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Constituinte Cidadã, a maior experiência democrática do país

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Com uma bancada parlamentar tímida, as forças progressistas conseguiram grandes avanços com a força das ruas - Arquivo Agência Brasil
A Constituinte foi escrita pela força irresistível das ruas

A Constituição de 1988 tinha tudo para ser um espirro, ou nada mais do que um afago aos setores progressistas que lutaram pelo fim do governo ditatorial, mas se constituiu na mais bem acabada obra do sonho de construção de um Estado de Bem-Estar Social que o país já teve. Se foi vitória de alguém, foi das esquerdas, que não somavam mais de meia centena de votos num colegiado de 559 parlamentares, mas conseguiram estabelecer um vínculo orgânico efetivo com as forças sociais que se mobilizaram intensamente na luta pela redemocratização do país. Antes e depois da Constituinte, nunca um processo legislativo se aproximou tanto de um contrato social e foi tão reconhecedor de direitos de cidadania quanto ela. Com todas as suas deficiências de representação e uma minúscula participação legislativa de partidos progressistas, a Carta brasileira conseguiu avançar décadas. Não fossem suas conquistas (e o reconhecimento de direitos, como de igualdade racial, do idoso, da criança, de educação e saúde para todos e liberdades democráticas plenas, entre outros) dificilmente os governos petistas, 14 anos depois, teriam conseguido ir tão longe em um projeto político de cunho social. Não teriam maioria parlamentar para isso. O PT caminhou pelas brechas dos direitos reconhecidos constitucionalmente, tão incômodos às elites políticas e econômicas que mereceram dos governos seguintes, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, um esforço enorme de destruição.

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A Constituinte nasceu cheia de vícios. Sua convocação trazia alguns bastante severos. O maior era de representação. Primeiramente, não era exclusiva – e o processo constituinte seria muito mais democrático se feito por legisladores eleitos com a única função de elaborar uma nova Constituição, que substituísse a outorgada pelo regime ditatorial. Somente assim, diziam os defensores da tese, ela poderia neutralizar a influência dos chefes políticos locais, a esmagadora maioria de velhos cúmplices do poder militar que oprimira o país por tanto tempo, comprometidos e beneficiários de uma sociedade constituída de forma profundamente desigual. A Constituinte, todavia, foi integrada pela soma de deputados eleitos no ano anterior, pelo voto proporcional; por um terço dos senadores eleitos pelo voto majoritário em 1982 e dois terços escolhidos em 1986. E obedecendo as regras eleitorais estabelecidas pela lei eleitoral e partidária aprovada ainda no regime militar.

Além das questões formais, existiam também distorções representativas que vinham do quadro partidário recém restabelecido. Um ano e meio após o golpe de 1964, em outubro de 1965, um ato institucional do general Castelo Branco extinguiu todos os partidos políticos, definindo regras que permitiriam a existência de apenas dois deles: um, de apoio ao governo, a Arena, que congregou os chefes políticos locais e sustentou a ditadura com ampla maioria; outro, de oposição, com número suficiente apenas para compor artificialmente, e em segundo plano, um regime com mais de um partido. O MDB, de oposição, cresceu à medida em que o governo mergulhava o país em uma longa crise econômica e política. Em dezembro de 1979, por uma lei originária do último governo militar, o bipartidarismo foi extinto e reinstituído o pluripartidarismo.

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Congresso promulga a Constituição, com Ulysses afirmando 'ódio e nojo' à ditadura / Agência Brasil/Arquivo

Com uma oposição ampla abrigada no sucedâneo daquele que fora o grande guarda-chuva da oposição, agora com um “P” acrescentado – o PMDB – com perfil majoritariamente conservador, foi feita a transição para o regime democrático. José Sarney, antigo presidente do PDS (que sucedeu a Arena no pluripartidarismo), ampliou a adesão ao PMDB de setores conservadores, fincados em grupos parlamentares de interesse (um agronegócio altamente reacionário nas questões relativas à propriedade, uma bancada evangélica retrógrada na agenda de costumes, bancadas inteiras comprometidas com o status quo da mídia tradicional – muitos dos parlamentares donos de repetidoras de TVs pelo Brasil afora, e uma bancada de chefes locais que deslocara sua hegemonia do partido de apoio aos militares para o antes partido que se opunha à ditadura).

Numa realidade de alta inflação, o PMDB que foi às urnas em 1986 era um partido inflado por ter liderado a transição moderada da ditadura para a democracia e, principalmente, a legenda do governo do Plano Cruzado – que manteve artificialmente a inflação sob controle – até que ela viesse a explodir como uma hiperinflação, mas isso apenas depois das eleições. O PMDB saco-de-gatos, que reunia agora uma grande bancada conservadora, mas acomodava também um núcleo progressista, conseguiu somar, sozinho, 306 dos 559 constituintes. As esquerdas – PT, PCB, PCdoB, PDT e PSB – não detinham mais de 10% da Constituinte. Os demais partidos conservadores – PFL, PDS, PTB, PL e PDC ocupavam, juntos, 201 cadeiras.

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O que define um congresso tão minoritariamente progressista ter conseguido promulgar uma Constituição chamada de Cidadã foi o que veio de fora. Na sessão de promulgação da Constituinte, em 5 de outubro de 1988, o deputado que presidiu o Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães, fez as contas: ao todo, foram apresentadas 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas; e cerca de 10 mil pessoas sem vínculo funcional com o Congresso ocuparam diariamente, em média, as dependências do Legislativo para acompanhar os debates e as votações de seu interesse.

A frente gramada do Congresso, que pouco tempo antes havia sido ocupada pelas forças militares para reprimir manifestação contra a emenda que reinstituía a votação direta para presidente da República, nos estertores da ditadura militar, naquele momento era ocupada por multidões que reivindicavam suas parcelas de cidadania e diretos suprimidos e adiados por 21 anos de regime de força. A Constituinte foi escrita pela força irresistível das ruas.


Ulysses Guimarães na sessão histórica de promulgação da Constituição de 1988 / Arquivo/Agência Brasil

Passados 34 anos da maior experiência de participação popular na política da história do país, que moldou o acordo social vigente até o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, a experiência única da Constituinte de 1988 torna-se candidata a virar peça de museu. Deveria, no mínimo, se constituir numa lição poderosa de história para as forças que se unem hoje para defender a democracia.

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*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo