A imaginação histórica deve obedecer ao método e à disciplina. Mas é também um exercício útil
Se para o Brasil tivéssemos feito um estudo sério da realidade teríamos chegado à conclusão de que a principal tarefa revolucionária em toda a América Latina era muito mais modesta que preparar a guerra de guerrilhas: havia que impedir que triunfara o putsch reacionário gorila que se estava preparando (...). A situação latino americana, como a do país irmão (Brasil), com sua história, economia, relações sociais, política e caráter do governo indicavam que era inevitável um golpe de estado reacionário. A grande tarefa era, então, mobilizar o movimento de massas brasileiro para freá-lo ou esmagá-lo, sem depositar a mais mínima confiança no governo de (Jango) Goulart (...) A mais trágica derrota do movimento de massas latino americano nos últimos vinte anos foi a do Brasil. Essa derrota vai refletir em todo nosso continente. (tradução livre)
Nahuel Moreno
Não sabemos. Se tivesse existido a determinação de resistir por parte do governo Jango, se tivesse sido feito um chamado à greve geral e às ruas, se tivesse acontecido uma explosão de fúria popular teria sido possível dividir a alta oficialidade, neutralizar uma parcela das forças sociais hostis, deter o avanço da coluna que partiu de Minas Gerais, ou ganhar tempo para um contra-ataque?
Análises contrafactuais são perigosas. Afinal, “o que tem de ser tem muita força”, ensina a sabedoria popular. A consideração de desfechos alternativos não pode ir além de limites estritos. A “imaginação” histórica deve obedecer ao método e à disciplina. Mas contrafactuais são, também, um exercício útil. A força do passado alimenta uma ilusão de ótica anulando outros desenlaces possíveis. O que aconteceu não poderia ter sido diferente? Não estava em disputa?
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O que é certo é que se uma contrarrevolução triunfou em 1964 foi porque uma fração dirigente da classe dominante brasileira se preocupou, seriamente, com o perigo de uma revolução e apoiou o putsch. A quartelada não foi uma aventura militar desconectada das opiniões da maioria da burguesia. Ainda que tenha sido uma ação preventiva, a avaliação dos golpistas atormentados pela radicalização da revolução cubana não foi somente um “delírio paranoico”.
Foi uma iniciativa por antecipação, prevendo que o tempo corria contra seus interesses. Havia um plano. Uma preparação tinha sido articulada. Um cálculo de risco tinha sido feito. No Brasil de 1964 existia em curso uma dinâmica de luta de classes que se aproximava de uma situação revolucionária.
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Não são as organizações que precipitam uma situação revolucionária, mas o combate de milhões de pessoas, até então inativas, quando descobrem interesses comuns, confiança em si próprios e disposição de luta. Uma situação revolucionária é uma etapa em que a vitória de uma revolução é, politicamente, possível. Não era impossível que o impulso da luta pelas reformas de base ganhasse dimensão nacional. Que estivesse colocada no “campo de possibilidades” não autoriza concluir que seria a hipótese mais provável. Mas a percepção de que a luta de classes estava mais intensa, aguda, exasperada era generalizada. Todas as lideranças sociais e políticas eram conscientes da máxima gravidade do momento.
Era possível, portanto, uma resistência ao golpe apoiada na mobilização operária e popular. O comício da Central do Brasil tinha confirmado que existiam reservas gigantescas de energia política entre as massas. Não há como aferir, estimar, e calcular se uma resistência, na forma de greve geral e ocupação das ruas, por exemplo, seria suficiente para derrotar a coluna militar golpista. Mas essa hipótese não merece ser descartada.
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A orientação do governo João Goulart, ou até do PC liderado por Luís Carlos Prestes, não era de precipitar um confronto que se desenhava no horizonte. Mais grave é que foram surpreendidos, absurdamente, porque a conspiração militar não era um segredo. Subestimaram o perigo da contrarrevolução. A contrarrevolução não subestimou o perigo de uma revolução.
A linha que prevaleceu nas Forças Armadas, com apoio da embaixada dos EUA foi a insurreição militar. Não era difícil compreender que Jango não seria nunca um Fidel. Mas o perigo de “descarrrilhamento’ e descontrole das pressões populares estava no ar com a crescente indisciplina entre soldados, marinheiros e suboficiais.
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A marcha na capital paulista com centenas de milhares em defesa da família e da propriedade era uma sinalização clara de perigo “real e imediato”. Nem a burguesia brasileira, nem o governo norte-americano estavam dispostos a correr o risco de uma “nova Cuba”, só que agora no país chave do continente.
Germinava a necessidade de revolução democrática-nacional para libertar a nação da dependência norte-americana, para estender os direitos civis a todos, incluindo a maioria afro-descendente; uma revolução agrária pela divisão da terra; finalmente, mas não menos importante, uma revolução operária pelo direito a melhores salários e condições de vida.
Esta tensão social latente resultava da insatisfação histórica de demandas e expectativas sempre postergadas. A dinâmica histórico-social desta simultaneidade de revoluções resultava na demanda de um programa anticapitalista. Mas este processo foi interrompido pela derrota histórica. Mais grave, porque foi uma derrota sem resistência no momento do golpe.
O Brasil, durante a ditadura militar, regrediu. Fomos uma das pátrias do capitalismo mais dependente, selvagem, bárbaro. O Brasil gerado pela ditadura perdeu imensas oportunidades históricas para um crescimento com desenvolvimento menos desigual, menos destrutivo, menos desequilibrado. Gerou uma sociedade amordaçada, culturalmente, pelo medo; amputada, educacionalmente, pela desqualificação do ensino público e favorecimento do privado; fragmentada, socialmente, pela superexploração do proletariado pelos salários de miséria; transfigurada pela explosão de violência e delinquência.
O que a ditadura fez foi condenar o país a manter, por mais meio século, a condição de semicolônia comercial norte-americana. Toda tentativa de diminuir o impacto reacionário da insurreição militar que levou os ditadores Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo à presidência, com poderes ultraconcentrados, em terrível sequência de arbítrio, violência e repressão é uma falsificação histórica.
Durante vinte anos a ditadura militar impôs o terror de Estado para preservar a estabilidade política. A ditadura silenciou uma geração. Perseguiu dezenas de milhares, prendeu milhares, matou centenas. Foi um triunfo contrarrevolucionário que inverteu a relação de forças político-social em escala continental, revertendo a situação promissora aberta pela revolução cubana em 1959, por vinte anos, até a queda de Somoza na Nicarágua em 1979. A queda de Jango foi uma tragédia política em toda a linha, com gravíssimas consequências sociais - e até culturais.
Ironia da dialética da história, não fosse o papel do proletariado na luta contra a ditadura, a partir de 1978, Lula nunca teria sido eleito presidente da República quase vinte anos depois das “Diretas Já”. E não estaria agora disputando a presidência pela terceira vez, vinte anos depois de 2002.
Ousar lutar, ousar vencer.
*Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/Psol e autor de O Martelo da história, entre outros livros. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo