A morte de um herói nacional é simbólica para denunciar um governo pautado na mentira
Por Phillipe Cupertino*
O feriado e o dia de Tiradentes soma-se a outras datas cívicas que escolhemos enquanto nação atribuir um significado específico. No caso de 21 de abril, homenageia-se Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, trabalhador em múltiplas funções, como dentista, tropeiro e minerador, que foi condenado à morte pela colônia por lutar pela independência em 1792. Um século depois, de algoz do sistema torna-se oficialmente herói nacional, alguém para ser lembrado no contexto de consolidação do republicanismo no Brasil.
Nesta mesma semana, temos o Dia do Índio, ou melhor dizendo dos Povos Indígenas, originários, assim como o Dia do Exército, ambas as datas celebradas em 19 de abril. Além destas celebrações, os movimentos sociais e lutadores populares denunciam o Massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, reivindicando a memória dos 21 trabalhadores e trabalhadoras assinados em uma operação das forças de segurança pública do estado do Pará.
Todas estas datas em alguma medida nos permitem provocar uma série de reflexões acerca do nosso projeto de nação em construção e ao mesmo tempo em disputa, sobretudo no momento que vivemos no país, em que temos a partir do golpe de 2016 que levou ao impeachment da Presidenta Dilma um agravamento da concentração de renda, das desigualdades sociais, do desemprego, da inflação, da corrupção e pelo desmonte das políticas públicas sociais.
Neste dia que relembramos a morte de Tiradentes, herói escolhido para simbolizar a consolidação da República, devemos nos perguntar em que medida as autoridades que ocupam os principais cargos deste país se pautam, por exemplo, nos princípios da impessoalidade e da supremacia dos interesses públicos, que são centrais para esta regime de governo que adotamos desde 1891.
Para contribuir para este debate, devemos levar em consideração alguns fatos recentes: o fato do estado de origem do Presidente da Câmara de Deputados, um dos menores e menos populosos, ter o maior percentual de dinheiro de emendas do FNDE1; o ministro da educação do Governo Bolsonaro ser instruído pelo chefe de Estado a priorizar amigos de pastores na liberação de verbas, articulação reveladas por áudios que vieram a público2; gravações de ex-ministros do Superior Tribunal Militar no contexto da ditadura em que admitem terem ciência da prática de torturas inclusive entre mulheres grávidas - práticas repugnantes ocorridas em nome desta instituição nos anos de chumbo defendidas por parte considerável do alto escalão militar brasileiro3.
Estes episódios recentes não são fatos isolados na história do Brasil, e muitos menos no contexto mais recente em que temos um chefe de Estado que governa explicitamente para uma minoria, seja para blindar seus familiares e aliados de investigações e processos criminais; seja para criminalizar a luta dos movimentos sociais e ao mesmo tempo favorecer os grileiros, latifundiários, mineradoras clandestinas, grupos seletos de empresários que rejeitam o projeto de soberania, de desenvolvimento nacional, de pluralismo político e étnico para o Brasil.
Se a memória se faz no presente e diz mais sobre os dias de hoje do que o próprio passado, como defende o historiador Michel Pollak, temos o dever de reivindicar e ressignificar o que Tiradentes e sua morte representam, um homem que foi torturado e enforcado na forma de espetáculo, para denunciar este governo que se pauta na mentira, no culto à tortura, à morte e que vem sequestrando a liberdade de milhões de brasileiros e brasileiras de terem refeições adequadas e diárias, de morar bem, de poder sonhar e lutar por uma vida melhor.
1 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/04/20/alagoas-arthur-lira-percentual-dinheiro-emendas-fnde-orcamento-paralelo.htm
2 https://oantagonista.uol.com.br/brasil/pastor-do-mec-exibiu-barra-de-ouro-em-hotel-de-brasilia-diz-jornal/
3 https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/04/19/presidente-do-stm-desdenha-da-revelacao-de-audios-que-comprovam-torturas-na-ditadura.ghtml
* Phillipe Cupertino é professor universitário e pesquisador.
**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria