para ele e respondeu de uma maneira, a meu ver, muito aberta aos questionamentos que eu fiz na época. Uma entrevista da qual eu gosto, eu fiz no “É Notícia!”, que eu apresentava na Rede TV. 
 
Eu acho que, a depender do resultado em outubro, da eleição presidencial no Brasil, pode haver uma oportunidade para um novo rearranjo de forças progressistas da América Latina. O Lula esteve recentemente com Emmanuel Macron, da França, e o Macron falou para ele que era fundamental uma vitória dele [Lula], porque isso significaria que o Brasil voltaria a ter uma liderança regional importante na América do Sul e na América Latina.
 
E que, para a Europa, era importante uma aliança com a América Latina, porque a Europa está espremida entre os Estados Unidos, de um lado, e a China do outro. Como um bloco econômico político, a União Europeia tinha interesse em uma boa relação com a América Latina. 
 
O Lula pode, por exemplo…nós não temos relação, hoje, com a Venezuela. Estamos sem Embaixador e sem Embaixada na Venezuela, pela miopia política do Bolsonaro. O Lula esteve com o [Manuel] López Obrador agora, no México, o Boric ganhou no Chile, o Alberto Fernández na Argentina. 
 
Uma vitória do Lula pode permitir um novo realinhamento de forças progressistas democráticas - não precisam nem serem todas de esquerda, mas democráticas - para dar à América Latina uma ação mais conjunta na no cenário geopolítico. Acho que isso passa pela cabeça do Lula. 
 
Quando ele foi presidente, estimulou muito a arquitetura do G20, a questão do Mercosul, coisas que o Lula procurou criar na comunidade sul-americana e foram, ao meu ver, iniciativas importantes, que podem ser retomadas com uma vitória dele. Se o Bolsonaro for reeleito é um desastre, uma ameaça à democracia brasileira, é a continuidade de uma divisão na América Latina, que não interessa aos latino-americanos.
 
É o pior cenário para o Brasil, a reeleição do Bolsonaro. Eu acho que a chance disso acontecer é baixa. Acho que o cenário que deverá ocorrer, o favorito para vencer a eleição é o Lula, mas faltam aí quase seis meses para a eleição presidencial, a gente tem que ter cuidado porque, no Brasil, como diria o Pedro Malan, é difícil fazer previsões até sobre o passado, quem dirá sobre o futuro.
 
Você também atuou como repórter de guerra no Kosovo e no Afeganistão. Hoje, a gente vive uma enxurrada de informações sobre a guerra Rússia x Ucrânia, mas pouca informação checada no campo. Como essa guerra se diferencia das outras? Quão mais complexa ela parece ser?
 
Ter menos informação em campo é um pouco essa crise da imprensa brasileira, uma certa decadência da importância do jornalismo internacional. Os veículos brasileiros já tiveram mais correspondentes no exterior e tiveram mais interesse em enviados especiais para esse tipo de cobertura. 
 
Eu mesmo fui enviado especial para cobrir o Kosovo, o conflito lá em 1999 e para o Afeganistão, em 2001, logo após o atentado de 11 de setembro. Nesse conflito específico, a gente vê que são dois países - e por mais que tentem vender a Ucrânia como uma democracia, o [Volodymyr] Zelensky tem uma atitude autoritária em relação à oposição, e o [Vladimir] Putin é um autocrata - é uma guerra entre dois países que não tem uma tradição de boa convivência com a oposição e com a liberdade de imprensa.
 
Você viu os jornalistas brasileiros se retirando da Ucrânia de áreas sob controle da Ucrânia, por se sentirem inseguros para trabalhar. Você, numa guerra, normalmente está acompanhado de um dos lados. É a forma mais segura de você cobrir um conflito, do que estar sozinho numa terra de ninguém. 
 
Você está transitando de um lado, ou seja, você está na companhia de um exército profissional, você tem mais proteção. Ao mesmo tempo, esse exército profissional tem interesse em vender uma versão para você. Então, você também tem que ter os filtros para não comprar todas aquelas versões, e num cenário de guerra, é legítimo que os governos tomem medidas de contenção, de maior vigilância, é uma guerra, não é um cenário de normalidade.
 
E aí, a liberdade de imprensa é sempre uma coisa muito tolhida. Eu me lembro que no Kosovo, quando eu cheguei em Belgrado, na Sérvia, o [Slobodan] Milošević fechou o espaço aéreo e também fechou o serviço de internet internacional. Eu usava um serviço interno sérvio, com a senha emprestada pelo embaixador [Adolf Libert] Westphalen para poder enviar as reportagens.
 
A gente tem que estar preparado também, porque a realidade de uma guerra, de um cenário de restrições. Você vai chegar no lugar e não é como estar em uma democracia, cobrindo normalmente os eventos. Você tem que entender que você está no cenário em que o uso da força está sendo a determinante, e entender o que está acontecendo.
 
Eu acho que o que essa guerra tem de diferente, em relação a outras, me parece que a presença das redes sociais, agora, está muito mais desenvolvida e é muito mais ampla. Isso inibe ações indevidas, ilegais, dos dois exércitos, mas elas acontecem nas guerras, é importante a gente entender, mas não justificar que elas aconteçam.
 
Há um maior cuidado, eventualmente, pela vigilância que se tem. Ao mesmo tempo, aqui no Ocidente, se comprou completamente a versão da Ucrânia, sem entender que a expansão da Otan para o Leste é uma das causas do conflito. Isso não significa passar pano para o Putin, nem aceitar que o seu uso da força  seja algo legítimo. Não é legítimo, o Putin é um agressor, a Rússia é uma agressora.
 
Agora, o presidente Zelensky conduziu de forma irresponsável a escalada do conflito. É irresponsável ele pedir para a população civil, que lute com coquetel molotov contra um exército profissional. E aí se descobre, depois, valas comuns de civis que foram enfrentar um exército profissional e que sofreram abusos que têm que ser criticados, e as pessoas se espantam que isso tenha acontecido.
 
O dever de um líder é proteger a sua população. No caso, ali, é o exército profissional ucraniano que tem que estar enfrentando um exército profissional russo. Armar a população civil e pedir que a população civil lute uma guerra assimétrica contra um exército que é a segunda máquina militar do planeta, me parece bastante irresponsável. Mas falar isso, parece que você está criticando o Zelensky.
 
É um presidente irresponsável, uma espécie de Danilo Gentili, um imbecil, que está no comando de um país. É isso que está lá na Ucrânia e você não vê esse relato na imprensa ocidental. 
 
Eu estava há pouco nos Estados Unidos e é incrível como a própria imprensa americana, que tem uma tradição de cobertura de guerra, como a CNN, tomou partido da Ucrânia, claramente, sem olhar para o próprio rabo. Porque o que a Rússia faz de ilegal na Ucrânia, os Estados Unidos fizeram na Líbia, fizeram na Síria, fizeram no Iraque.
 
Eu não estou justificando ações abusivas e ilegais do Putin, nem dos russos. Só estou dizendo que os Estados Unidos não tem autoridade moral para se comportar como polícia do mundo, como se comportam, e achar que eles têm que estar isentos à crítica, ou seja, que eles não possam ser criticados.
 
E há uma participação importante dos Estados Unidos nesse processo todo. Nas mesas de negociações, Joe Biden poderia ter descartado a entrada da Ucrânia na Otan. Mas, pelo contrário, eles alimentaram, de alguma maneira, essa guerra.
 
Sem dúvida, alimentaram porque a indústria bélica deles se beneficia disso. Os Estados Unidos já são parte indireta da guerra, ao fornecer armas e equipamentos militares indiretamente, e dar o apoio que o Biden anunciou em ajuda financeira, é uma participação indireta no conflito. 
 
É que o Putin também não quer escalar o conflito para um nível nuclear, isso não deve acontecer, está no nível da retórica. Mas há uma clara participação da União Europeia e dos Estados Unidos, ao armar a Ucrânia. Isso aconteceu na Segunda Guerra Mundial, até os Estados Unidos entrarem na Guerra, depois do ataque a Pearl Harbour, eles ajudavam os ingleses, os britânicos e os franceses, com suprimentos, com equipamento.
 
Os presidentes americanos, normalmente, a popularidade deles cresce quando eles se envolvem em conflitos. Isso aconteceu com Biden no começo, mas depois houve uma queda eu não acompanhei, nas últimas duas semanas no detalhe para te falar, como é que está agora, mas claramente, durante o tempo em que eu estive lá, passei três semanas no mês passado, nos Estados Unidos, é impressionante como tomaram partido, de uma forma crítica, da Ucrânia e do Zelensky, que, a meu ver, é parte do problema.
 
Você transitou por Washington durante muito tempo, acompanha a política estadunidense, e diversos analistas apontam uma grande chance de derrota do Biden e dos democratas nas próximas eleições. Outros ainda especulam uma volta de Donald Trump. Há criação de empregos nesse momento na economia estadunidense, uma leve melhora econômica… O que turva o ambiente na política estadunidense?
 
É um país muito dividido, muito polarizado. Eu tenho cuidado para falar porque é importante estar acompanhando no dia a dia para você analisar com mais informação, mas eu acho que o Biden ainda é favorito para uma reeleição. Não está claro se o Trump vai conseguir ser candidato pelo Partido Republicano.
 
O trumpismo segue vivo lá porque é um país dividido, polarizado, o uso da mentira como arma política é poderoso e o Biden teve uma votação histórica, mas o Trump também. Ele teve mais votos do que teve em 2016, mas eu não acredito que o Trump consiga derrotar o Biden em 2024. 
 
Eu acho que a economia é um um ativo que o Biden tem, está melhorando, ele tem uma visão de que é preciso a presença do Estado na economia, ele tem dado incentivos que remontam à época do New Deal, o próprio Trump injetou muito dinheiro público nas famílias americanas durante a pandemia.
 
Do que eu acompanho, tem agora as eleições de meio de mandato, como eles chamam, há um risco de os democratas perderem a maioria na Câmara e no Senado, que já é muito apertado e depende do voto da Kamala Harris, porque lá a vice-presidente também é a presidente do Senado.
 
É uma eleição que parece difícil para os democratas. É sempre difícil para quem está no poder, porque tem um desgaste. É uma disputa muito acirrada entre democratas e republicanos, mas eu ainda acredito que o cenário mais provável, se o Biden for candidato, é de uma reeleição dele, com base na obra econômica. E acho difícil uma vitória do Trump, incerto ainda que ele seja o candidato do Partido Republicano.
 
Você foi assessor de imprensa do ex-presidente Lula na eleição presidencial de 1994, depois em 1995,  quando ele perdeu a eleição para o Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Como foi,  para você, estar do outro lado do balcão? E o que te chamou mais a atenção, naquela época, acompanhando uma figura ascendente - obviamente o Lula já tinha uma história, já tinha uma disputa de 1989 contra o Fernando Collor - mas ainda não tinha se cristalizado como esse candidato que chegaria e ganharia uma eleição como a de 2002?
 
Fiz a campanha presidencial em 1994 e depois continuei com ele até abril, maio de 1995. Depois retornei para a Folha [de São Paulo] e dei sequência de uma carreira só no jornalismo. O Ricardo Kotscho era o assessor de imprensa principal e precisava de alguém para dividir com ele o atendimento à imprensa, à área internacional. Eu havia morado em Londres em 1993, meu inglês estava bom naquela época.  
 
Quando eu entrei na campanha, ainda havia um clima…não tinha Plano Real e o Lula liderava as pesquisas. Veio o Plano Real e o Fernando Henrique inverteu a liderança e venceu no primeiro turno. Então eu pude presenciar uma campanha em crise, isso também é muito rico para você, aprender num cenário de crise, ver uma campanha presidencial é muito interessante. 
 
E o Lula, que é o maior líder popular da história do Brasil, e é um político extraordinário, acima da média, é um estadista, foi um bom presidente, naquele momento o próprio Lula tinha dúvida se o eleitor brasileiro votaria num ex-metalúrgico para a Presidência da República, inclusive ele chegou a pensar em preparar o [Aloizio] Mercadante, que foi vice dele naquela eleição, quando o [João Paulo] Bisol saiu da chapa.
 
O Lula tinha dúvidas se um dia ele seria eleito, se talvez não elegeriam um professor da USP, um intelectual. Ainda bem que ele foi candidato em 1998 e em 2002 se elegeu, porque eu acho que o Lula fez bem ao Brasil. Aquele período de 1994 e 2002, ou seja, os quatro mandatos: dois Fernando Henrique e os dois do Lula, levaram o Brasil para frente.
 
Houve estabilização da economia, houve a criação de um colchão social, o Brasil andou para frente naquele momento. A Dilma [Rousseff], a meu ver, no primeiro mandato cometeu alguns erros que acabaram enfraquecendo e deixando o governo sem capacidade de resistência ao impeachment. Você vê que até o Bolsonaro é capaz de fazer uma aliança com um terço do Congresso para evitar o impeachment.
 
Por isso, é muito importante que a bancada progressista eleja pelo menos um terço do Congresso, da Câmara dos Deputados, para evitar essa chantagem do Centrão, dos conservadores, que é usar o impeachment contra o presidente de plantão. 
 
Mas, voltando àquela experiência de 1994, ela foi muito rica. E quando você é assessor de imprensa, você não é repórter. Você é um jornalista que está, claramente, de um lado que você tem que defender, você não deve mentir para os jornalistas. É legítimo que algumas coisas você não diga, algumas coisas que o seu assessorado quer manter em segredo.
 
O jornalista que vai ser assessor de imprensa e acha que é repórter, que tem que ficar ele mesmo dando furo o tempo inteiro, ou trabalhando nesse sentido, eu acho que ele não presta um bom serviço ao assessorado e nem a imprensa. Eu acho que aí tem que haver um equilíbrio, tem que entender que se você está do outro lado do balcão, você está do outro lado do balcão, você é parte, você é assessor de uma parte da política.
 
Se você é repórter, é jornalista não, aí é um outro papel. É importante ter bem claro isso para não confundir, ou seja, jornalista que se comporta como assessor de imprensa não está fazendo o papel dele bem, e assessor de imprensa que se comporta como jornalista no sentido de repórter, de uma pessoa da dita imprensa, também não está fazendo o papel dele bem, no meu entender.
 
E como foi para você virar essa chave?
 
Eu já tinha sido repórter na Folha, entrei em 1990, já tinha feito um informativo para a  Associação Paulista de Futebol Dente de Leite, mas eu entrei mesmo para trabalhar na grande imprensa em 1990, como redator na Folha. Depois fui repórter durante um período curto, morei um tempo em Londres, voltei, estava na reportagem cobrindo eleição estadual.
 
Eu voltei depois a ser repórter, eu gosto de ser jornalista. Quando eu voltei em 1995, o Marcelo Beraba que era secretário de redação falou que precisava puxar um “tempo de cadeia”, ou seja, fazer uma quarentena em relação à cobertura política e fiquei seis meses cobrindo a área policial, gostei muito, foi muito interessante.
 
Depois, o Fernando Canzian virou editor da coluna Painel, me chamou para ser auxiliar dele, o número dois dele. O Otávio Frias Filho, então diretor de redação, perguntou se eu conhecia a figura da “Mulher de César”. Eu falei que sim, que além de ser honesta, ela tinha que parecer, que eu entendia o que ele estava me falando. Ele se eu havia sido filiado ao PT, eu disse que não, que eu não tinha filiação partidária. E toquei a vida ali como adjunto do Painel. 
 
Um tempo depois, o Canzian foi editar política e o Otávio me convidou para ser editor do Painel, me bancou como editor do Painel, mesmo quando o [José] Serra, algumas pessoas, pediam a minha cabeça, me chamando de petista, porque eu havia sido assessor de imprensa do Lula.
 
Eu sou muito grato ao Otávio, porque ele resistiu, não aceitou a pressão para me tirar do Painel e eu fui editor do painel durante quatro anos. Depois me voluntariei para cobrir guerra. Fui repórter especial em Brasília, no finalzinho do governo Fernando Henrique, naquela época do apagão, vim para Brasília em 2000 e estou aqui até hoje.
 
Você já foi mediador de uma série de debates. O  que esperar desse ano, uma confrontação direta entre o Lula e o Bolsonaro, ou outros elementos devem se juntar a esse caldo? Ciro Gomes, Simone Tebet, João Doria, o próprio Eduardo Leite, eles podem aparecer nos debates eleitorais como figuras importantes?
 
Acho que não há espaço para a terceira via. Acho que ela é uma segunda via do bolsonarismo, são figuras que apoiaram Bolsonaro abertamente, ou escamotearam no voto nulo em 2018. Quem votou nulo, inclusive jornalistas que eu conheço, amigos meus que votaram nulo, acabaram votando para ajudar o Bolsonaro. O voto nulo ajuda quem está em primeiro lugar, se votarem nulo agora em 2022, deverão ajudar o Lula, que está na dianteira nas pesquisas.
 
Sobre os debates, o Bolsonaro está em segundo lugar nas pesquisas, ele é o presidente que tem que disputar a reeleição. Há seis meses das eleições, em 1998, quando Fernando Henrique foi candidato à reeleição, 2006 quando o Lula foi candidato à reeleição e em 2014, quando a Dilma foi candidata à reeleição, esses três presidentes estavam numa situação muito melhor nas pesquisas do que está o Bolsonaro.
 
É inegável que ele cresceu um pouco nas pesquisas, até porque ele tem os instrumentos de poder, está com o Ciro Nogueira, o Centrão montando uma estratégia política para ele, tentando voltar a se moderar um pouco, mas a gente sabe que ele é essa figura desprezível, de extrema direita e não devemos normalizar o Bolsonaro. Não devemos cair na falsa equivalência que a imprensa brasileira continua a fazer: se fala do Bolsonaro, fala do Lula também, como se fossem dois extremos.
 
Não são dois extremos, são dois polos: um polo é democrático, que já esteve no poder, obedeceu a democracia;  o outro polo é reacionário, é regressivo, é contra a democracia. Então não são dois lados de uma mesma moeda. 
 
Eu não acredito que não há espaço para a terceira via. Acho que a terceira via no Brasil, hoje, seria o Ciro que tem, de fato, uma posição de distanciamento e crítica muito dura ao Lula, e de crítica ao Bolsonaro. Não vejo Simone Tebet, Doria, Luciano Bivar, Eduardo Leite com condição de prosperarem, competitivos. 
 
Acho que o Bolsonaro, que está em desvantagem, vai pensar duas vezes antes faltar a um debate. O debate presidencial é sempre uma oportunidade para quem está atrás ferir o líder e acho que o Lula vai pensar bem antes de aceitar todos os debates, qualquer debate, porque ele está em uma posição de liderança e é quem tem mais a perder. 
 
A gente tem que ver o que que vai acontecer, como as pesquisas vão estar, se será estrategicamente importante para o Lula e para o Bolsonaro. Se eu fosse da campanha dele, eu aceitaria participar de todos os debates. Ele está em segundo lugar, ele é um presidente que está com dificuldade para se reeleger, e ele é um mentiroso, e mentirosos tem pouco a perder no debate.
 
Mas ele também é um covarde. Ele fugiu dos debates em 2018, quando ele já estava liberado no episódio da facada. É um despreparado também, apesar de mentiroso é uma figura muito fraca, ele é uma pessoa que é uma mistura. Ele tem uma inteligência política, uma esperteza política, porque chegou à Presidência da República, e entendeu esses mecanismos de manipulação de guerra cultural, que ele faz quando ele ataca a Anitta, quando ele ataca o Alexandre de Moraes, quando ele cria essas falsas polêmicas - palavra que a imprensa adora - ele está fazendo isso com uma estratégia de guerra cultural.
 
Agora, do ponto de vista do exercício do poder é alguém que não compreende as relações internacionais, não compreende a economia, tem uma má compreensão do que é o Parlamento, porque tem uma visão deturpada da democracia. Então, a ida dele a um debate é um risco, dado o despreparo e a ignorância dele como Presidente da República.
 
É o pior presidente da nossa história, deve ser comparado aos generais-presidente da época da Ditadura Militar de 1964, mas acho que, do ponto de vista da capacidade cognitiva, talvez ele consiga perder até do Costa e Silva.

Edição: Rodrigo Durão Coelho