Rio de Janeiro

CULTURA EM XEQUE

RJ: Galpão do Valongo onde funcionava a Ação da Cidadania é abandonado pela Fundação Palmares

Projeto para tornar espaço centro de referência do Cais do Valongo e Museu da Escravidão se arrasta por três anos

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Prédio foi construído por André Rebouças, abolicionista e primeiro engenheiro negro - Divulgação

Considerado Patrimônio Mundial da Unesco desde 2018, o Cais do Valongo, na zona portuária do Rio de Janeiro, foi porta de entrada de mais de 1 milhão de escravos africanos entre os séculos XVIII e XIX. Diante do sítio arqueológico está o galpão Docas Pedro II, construído no início dos 1800 pelo engenheiro negro e abolicionista André Rebouças. Uma das condições, na época da concessão do título da Unesco, era que o galpão se tornasse um centro de interpretação e pesquisa da cultura negra.

Construído no início do século XIX e considerado Patrimônio Mundial da Unesco desde 2018, o Cais do Valongo, na zona portuária do Rio de Janeiro, tem diante de seu sítio arqueológico por onde entraram mais de 1 milhão de escravos africanos o Galpão Docas Pedro II. Uma das condições, na época da concessão do título, era que o local se tornasse um centro de interpretação e pesquisa da cultura negra.

Leia mais: Cais do Valongo é reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco

Contudo, um grande imbróglio envolvendo a gestão do ex-prefeito Marcelo Crivella (PRB), a Fundação Palmares e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) faz com que o galpão seja hoje um local abandonado e que não possui nem mesmo energia elétrica. Apesar da proposta de que a Fundação Palmares destinasse o local à difundir a história do Valongo, o governo de Jair Bolsonaro (PL) não moveu recursos para colocar o espaço em funcionamento.

Para movimentos sociais e populares, outro fator a se lamentar é que durante 20 anos funcionou no galpão a Ação da Cidadania, que atuou e atua fortemente com programas de combate à fome e serve cerca de mil quentinhas por dia para a população carente da capital. O presidente do conselho da organização não-governamental, Daniel Souza, disse que a ideia era deixar o local e desenvolver uma parceria com a Fundação Palmares.

Segundo ele, a Ação da Cidadania deixaria o galpão, que pertence à União, para que a prefeitura também criasse o Museu da Escravidão. Na permuta, a ONG pediu que fosse transferida para dois espaços menores da Prefeitura do Rio, também na zona portuária. Mas a gestão de Crivella não aceitou a proposta. 

"Quando chegamos ao armazém de Docas, tudo estava caindo. Reformamos tudo. Com a entrada do Iphan e da Fundação Palmares e na nossa saída, fizemos a proposta de uma parceria. Entendemos, então, que eles não queriam fazer nada ali, não tinha projeto, o projeto era a destruição", conta Daniel, já se referindo à Fundação Palmares no governo de Bolsonaro. 

O representante da Ação da Cidadania explica que a parceria era manter a ONG no mesmo local, já que foram realizados altos investimentos na reforma.

"Nunca nos recusamos a sair, mas queríamos condições justas. Agora que mudamos, reformamos o novo galpão onde agora estamos. Tudo isso podia ter sido feito para melhorar o Docas, que está agora abandonado pela Fundação Palmares", critica Daniel Souza.

Acervo em risco 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o representante do Ministério Público Federal (MPF) que mediou as conversas entre Ação da Cidadania, Prefeitura do Rio, Iphan e Fundação Palmares, o procurador Sergio Gardengui Suiama, disse que teme pela preservação do acervo, que possui 1,3 milhão de peças.

"Não é só colocar uma placa sobre o que representa aquilo. É tornar o galpão um memorial do Valongo, que deve abrigar um laboratório de arqueologia, a Fundação Palmares e o centro de interpretação do Valongo, que é uma exigência da Unesco. E os prazos já expiraram, há exemplos de locais que perderam o título de patrimônio mundial por não cumprirem o que foi estabelecido", explica Suiama.

O processo teve início ainda no governo de Michel Temer (MDB) e, na opinião de Daniel Souza e Suiama, desandou a partir de Bolsonaro e de Sérgio Camargo à frente da Fundação Palmares. Segundo o representante do MPF, o Iphan realizou todo o projeto "à revelia da sociedade e sem consultar ninguém".

Esvaziada por Bolsonaro e pela própria administração, a Fundação Palmares precisaria de R$ 40 milhões, segundo Suiama, para concluir as obras e dar início ao funcionamento do galpão. Como o projeto ainda não foi entregue pela empresa contratada pelo Iphan, o poder público não poder sequer abrir licitação. "A perspectiva não é positiva, pelo menos nesse governo", completa Suiama.

Diante das denúncias do MPF e da demora para a efetivação do galpão como centro de referência para a cultura negra e para a história do Brasil, o próximo passo na tentativa de resolução do impasse está marcado para o mês que vem, quando a Justiça do Rio de Janeiro irá realizar uma inspeção in loco.  

"A Fundação Palmares tem uma equipe ínfima, quem coordena não tem nenhum compromisso e também não tem dinheiro. Há risco de incêndio e de perda de tudo o que foi escavado, catalogado e encaixado. Esperamos uma solução a partir de maio", comentou o procurador.

O Brasil de Fato procurou a Fundação Palmares mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Edição: Mariana Pitasse