Um mês após a invasão da Rússia contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro deste ano, é possível fazer uma análise sobre a correlação de forças envolvidas no conflito. Em um live realizada, nesta quinta-feira (24), os correspondentes do Brasil de Fato, Michele de Mello e Serguei Monin, conversaram com o historiador Rodrigo Ianhez e com o internacionalista Vicente Ferraro sobre o tema.
Os analistas lembraram que, no início do conflito, o presidente russo Vladimir Putin apontou que o objetivo da ação era “desmilitarizar" e "desnazificar" o país. Além disso, deixou explícito o descontentamento de seu governo com o avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre países que fazem fronteira com a Rússia.
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No entanto, eles entendem que nem tudo está saindo como Putin planejou: as forças ucranianas têm se mostrado resistentes e os grupos da extrema-direita vêm se legitimando, ao passo que a Rússia sofre com as sanções.
De fora de ambos territórios, Estados Unidos e Otan avançam em suas narrativas, China mantém certa distância enquanto calcula possíveis ganhos e Europa perde economicamente, principalmente diante da dependência do gás russo.
Confira os principais pontos do debate:
Rússia
Para o historiador Rodrigo Ianhez, quanto mais o conflito perdura, mais difícil é para a Rússia se sustentar economicamente diante das sanções. Economistas dos bancos Barclays e Goldman Sachs estimam uma retração de 12% no PIB do país com o aprofundamento das medidas impostas contra a Rússia. “Algo que levaria o país a patamares econômicos dos anos 2000”, disse Ianhez.
“Todo o avanço foi feito ao longo de 20 anos está sendo colocado em risco. A popularidade de Putin se sustenta nesse avanço, mas aparentemente ele está disposto a jogar tudo isso fora. Os russos vão sentir de maneira terrível as consequências, principalmente econômicas”, afirmou o historiador.
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Para Ianhez, a interpretação de que Putin não soube calcular os impactos da invasão para o seu país é nebulosa, uma vez que o governo está “longe de ser transparente”, o que impede de juntar todos os elementos à mesa para chegar a tal análise. Ainda assim, Putin “deveria saber que não é um conflito fácil".
“A partir do momento em que Putin optou por uma ruptura dessa proporção ele deveria estar preparado pra isso. Mas o governo russo está longe de ser transparente”, afirmou o historiador.
Confira o debate na íntegra
Por outro lado, pode existir algum ganho para Putin em termos de popularidade, na interpretação do internacionalista Vicente Ferraro.
“Em diferentes conflitos, como durante a Guerra da Chechênia, houve um salto de popularidade para Putin. Em 2014, na invasão da Crimeia, também. Nesse sentido, o conflito pode ter esse papel de fortalecer Putin internamente e servir de pretexto para perseguir opositores. Ele já afirmou que esse pode ser um momento de limpar a Rússia das forças que pensam como o ocidente, principalmente a partir do embate entre russos tradicionais e ocidentais liberais”, disse Ferraro.
Grupos nacionalistas e grupos da extrema-direita
Assim como na Rússia há a possibilidade do fortalecimento de grupos nacionalistas que acreditam na ideia de um país com potência militar, na Ucrânia pode acontecer o mesmo.
Regiões que até então eram consideradas pró-russas se mostraram próximas do governo de Volodymyir Zelensky após o início da invasão russa.
“A percepção da Rússia como um país agressor, de 2014 para cá, vinha diminuindo nas regiões do leste da Ucrânia. Então havia uma expectativa de que talvez pudesse existir menor resistência nesses locais, mas não é o que a gente está vendo. Vemos uma resistência grande. As questões linguística e mesmo étnica, próxima a valores russos, não significam lealdade a Putin. Algumas pesquisas mostram que com essa invasão, a percepção positiva em relação a Rússia caiu ainda mais. Então tem apoio a Zelensky e até mesmo a entrar na OTAN”, explica Ferraro.
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Outro aspecto que se soma a isso é o espaço dado a grupos da extrema-direita na Ucrânia que também se fortalecem. Isso porque o governo de Zelensky depende esses agrupamentos, como o Batalhão de Azov, que defende a cidade Mariupol, intensamente atacada pela Rússia.
“O governo ucraniano acaba sendo refém desses grupos, porque estão ajudando a conter o avanço da Rússia. Mas esses grupos são perigosos. Se a guerra acabar agora esses grupos saíriam mais fortes. Ainda assim, a narrativa de que são grupos da extrema-direita, por vezes ligados a neonazistas, não pode legitimar a invasão russa. Utilizar isso como argumento para justificar a invasão, como numa guerra santa, é questionável, até porque a Rússia também tem grupos neonazistas”, afirma Ferraro.
Otan
Tanto Ferraro quando Ianhez concordam que a Otan é uma das instituições que mais se fortalece com o conflito. Isso porque legitima o discurso de que os países do leste europeu precisam de tal aliança militar como proteção contra a Rússia. Reflexo disso é que alguns países que fazem parte do Tratado já anunciaram aumento de recursos destinados para a organização.
“Quem tende a ganhar é a Otan, com essa narrativa fortalecida. Nesse sentido, mesmo que a Rússia consiga impor todas as suas condições à Ucrânia, no plano global já está saindo derrotada”, afirma Ianhez.
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Nessa linha, Ferraro analisa que, diante da invasão, a Rússia acaba dando à Otan uma razão de existir e atuar. “Se antes a ameaça russa era infundada, agora é indiretamente surgiu uma razão de ser para a Otan. Então esses países veem a Otan como um mecanismo de proteção e segurança hoje. Se antes não havia esse discurso convincente, principalmente agora esse discurso ganha mais força”, diz Ferraro.
O mesmo acontece com os Estados Unidos, onde figuras até então divergentes entre si se somam contra um inimigo em comum. “Há a legitimação de diferentes regimes. Os EUA se legitimam com esse conflito. O Biden pode ter sido beneficiado. Diante de um conflito externo, todos se juntam. Os EUA também conseguiram promover uma coesão da própria OTAN e do Ocidente. Com Trump, o Ocidente estava muito fragmentado. Essa invasão acabou levando uma coesão ao Ocidente liderada pelos EUA, que promoveram uma ação coordenada em diferentes países contra a Rússia”, avalia o analista.
Europa e China
Apesar do fortalecimento da Otan, economicamente os países europeus tendem a perder economicamente, uma vez que são demasiadamente dependentes do gás russo. Ianhez explica que a Europa não tem condições energéticas autossuficientes e que o mercado russo não é desprezível. Com as saídas das empresas russas desse mercado e sem o gás, torna-se difícil a manutenção até mesmo das sanções econômicas contra Putin.
Paralelamente, a posição da China tende a ser fortalecida globalmente ao apropriar-se das demandas do mercado internacional, seja comprando o que a Rússia tem a oferecer em condições vantajosas ou vendendo o que outros países deixaram de oferecer.
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“A Rússia já entrou na rede de bandeira de cartões da China. A gente já observou também que os chineses estão prontos para assumir parte das exportações russas e vão fazer isso em condições muito vantajosas. Os contratos firmados com a Índia, por exemplo estão com um desconto enorme. De outro modo, conforme o preço da energia sobe na Europa, o preço de tudo sobe, e os produtos europeus vão ficar menos competitivos em relação aos produtos chineses”, explica Ianhez.
Edição: Rebeca Cavalcante