Coluna

Estamos em um período de grandes mudanças tectônicas

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Chiharu Shiota (Japão), Navegando o desconhecido, 2020 - Reprodução
Os movimentos populares precisam aumentar nosso próprio poder, organizando as pessoas

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

A guerra na Ucrânia chamou a atenção para as mudanças que estão ocorrendo na ordem mundial. A intervenção militar da Rússia foi recebida com sanções do Ocidente, bem como com o transporte de armas e mercenários para a Ucrânia. Essas sanções terão um grande impacto na economia russa, assim como nos Estados da Ásia Central, mas também afetarão negativamente a população europeia, que verá os preços da energia e dos alimentos aumentarem ainda mais. Até agora, o Ocidente decidiu não intervir com força militar direta ou tentar estabelecer uma “zona de exclusão aérea”. Reconhece-se, sensatamente, que tal intervenção poderia se transformar em uma guerra de grande escala entre os Estados Unidos e a Rússia, cujas consequências são impensáveis, dadas as capacidades nucleares de ambos os países. Sem qualquer outro tipo de resposta, o Ocidente – como aconteceu com a intervenção russa na Síria em 2015 – teve que aceitar as ações de Moscou.

Para entender a situação global atual, aqui estão seis teses sobre o estabelecimento da ordem mundial nos moldes dos EUA a partir de 1990 até a atual fragilidade desta ordem diante do crescente poder russo e chinês. Essas teses são extraídas de nossa análise no dossiê n. 36 (janeiro de 2021), Crepúsculo: A erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar; elas são destinadas para o debate e, portanto, o feedback sobre elas é muito bem-vindo.


Lawrence Paul Yuxweluptun (Canadá), O 1%, 2015 / Reprodução

Tese um: Unipolaridade. Após a queda da União Soviética, entre 1990 e 2013-15, os Estados Unidos desenvolveram um sistema mundial que beneficiou corporações multinacionais sediadas nos Estados Unidos e nos outros países do G7 (Alemanha, Japão, Reino Unido, França, Itália, e Canadá). Os eventos que definiram o poder esmagador dos EUA foram as invasões do Iraque (1991) e da Iugoslávia (1999), bem como a criação da Organização Mundial do Comércio (1994). A Rússia, enfraquecida pelo colapso da URSS, buscou entrar nesse sistema juntando-se ao G7 e colaborando com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) como “Parceiro para a Paz”. Enquanto isso, a China, sob os presidentes Jiang Zemin (1993-2003) e Hu Jintao (2003-2013), jogou um jogo cuidadoso ao inserir seu trabalho no sistema global dominado pelos EUA e não desafiar os EUA em suas operações.

Tese dois: Sinais de crise. Os EUA ultrapassaram seu poder por meio de duas dinâmicas: primeiro, super alavancando sua própria economia doméstica (bancos ultra fortalecidos, ativos não produtivos mais altos do que ativos produtivos); e segundo, tentando travar várias guerras ao mesmo tempo (Afeganistão, Iraque, Sahel) durante as duas primeiras décadas do século 21. Os sinais de crise, apontando para a fraqueza do poder dos EUA foram ilustradas pela invasão do Iraque (2003) e o desastre dessa guerra pela projeção de poder dos EUA, e a crise de crédito (2007-08). A polarização política interna nos EUA e uma crise de legitimidade na Europa seguiram esses desenvolvimentos.


Olga Bulgakova (Rússia), Homens cegos, 1992 / Reprodução

Tese três: Emergência sino-russa. Na segunda década dos anos 2000, por diferentes razões, tanto a China quanto a Rússia saíram de sua relativa dormência.

O ressurgimento da China tem dois eixos:

1. A economia doméstica. A China acumulou superávits comerciais maciços e, ao lado deles, construiu conhecimento científico e tecnológico por meio de seus acordos comerciais e seu investimento em educação superior. As empresas chinesas de robótica, alta tecnologia, ferrovias de alta velocidade e energia verde ultrapassaram as empresas ocidentais. 

2. As relações externas. Em 2013, a China anunciou a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR, ou a Nova Rota da Seda), que propunha uma alternativa à agenda de desenvolvimento e comércio do Fundo Monetário Internacional, impulsionada pelos EUA. A ICR se estendeu da Ásia para a Europa, bem como para a África e a América Latina.

A Rússia também ressurgiu em dois eixos:

1. A economia doméstica. O presidente Vladimir Putin lutou contra alguns setores dos grandes capitalistas para afirmar o controle estatal dos principais setores de exportação de commodities e os usou para construir ativos estatais (principalmente petróleo e gás). Em vez de simplesmente sugar ativos russos para depositar em contas bancárias no exterior, esses capitalistas russos concordaram em subordinar parte de suas ambições à reconstrução do poder e da influência do Estado russo.

2. Relações externas. A partir de 2007, a Rússia começou a se afastar da agenda global ocidental e conduzir seu próprio projeto, primeiro por meio da agenda do BRICS (Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul) e depois por meio de relações cada vez mais estreitas com a China. A Rússia alavancou sua exportação de energia para assegurar o controle de suas fronteiras, o que não havia feito quando a Otan se expandiu em 2004 para absorver sete países que estão perto de sua fronteira ocidental. A intervenção russa na Crimeia (2014) e na Síria (2015) usou sua força militar para criar um escudo em torno de seus portos de águas quentes em Sebastopol (Crimeia) e Tartus (Síria). Esse foi o primeiro desafio militar aos EUA desde 1990.

Nesse período, China e Rússia aprofundaram sua cooperação em todos os campos.


Ibrahim el-Salahi (Sudão), Sons Renascidos dos Sonhos da Infância I, (1961-65) / Reprodução

Tese quatroDoutrina Monroe Global. Os Estados Unidos tomaram sua Doutrina Monroe de 1823 (que afirmava seu controle sobre as Américas) globalmente e propuseram nesta era pós-soviética que o mundo inteiro fosse seu domínio. Começou a se opor à afirmação da China (o eixo de Obama para a Ásia) e da Rússia (Russiagate e Ucrânia). Essa Nova Guerra Fria impulsionada pelos EUA, que inclui a guerra híbrida por meio de sanções contra trinta países como Irã e Venezuela, desestabilizou o mundo.

Tese cinco: Confrontos. Os confrontos acelerados pela Nova Guerra Fria inflamaram a situação na Ásia – onde o Estreito de Taiwan continua sendo uma zona quente – e na América Latina – onde os Estados Unidos tentaram criar uma guerra quente na Venezuela (e tentaram, mas não conseguiram projetar seu poder em lugares como a Bolívia). O atual conflito na Ucrânia – que tem suas origens em muitos fatores, incluindo o fim do pacto plurinacional ucraniano – também é sobre a questão da independência europeia. Os EUA usaram a “Otan Global” como um cavalo de Tróia para exercer seu poder sobre a Europa e mantê-la subordinada aos interesses dos EUA, mesmo que prejudique os europeus, pois eles perdem o suprimento de energia e gás natural para a economia alimentar. A Rússia violou a soberania territorial da Ucrânia, mas a Otan criou algumas das condições que aceleraram esse confronto – não para a Ucrânia, mas para seu projeto na Europa.


Olga Blinder (Paraguai), Para minha professora , 1970 / Reprodução

Tese seis: Crise terminal. A fragilidade é a chave para entender o poder dos EUA hoje. Não diminuiu drasticamente, nem permanece incólume. Existem três fontes de poder dos EUA que são relativamente intocadas:

1. Poder militar avassalador. Os Estados Unidos continuam sendo o único país do mundo capaz de bombardear qualquer um dos outros Estados membros da ONU, mandando-o de volta à idade da pedra.                                      

2. O regime dollar-Wall Street-FMI. Devido à dependência global do dólar e ao sistema financeiro global dominado pelo dólar, os EUA podem usar suas sanções como uma arma de guerra para enfraquecer os países ao seu bel prazer.                                                                                                                                                                            

3. Poder Informacional. Nenhum país tem controle tão decisivo sobre a internet, tanto sua infraestrutura física quanto suas empresas quase monopolistas (como Meta e YouTube, que removem qualquer conteúdo e qualquer provedor à vontade); nenhum país tem tanto controle sobre a formação das notícias mundiais devido tanto ao poder de seus serviços de notícias (Reuters e Associated Press) como de suas principais redes (como a CNN).

Existem outras fontes de poder dos EUA que estão profundamente enfraquecidas, como seu cenário político interno, profundamente polarizado, e sua incapacidade de mobilizar seus recursos para enviar a China e a Rússia de volta para dentro de suas fronteiras.

Os movimentos populares precisam aumentar nosso próprio poder, organizando as pessoas em organizações poderosas e em torno de um programa que tenha a capacidade de responder aos problemas imediatos de nosso tempo e à questão de longo prazo de como fazer a transição para um sistema que possa transcender os apartheids do nosso tempo: apartheid alimentar, apartheid sanitário, apartheid educacional e apartheid monetário. Transcender esses apartheids nos leva para fora desse sistema capitalista para o socialismo.


Aijaz Ahmad e Ayanda Ngila por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / Reprodução

Na semana passada, perdemos muitos camaradas, velhos e jovens. Entre eles, nosso membro sênior Aijaz Ahmad (1941-2022), um dos grandes marxistas de nosso tempo, nos deixou aos 81 anos. Quando o marxismo estava sob ataque após a queda da URSS, Aijaz manteve a linha, ensinando gerações sobre a necessidade da teoria marxista; essa teoria permanece necessária porque continua sendo a crítica mais poderosa do capitalismo e, enquanto o capitalismo continuar a estruturar nossas vidas, essa crítica permanecerá ilimitada. Para nós do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, a orientação de Aijaz foi inestimável. Na verdade, o dossiê Crepúsculo, que nos ajudou a nos orientar na atual conjuntura, foi escrito após uma discussão substancial com Aijaz.

Também perdemos Ayanda Ngila (1992-2022), vice-coordenador da ocupação de terras eKhenana, parte do movimento de moradores de favelas da África do Sul, Abahlali baseMjondolo (AbM). Ayanda era um líder corajoso do AbM que havia sido recentemente libertado de um segundo período de prisão por acusações forjadas. Ele era um camarada gentil com seus colegas e aluno e professor da Frantz Fanon School. Quando foi baleado por seus adversários no Congresso Nacional Africano, Ayanda vestia uma camiseta com uma citação de Steve Biko: “É melhor morrer por uma ideia que vai viver do que viver por uma ideia que vai morrer”. Nas paredes da Escola Frantz Fanon, os camaradas da AbM pintaram claramente seus ideais: Terra, Moradia Decente, Dignidade, Liberdade e Socialismo.

Nós concordamos. Assim como Aijaz.

Cordialmente, 

Vijay

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo