Quando tinha 13 anos, Cecília* vivenciou a primeira violação sexual, cometida por seu próprio pai e testemunhada pela irmã. Três anos depois do abuso, com o rompimento da atmosfera de segurança, decidia sair de casa, para morar sozinha. Arranjou um trabalho em uma fábrica, com o objetivo de assegurar autonomia.
Treze anos mais tarde, sua vida era marcada por uma nova violência sexual, um estupro. Cecília havia acabado de ter um filho e a cidade em que vivia teve uma paralisação dos trabalhadores do transporte público. Por volta de 19h, a jovem, preta, resolveu retornar a sua casa com um transporte pirata, única alternativa que encontrou. No meio do caminho, o motorista saiu da rota prevista.
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"Tinha uma plaquinha, só que ele não foi para aquele bairro. Aí, ele me violentou. Aquilo custou, na época, o meu casamento, porque eu fui tida como 'eu me ofereci', eu seria a errada da história, a oferecida", conta.
Cecília teve graves ferimentos como resultado do estupro, levando 120 pontos na região vaginal. Ainda em período do puerpério, fase já delicada para muitas mulheres, de fragilidade do corpo, ficou internada em um hospital da região, por três dias, em virtude da gravidade das lesões.
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Passaram-se pouco mais de dois anos e Cecília era novamente submetida a agressões, quando retornava para casa, após um happy hour com amigas. "Eu saí do trabalho. Na época, eu era crente, de uma igreja pentecostal, e pesava 120 quilos. Elas foram pegar o ônibus, eu decidi ir a pé para casa e fui arrastada para o mato. Ele me assaltou e violentou."
Cecília engravidou do estuprador. Ela decidiu entregar a criança para a adoção, retomando o elo com ela anos mais tarde, quando a filha biológica já tinha 19 anos de idade. Cecília não sabia, mas ambas residiam na mesma rua, separadas a alguns metros.
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O medo de conhecer tal face da misoginia, ou seja, do ódio às mulheres, como ocorreu com Cecília, é um receio compartilhado por 95% das mulheres, de acordo com levantamento divulgado nesta sexta-feira (25), pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva. Após consultar 2 mil pessoas com 16 anos ou mais de idade, entre 27 de janeiro e 4 de fevereiro deste ano, pela internet, as entidades descobriram que o temor de sofrer um estupro é ainda maior entre mulheres jovens e pretas. No total, 87% das entrevistadas pretas e 88% das jovens com idade entre 16 e 24 anos expressaram esse sentimento. Confirma-se também por meio da pesquisa que, no imaginário social, as meninas e mulheres negras são as principais vítimas desse tipo de crime.
Na percepção dos entrevistados, as meninas adolescentes representariam 37% das vítimas de estupro no país, contra 57% de meninas mais novas e 6% de mulheres adultas. As pessoas que responderam a pesquisa não chegam a citar com frequência mulheres idosas.
Quando se trata de meninas vítimas, prevalece (89%) a noção de que os estupros são consumados em casa. Para as vítimas com esse perfil, presume-se que os principais autores são parentes (71%), amigos da família/conhecidos (22%), estranhos (5%), professores, médicos, padres ou pastores (1%).
Já para mulheres, o quadro hipotético é de que a maioria dos estupros ocorre fora de casa. A característica é apontada por 61% dos entrevistados.
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Em relação a estupradores de mulheres adultas, são mencionados estranhos (29%), ex-parceiros das vítimas (22%), parceiros atuais (15%) e parentes (12%). Amigos da família/conhecidos são indicados por 12%, professores, , médicos, padres ou pastores, por 5%, chefes, por 2%, e amigos, por 1%.
No caso da filha de Mariana*, o vínculo entre a adolescente e o autor da violência contra ela praticada seguia os palpites dos brasileiros. A jovem foi abusada pelo ex-cunhado de Mariana, em 2017, durante uma visita da família a uma das casas do homem, no interior de São Paulo.
Na ocasião, o homem coagiu Luiza* a tomar banho em sua presença, de madrugada. Segundo Mariana, a filha estava doente, com virose, como ela, e pediu que a mãe cuidasse dela, por diversas vezes, durante a noite. Até que, em certo horário, deixou de chamá-la.
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Mariana explica que a filha relatou o que havia acontecido somente sete meses depois, pois o homem ainda continuava no convívio da família, por conta do sobrinho de Mariana. "Quando ela me contou, foi um choque imenso. Queria fazer justiça com as próprias mãos", diz ela, que comenta ter sentido impotência e culpa diante do fato.
Hoje, Mariana reconhece, como Cecília, que apenas o agressor deve ser responsabilizado pelo estupro e ninguém mais. Ela pontua que, atualmente, o estupro da filha era tabu entre os familiares, mas que agora abordam com mais naturalidade e que Luiza "se fortaleceu", ao compartilhar a experiência em redes sociais.
"O quanto é importante as mulheres falarem sobre o assunto para poder se libertar do assunto. As mulheres, na verdade, não são culpadas. Não importa o que ela [a vítima] tenha feito, a forma como ela tenha se portado, não importa nada disso. O que importa é uma pessoa usar de uma situação, de uma mulher frágil, vulnerável, para fazer algo que não deve ser feito e não respeitar o pedido dela, de que não é não", afirma Mariana, acrescentando que Luiza decidiu, em outubro do ano passado, denunciar formalmente o agressor.
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O reconhecimento de que o estupro tem relação direta com o machismo é um aspecto relevante da pesquisa. Para 72% dos participantes do levantamento, homens estupram porque são machistas e acham que podem fazer tudo o que desejam com as mulheres. Apesar disso, 24% discordam de tal informação.
No caso de Cecília, constata-se que o machismo já podia ser verificado mesmo em atitudes de companheiros seus. Seu casamento consistia em um relacionamento abusivo, já que, enquanto foi casada, seu marido não a deixava usar óculos e tinha ciúmes dela.
À reportagem do Brasil de Fato, Mariana também recontou como a irmã acabou por assumir que o relacionamento que mantinha com o agressor da sobrinha era abusivo. Segundo ela, o homem já colecionava atos que configuram, pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), violência psicológica, moral e patrimonial. A irmã de Mariana obteve na Justiça medida protetiva contra ele.
Outra informação importante, em termos de como a população tem deixado de incorporar a cultura do estupro, é a de que 83% concordam que a culpa em torno do estupro deve recair totalmente sobre o agressor, independentemente de como a mulher se vestia ou de como se comportava. A parcela dos que discordam dessa afirmação chega a 13%.
O grupo de pessoas que afirma que estupradores "não são doentes mentais", mas sim criminosos e que devem, portanto, ser punidos pelos crimes que perpetram, é de 90%. Este dado adquire especial destaque na história de Mariana e Luiza, já que a família do agressor cogitou interná-lo em uma clínica psiquiátrica.
Na avaliação da diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanemats, o levantamento sugere melhora na opinião pública quanto ao que é o estupro. Contudo, ela enfatiza que há pontos do entendimento a serem melhorados.
"Os números, por um lado, mostram que o conhecimento avançou. Mas, por outro lado, mostram também ainda é preciso informar mais, conscientizar mais as pessoas sobre todas as situações que podem configurar um estupro, uma violência sexual", diz.
Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontam que, em 2021, foram registrados, no país, 56.098 estupros (incluindo vulneráveis) de meninas e mulheres. O total equivale a um número 3,7% superior ao atingido em 2020. Isso significa que uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos, considerando apenas os casos que chegaram ao conhecimento da polícia. Saiba como denunciar.
*Os nomes das entrevistadas foram mantidos sob sigilo e trocados, a fim de preservar sua identidade.
Edição: Vivian Virissimo