Tábua por tábua, o barraco de Nina saiu do chão, e pedaços de madeira ganharam o nome de casa. Quando chove, o aguaceiro atravessa o teto e molha tudo. Esse mês já foram três dias seguidos à luz de velas, sem eletricidade. Água nas pias e privada, só três dias por semana, e há ruas que nunca foram abastecidas. Saneamento básico é uma promessa a mais no esgoto a céu aberto dessa terra de gente esquecida. Nina se mudou para o barraco pouco tempo após fecharem o lixão. Com seis filhos e três netos, sonha com uma casa de alvenaria, mas o sonho está empoeirado junto com os sacos de cimento largados no seu quintal, pois não há dinheiro para mais material de construção. Ou ela compra arroz e feijão ou encomenda tijolos, areia, argamassa.
Arina da Cunha Lopes, a Nina, é uma mulher negra de 42 anos nascida numa família de catadores de Jardim Gramacho, Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro. Sua casa fica a 30 km de Copacabana, mas entre a vida que ela vive e a vida de quem mora perto do mar há uma distância oceânica. Por 34 anos, Nina viu caminhões da empresa de limpeza da capital entupirem seu bairro com resíduos sólidos de quase sete milhões de cariocas. O lugar tornou-se uma cidade do lixo, com uma montanha de 60 metros de altura de rejeitos, uma favela que se formou ao redor – onde Nina mora – e a maior indústria de reciclagem do Brasil com cerca de dois mil catadores. Nina, sua família e seus vizinhos viviam até 2012 das 9 mil toneladas de material levados todos os dias por 600 caminhões da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), fora outros incontáveis caminhões de construção civil, lixo hospitalar e comida estragada.
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Quando os veículos chegavam carregados de resíduos sólidos, os catadores já sabiam à distância o que vinha em cada um. Urubus e ratos também – eles se misturavam entre as mulheres e homens, a maioria mulheres negras, todos em busca de sobrevivência. O lixo era vertido sobre a montanha tóxica, um lugar chamado até hoje de “rampa” e de onde se avista, lá do alto, a imensa e poluída Baía de Guanabara.
A realidade dos catadores de Gramacho foi exibida para o mundo todo no documentário “Lixo Extraordinário”, do artista plástico carioca Vik Muniz, que não venceu a estatueta, mas chegou ao Oscar em 2011. O filme mostra o cotidiano dos trabalhadores enquanto eles ajudam a transformar parte do lixo recolhido em obras de arte. Apenas um ano após o lançamento do longa metragem, o aterro foi fechado para sempre – mas seu cheiro e até um certo calor do metano, um dos gases que agravam o efeito estufa, ainda se sente no ar, com tanta matéria orgânica apodrecendo debaixo da terra.
O maior lixão da América Latina foi fechado às pressas pelo prefeito Eduardo Paes, então no MDB, um homem hábil em propaganda política, apenas duas semanas antes do início da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, em junho de 2012. Disse ele naquele dia que “o Rio não vai mais admitir violências contra o meio ambiente”. No mundo ideal, trancar a porta do aterro com um cadeado, como fez Paes (que reassumiu a prefeitura em 2021), seria o começo de uma gestão moderna de resíduos, com o fechamento de todos os lixões do país e a urbanização total do bairro – uma questão urgente e global em um planeta com 8 bilhões de pessoas, cada uma produzindo uma média superior a 1 quilo de resíduos por dia. Mas no mundo real de Gramacho, as leis da vida são duras e impuseram fome, miséria e medo desde o fechamento do aterro, há quase dez anos.
Da noite para o dia, catadores perderam sua única fonte de renda e caíram em um limbo do qual nunca conseguiram sair, levando junto maridos e esposas, filhos e netos, tias e sobrinhos – gente que ouviu promessas que nunca saíram dos sonhos, como cursos de capacitação, urbanização, centro esportivo, escola, hospital, plantio de árvores, apartamentos sociais. Uma caminhada pelas ruas de terra do bairro revela que aumentou o número de lixões clandestinos em terrenos próximos – um deles a poucos minutos da portaria principal do antigo aterro. O movimento de caminhões é constante, mas eles carregam principalmente lixo de construção, com pouco ou nenhum reciclável.
Nina acorda todos os dias antes das 5h. Seu despertador é o galo de um sobrinho que canta na casa ao lado. Outros parentes, tios e primos também moram no mesmo terreno — todos eram catadores ou dependiam em casa do dinheiro que vinha do lixão. Ela prepara o café e se arruma na penumbra do amanhecer – mas sua casa é escura mesmo com sol de meio-dia, pela posição nos fundos do terreno e pelas janelas muito pequenas. Nina vai caminhando para a Coopergramacho, atravessando toda a Rua Tocantins, onde ela mora, até um dos acessos da comunidade, onde trabalha como vice-presidente da cooperativa de reciclagem, uma das 18 que ainda existem na região, cada uma em situação pior que a outra.
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Ela é uma liderança tanto na comunidade quanto na cooperativa. Às 6h30 já está varrendo o chão no trabalho. Uma das promessas não cumpridas pelo poder público é um galpão para os cooperativados armazenarem os recicláveis. Todo o material fica ao relento, sob sol e chuva, o que deprecia os valores. Cada cooperativa é responsável por conseguir e buscar o próprio material – seja em condomínios ricos do Leblon, na zona sul do Rio, ou em empresas privadas do Centro.
“Fecharam nosso lixão e passaram a mandar os caminhões para Seropédica [município da Baixada Fluminense a cerca de 50 km de Gramacho], onde tudo é aterrado, inclusive material de reciclagem. Por que não trazem pra cá como prometeram? A Comlurb só permite que a gente vá buscar material com nosso caminhão uma vez por mês. Por que não podemos ir todos os dias? Estão enterrando ouro lá, e a gente aqui passando fome. O que as pessoas ainda não entendem é que lixo é ouro”, afirma Nina, enquanto os primeiros dos sete trabalhadores da cooperativa chegam para o serviço. “Se a Comlurb desse mais material pra gente, poderíamos empregar pelo menos 100 mulheres. Hoje só tenho três batedeiras (pessoas que separam os recicláveis na esteira) e quatro homens. A promessa era que, com o fechamento do aterro, as cooperativas seriam fortalecidas. A gente mexia no lixo, mas era um bom trabalho, porque tínhamos valor como trabalhador. Qual é o valor que a gente tem agora?”
Domício Moreira de Sousa, de 62 anos, é um catador triste que trabalha desde os 15 anos com reciclagem. Sentado em uma cadeira na porta de seu barraco enquanto esperava o almoço ficar pronto, ele é bem mais jovem do que aparenta seu rosto talhado pelo sol e pela labuta. O homem está bravo: trabalhou das 4h às 14h, conseguiu apenas R$ 25. Com esse dinheiro, o pai de 11 filhos consegue alimentar dez pessoas – R$ 2,5 por dia para cada uma.
Ele acompanha desde garoto as mudanças do destino do lixo do Rio de Janeiro: da estrada Rio-Petrópolis para a Chacrinha, em Duque de Caxias, antes de abrirem em 1974 o lixão de Jardim Gramacho. Ele e sua família foram seguindo o caminho do lixo, trabalhando e morando em cada um desses lugares, pois é no lixo que sabem transformar fome em barriga cheia. Mas desde que o aterro foi fechado, há dez anos, a renda familiar caiu 75% – antes eram no mínimo R$ 100 por dia.
O que terá hoje para o almoço, Seu Domício? “Filé mignon”, ele responde em tom de chacota, mas sem perder o mau humor, provocando riso nos filhos e netos. O menu daquele dia era ovo, arroz e feijão — filé mignon é como eles passaram a chamar ovo na pandemia, uma piada com a falta de carne na dieta. O comum é comerem isso — quando o dinheiro sobra, compram carne de frango.
“Tenho várias marcas no corpo, eu chamo de ‘cicatrizes do lixo’, principalmente por causa do vidro quebrado, que corta nossa carne. Uma vez um pedaço de ferro no meio do lixo atravessou meu pé. Continuei trabalhando até o fim do dia, e no dia seguinte também”, recorda.
Sua filha Elaine Sousa da Silva, de 32 anos, também trabalhou na rampa de Gramacho. Conta que naquele tempo levava “vida de luxo”: tinham dinheiro para comprar casa, moto, carro. De vez em quando ela gosta de ir escondida até o local onde o lixo era despejado, e começava a corrida de mulheres e homens pelos materiais. Conta que, por cima da montanha de lixo coberta por grama, nasceram várias árvores frutíferas, como goiaba, maracujá, coco e maxixe. Depois que acabou a rampa, diz Elaine, muita gente está passando fome, pois era o ganha-pão de todo dia.
“Era uma vida de luxo. Minha mãe era cheia de anel nos dedos. A gente achava dólar, achava ouro, encontrava até o que não estava procurando. Lembro de uma senhora de cabelos brancos que achou um terço de reza feito de ouro e o vendeu por R$ 600”, Elaine conta, sem saber o que é trabalhar há anos, sem espaço em nenhuma cooperativa, sem perspectivas. “Só a garrafa de óleo está custando R$ 10. O botijão de gás, R$ 100. Tudo o que ganhamos de uma igreja como cesta básica de Natal já acabou. O que falta pra gente é trabalho.”
Nina tem um papel social importante na comunidade: ela é quem articula os vizinhos na luta por melhorias. Organizou uma vaquinha de R$ 1,8 mil, por exemplo, para trocar a fiação da rede elétrica após um curto-circuito: cada morador deu apenas R$ 20. Nina é um ponto de equilíbrio em Jardim Gramacho, sempre atenta ao que foi prometido e ao que foi entregue como melhoria.
“Mostraram uma maquete pra gente com prédios e árvores, parecia até outro lugar de tão bonito. Dez anos depois, nem asfaltada essa rua foi. Cadê o hospital, cadê o centro esportivo com quadras pras crianças? Cadê a escola nova, que só aqui em casa tenho duas crianças e não consigo vaga pra elas? Aqui é uma terra sem oportunidade. Muitas pessoas saem de Gramacho para trabalhar com lixo em outros lugares, como no bairro do Caju, ou catando latinha na rua. Saímos para trabalhar e nem temos com quem deixar nossos filhos. Muitas crianças estão sem aula, o que obriga as mães a ficarem em casa com os filhos — ou irmãos mais velhos, também crianças ainda.”
Nas ruas sem asfalto de Jardim Gramacho, a poeira sobe quando passam caminhões de lixo que, clandestinamente, continuam a despejar resíduos sólidos em terrenos dominados por traficantes de drogas — na ausência de prefeito e governador, são os donos do lugar. As autoridades sabem que há dezenas de lixões clandestinos, a polícia sabe, mas é como se ninguém soubesse, porque ninguém faz nada. Em alguns dias da semana, caminhões com restos de comida também despejam lixo orgânico. Porcos procuram restos de comida junto a um cavalo em frente a um muro onde se lê a pixação “nós nasce, cresce, fuma, cheira, rouba, reproduz e morre”. Há lixo por todos os lados.
A falta de trabalho e de assistência social é dramática e obriga mulheres que sempre ganharam a vida com reciclagem a fazerem o que antes era impensável para alimentar seus filhos. Vera Lúcia Lemos, de 29 anos, tornou-se catadora logo após virar mãe pela primeira vez aos 16 anos. Corria o ano de 2010, e a rampa ficou aberta apenas mais dois anos. Vera diz que era “dinheiro fácil”, mas desde que o aterro fechou, ela depende de doações para sustentar seus três filhos e ficou deslocada no mercado de trabalho. Nunca lhe foi oferecido nem sequer um curso de formação profissional em outra área, ao contrário do que foi exaustivamente prometido pelas autoridades.
“Nunca achei ruim trabalhar no lixão. Era muito bom, comecei muito nova e lá eu me sentia em casa. Mas depois que eu me separei do Eduardo, pai dos meus filhos, tudo piorou muito. Brigamos porque ele queria ficar comigo e com outra mulher, e eu não aceitei. Olha, eu vou ser muito sincera. Eu só não mato e não roubo. O resto eu faço de tudo. Se depender de eu sair com alguém pra dar comida pros meus filhos, eu saio, e não tenho vergonha de falar. É melhor eu fazer o que for necessário do que meus filhos passarem fome. As aulas estão voltando: como vou comprar material escolar pra eles, mochila, tênis, uniforme? Por isso estou na rua, pra ver se consigo dinheiro”, explica Vera, que é comadre de Nina, enquanto caminha sob o sol quente da região metropolitana do Rio de Janeiro.
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Novos “tigres”
Ninguém parece interessado em desenvolver Jardim Gramacho, ou ao menos não deixar as pessoas desse bairro agonizarem a céu aberto, com mães se prostituindo para seus filhos não morrerem de fome. O município de Duque de Caxias, cidade da região metropolitana que tem um dos PIBs (Produto Interno Bruto) mais altos do Brasil, por incrível que pareça não possui nenhum projeto de reciclagem, embora tenha abrigado por tanto tempo o maior lixão do continente.
E o município do Rio, maior responsável pelo lixo levado durante 34 anos para lá, por mais absurdo que pareça está liberado de responsabilidade, pois pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos, aprovado em 2010, a coleta de lixo é de responsabilidade de cada município — e Jardim Gramacho fica em outra cidade, embora esteja colado ao Rio. É uma situação inacreditável, já que uma parte do aterro sanitário ainda pertence ao Rio. Em 2013, a prefeitura de Paes iniciou o aproveitamento do gás metano acumulado no solo do aterro para gerar energia para a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc). Por contrato, o município recebe 18% da arrecadação com esse negócio. Apesar disso, a Comlurb afirmou em nota que o projeto “ainda está sendo finalizado”. A engenheira ambiental Luise Valentim, que há nove anos atua em Jardim Gramacho, não sabe que tipo de “vida útil” esse projeto teve, mas garante que ele existiu. Um funcionário da prefeitura que acompanhou o caso diz que o volume de gás foi superdimensionado pelo município, a empresa lucrou menos que o esperado e abandonou o projeto – mas nem um real do biogás chegou a Jardim Gramacho.
E o que aconteceu com os outros lixões do país além de Jardim Gramacho? Em 2020, ainda havia 2.707 lixões – no ano anterior eram 3.257. Mas essa conta não inclui os lixões clandestinos que surgiram posteriormente: apenas na Baixada Fluminense, no território mais perto de Gramacho, são pelo menos 20. Wellington Cunha de Souza, de 18 anos, tem se arriscado em um dos lixões irregulares de Caxias, mas não recomenda:
“A vida é muito barata nesses lugares, as pessoas te matam por causa de um real. Se fossem só catadores, não teria problema, mas tem muita área de milícia aqui, e eles estão sempre rondando os lixões para ocultar cadáveres. Olha o tipo de coisa que precisamos enfrentar para ganhar uma merda de dinheiro”, disse o jovem, que abandonou a escola porque precisava pagar as despesas de casa (ele sonha seguir carreira militar, mas o curso de preparação para a prova que deseja custa R$ 350 por mês, valor impossível para ele).
É de pessoas pretas que estamos falando, principais vítimas do racismo ambiental no Brasil que expõe a condições desumanas de existência especialmente negros e indígenas. São eles que trabalham com lixo desde a chegada da família real portuguesa. Naquela época, uma nova categoria de escravos foi criada pelo imperador Dom João VI para limpar as ruas insalubres do Centro da cidade, repletas de lixo, fezes e restos de comida. Os catadores de dejetos coletavam lixo nas ruas e nas casas dos ricos portugueses em balaios de madeira e argila. Com o chorume ácido que escorria dos balaios pelos seus corpos, suas peles ficavam manchadas e, por isso, eram chamados de “tigres”. A exclusão de Jardim Gramacho é a continuação desse passado de exclusão que, assim como antes, não atinge apenas brasileiros: há uma comunidade congolesa que se formou em Jardim Gramacho, mas a maioria já saiu de lá traumatizada, e muitos decidiram seguir para os Estados Unidos por um tortuoso caminho conduzido por coiotes.
“Não sei o que ainda estou fazendo nesse lugar. Na verdade, não tenho dinheiro para comer, imagine sair do país. Meus irmãos já foram, só falta eu. É uma viagem cara, de 3 a 4 mil dólares. Tenho medo de acabar aqui pra sempre”, relata o congolês Gerard Nzuzi, de 48 anos.
É difícil acreditar que essa tragédia em um bairro de 50 mil pessoas esteja ocorrendo sem que ninguém faça nada em um lugar que recebeu tanta atenção internacional nos últimos anos, especialmente a partir do documentário “Lixo Extraordinário”. O artista perdeu o Oscar, mas Jardim Gramacho ganhou notoriedade. Anos antes, em 2006, o documentarista Marcos Prado lançou “Estamira”, retrato de uma sábia catadora de Gramacho que sofria de distúrbios mentais.
Protagonista de “Lixo Extraordinário”, Sebastião Santos preside até hoje a Coopergramacho, cooperativa fundada em 1996. Foi de sua mãe, primeira catadora da família, que ele herdou “a arte de trabalhar com materiais recicláveis”, como diz. Depois do filme, Tião, como é conhecido por todos, correu o mundo falando sobre a causa de sua categoria, valorizando o trabalho desses 800 mil profissionais responsáveis por reciclar de forma precária quase todo o lixo do país. Apesar da falta de apoio governamental e da iniciativa privada, a cooperativa de Tião, com apenas dez trabalhadores contratados, reciclou no ano passado 460 toneladas de papelão, plástico, alumínio, metal e vidro, gerando 360 mil reais. Tião sente-se triste por ter tido a oportunidade de ver e viver experiências que seus companheiros não tiveram. Mas o que fez ele ir ao fundo do poço da depressão foi algo ainda mais perturbador.
“Eu achava que era culpado pelo aterro ter fechado. Choro até hoje por isso. Carrego a culpa de quem acreditou em um monte de coisas, um monte de promessas falsas. Não só culpa, também muita raiva, raiva de mim, raiva de tudo. Hoje sou um homem de 43 anos, tenho a mente muito mais madura, mas ainda me sinto culpado.”
Nesse processo interior, Tião decidiu sair de Jardim Gramacho, mas vive a poucos minutos de lá, em outra comunidade de Caxias. Tornou-se mais recluso para reencontrar seu lugar no mundo, começou a ser atendido por uma psicóloga e agora está ainda mais forte para lutar, ciente de que não pode contar com ninguém além dos companheiros da lida. Seus olhos brilham quando ele fala sobre reciclagem.
“Na Lei 12.305, que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, os catadores somos citados mais de 20 vezes. A lei fala sobre nossos direitos e diz que ‘quem é poluidor, é pagador, e quem é despoluidor, é recebedor’. Mas quantos recebem pelo serviço prestado? Quase nenhum, 95% não recebem um centavo. Nossa luta é solitária, tudo é feito por nós, com nosso dinheiro, sem apoio da prefeitura de Caxias, da prefeitura do Rio, do governo estadual ou federal”, diz Tião, com os olhos fervendo. “Esse lugar sofreu por 34 anos com derramamento de resíduos e, mesmo assim, construímos nessa comunidade o maior mecanismo de geração de trabalho e renda com reciclagem do país. E que foi desativado.”
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Como pode um local que viveu a exclusão com a chegada do aterro passar por uma nova exclusão após seu fechamento? A única promessa cumprida pelos governantes foi o pagamento de uma indenização de R$ 13,9 mil para 1.707 catadores que estavam cadastrados – pouco para quem tem família, mas não tem trabalho. Sem orientação sobre como usar esse recurso, a maioria acabou deixando o dinheiro nos mercados e bares locais. Segundo Tião, que se emociona ao contar sua história, é preciso romper um ciclo vicioso para que haja um basta na exclusão.
“Ninguém se torna catador porque é ambientalista, porque quer salvar o planeta. E mesmo assim nós fazemos um trabalho essencial, somos responsáveis por 90% do lixo reciclado no país. Minha mãe não era nenhuma maluca para pegar oito filhos e levar para dentro do lixão. Meu pai se tornou alcoólatra, ficou desempregado, e minha mãe teve que cuidar de oito filhos. Essa é a história da maioria dos catadores do Brasil, e na verdade a maioria (63% segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) são mulheres negras, mães de família. Como a Nina, que é a continuação da história da minha mãe. A gente só é capaz de quebrar esse ciclo com políticas públicas, não com promessas.”
Tião recorda que, quando o aterro foi fechado, autoridades do Rio firmaram o Plano de Encerramento de Jardim Gramacho. Recuperação do passivo social e ambiental, geração de trabalho e renda, construção de condomínio para as pessoas viverem com dignidade: tudo ficou no mundo da fantasia. Estava previsto, por exemplo, o uso da exploração de gás metano presente no solo como compensação por todos os danos causados em Jardim Gramacho pela segunda maior cidade do país. A maioria dos 7 milhões de moradores do Rio não faz a menor ideia do que se passa no antigo lixão, e nem imagina o caminho percorrido por seu próprio lixo, como se ele desaparecesse feito mágica assim que sai de casa. Ninguém sabe quanto o município arrecada com o gás metano, e nem um real desse dinheiro jamais foi usado para qualificar o bairro e seus catadores. Segundo Tião, “desde o fechamento, nunca mais se falou nesse assunto”.
Em uma cooperativa vizinha, a Cooper Nova Era, onde trabalham no momento dez profissionais, a situação piorou especialmente depois que o preço do papelão despencou para R$ 0,30 o quilo – há poucas semanas era R$ 1,20. O ideal para eles seria mudar de endereço e ir para o Rio, mas como vão pagar aluguel? A prefeitura de Caxias nunca deu nenhum apoio — eles não conseguiram nem mesmo ter acesso à secretaria municipal de Meio Ambiente.
“Nossa situação é terrível, mas somos brasileiros, tentamos até o fim. A Comlurb doa material pra gente dizendo que é reciclável, mas quando a gente busca lá, vê que é tudo lixo. Lixo mesmo, não tem nada de reciclável, e ainda temos que pagar o frete. Eles deveriam ter alguma obrigação com Gramacho, mas mandam essa esmola porque não existe Justiça nesse país. Então temos que implorar para receber esse material, mesmo sendo uma esmola” afirma Ana Paula Serafim da Silva, 47 anos, também uma mulher negra, presidente da cooperativa e catadora desde os 11 anos.
Com tamanho abandono dos trabalhadores, não é uma surpresa que a reciclagem seja um dos gargalos da Polícia Nacional de Resíduos Sólidos, e que o Rio tenha índices pífios de reciclagem há tantos anos: somente de 5% a 7% dos materiais potencialmente recicláveis são de fato reciclados, segundo a Comlurb. Cerca de 12 milhões de toneladas de resíduos sólidos acabaram descartados no meio ambiente, deixando de gerar trabalho, renda e reuso de materiais. Por ano, em todo o país, são gerados quase 80 milhões de toneladas de lixo, mas apenas 4% são reciclados. São dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). O Brasil deixa de gerar R$ 14 bilhões anuais com falta de destinação apropriada. No Rio de Janeiro, segundo pesquisa de setembro de 2021 da Firjan com base em dados públicos oficiais, a perda é de R$ 1 bilhão a cada ano.
“Temos 50 mil pessoas em Jardim Gramacho que sabem tudo de resíduos. Por que não capacitamos elas e usamos esse conhecimento? Estamos falando de vidas. Ninguém nunca puniu os responsáveis pelo que vem acontecendo lá. Histórico tem, pessoas morrendo têm, pessoas na miséria têm, falta água, falta saneamento, falta saúde, falta educação. O que falta para atuarem? Existe uma coisa que é viver, e boa parte da nossa população vive bem. Outra coisa é sobreviver: em Gramacho, sobrevive-se”, afirma a engenheira Valentim, que também consultora de sustentabilidade .
É meio-dia, hora do almoço na casa de Nina. Ela faz uma oração antes de servir a comida. Filhos e netos sorriem: é dia de carne.
“Sou evangélica e recebi durante um culto a mensagem que Deus me daria um emprego. Eu estava com muitas dívidas, sem saber como iria pagar. Esse trabalho na cooperativa é bênção de Deus”, diz Nina, com um leve batom na boca e um pouco de maquiagem no rosto para aproveitar sua semana de férias. “Sei que está ruim, mas muita gente está pior. Não deixo de agradecer.”
Ninguém no barraco sabe quando voltará a comer carne de novo, muito menos quando terão uma casa de tijolos onde não falte água para cozinhar e tomar banho, nem luz para as crianças verem desenhos. Mas, na hora de comer, tudo parece em paz. Com o quilo da carne a preço de ouro, Nina reparte três pedaços pequenos para cada um e os espalha no prato das crianças — eles desaparecem na brancura do arroz.