Ao pedir censura, o incomível alimentou o próprio fogo simbólico que o cozinhou em praça pública
Fez calor no final de semana, mas nada se compara à temperatura do caldeirão que cozinhou Jair Bolsonaro durante três dias, no festival Lollapalooza, em São Paulo.
Não se via tamanha festa antropofágica desde 1551, quando os caetés, depois de muita dança ao som da Pablo Vittar da época, cozinharam e comeram o bispo Sardinha.
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O Lollapalooza transpôs um limiar, ainda a ser compreendido ao longo das próximas semanas. O arrefecimento da pandemia trouxe de volta os eventos culturais aos palcos, ruas e praças. O que será de nós no Brasil pós-pandêmico?
Em um delirante final de semana, os jovens presentes ao Loolapalooza se banquetearam. Mataram, comeram, deglutiram e devolveram à terra os restos mortais de um governo que não lhes representa.
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A morte e a deglutição simbólicas do “messias”, do que veio de fora, do “outro”, foram os ingredientes que faltavam para posicionar os jovens na vanguarda da reelaboração estética de um Brasil espantado com sua própria capacidade de “emergência”.
A emergência, o emergir mediante a mistura com o diferente, com o estrangeiro, o inimigo. É a força da cultura que desenha a história do Brasil mestiço, barroco, caboclo e misturado. Os tambores estão a rufar. A fogueira está acesa.
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Neste final de semana, a caminho do caldeirão, o autodenominado “incomível” tentou impor um cala a boca, com a ajuda da banda podre do Poder Judiciário. Requisitou a proibição de manifestações políticas no evento. E pediu intervenção da polícia, caso a ordem não fosse cumprida pelos artistas e pelo público do festival.
O ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Raul Araujo, comprou de bom grado o anseio autoritário. Mandou censurar a festança. Não deu certo.
O arroubo à 1964 não colou. “Gosto de desobedecer”, avisou Djonga, enquanto mandava um “fora Bolsonaro”.
E assim muitos o fizeram, no palco e na plateia.
A festa da desobediência canibal rolou livre e solta. Ninguém cumpriu o despacho do plantonista. Araujo foi junto para o caldeirão.
Ao pedir censura, o incomível alimentou o próprio fogo simbólico que o cozinhou em praça pública. O que é proibido sempre é mais gostoso. Ou como resumiu Emicida, no sábado à noite: "vai tomar no c*, Bolsonaro".
No domingo, enquanto era devorado pela juventude festiva do Lollapalooza, a nefasta figura presidencial ainda esperneou. Fez um discurso em defesa do Coronel Brilhante Ustra, o torturador do Exército que introduzia ratos na vagina de mulheres.
Mas era tarde demais. O cozido estava pronto. O passado não volta, nem como pastiche. Ustra está no inferno. Bolsonaro, no caldeirão.
Bolsonaro tornou-se um pouco mais, neste final de semana, a representação do estrangeiro a ser simbolicamente comido, deglutido e reelaborado.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”, escreveu Oswald de Andrade, na abertura do Manifesto Antropofágico, que segue:
“Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos ‘touristes’. No país da cobra grande”.
Cobra grande, o espírito das águas da mitologia amazônica.
Água, sol, natureza, miscigenação e antropofagia cultural: o Brasil não é para amadores. Muito menos para fascistas.
*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas e é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo