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Vladimir Putin: anti-imperial ou nacionalista? Entenda a trajetória e como pensa o líder russo

De agente secreto a presidente do país, Putin está presente há quase 40 anos nas instituições do Estado russo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Além de presidente da Rússia, Vladimir Putin foi diretor do serviço de inteligência e primeiro-ministro do país - Mikhail Klimentyev / AFP

O atual presidente da Rússia, Vladimir Putin, tem sido um nome recorrente na imprensa internacional, não só por ser líder da 12ª economia mundial, mas por abrir um debate sobre sua posição político-ideológica. Afinal, Putin é de esquerda ou de direita? A guerra contra a Ucrânia é imperialista ou antiimperialista? Uma breve análise sobre o seu passado pode ajudar a responder algumas perguntas.

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História 

Vladimir Vladimirovich Putin nasceu em 7 de outubro de 1952, em Leningrado, atual São Petersburgo, segunda maior cidade da Rússia. De origem humilde, filho de dois operários, Vladímir Spiridónovich Putin e María Ivánovna Pútina, viveu sua infância dividindo um apartamento comunal com outras três famílias.

Estudou direito na Universidade Estadual de Leningrado e sua tese foi orientada por Anatoly Sobchak, um dos autores da Perestroika - projeto de liberalização econômica que levou à desintegração da União Soviética. 

Putin serviu durante 15 anos como agente do serviço de inteligência secreta da URSS (Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti - KGB), trabalhando em tarefas de contra-inteligência e supervisão de diplomatas nos últimos seis anos em Dresden, Alemanha Oriental. Em 1990, quando deixou a KGB, tornou-se pró-reitor da Universidade de Leningrado. 

Já em 1994 foi eleito vice-prefeito da sua cidade natal. Apenas dois anos depois, mudou-se para Moscou para unir-se à equipe presidencial como vice de Pavel Borodin. 

Em 1998, foi nomeado, pelo então presidente Boris Yeltsin, como diretor do Serviço de Segurança Federal da Rússia (FSB), que substituiu a KGB. Nessa época Putin liderou uma operação militar contra movimentos separatistas na Chechênia. Os rebeldes seriam apoiados pelas potências ocidentais e a guerra terminou com cerca de 25 mil mortos, segundo levantamento da Global Security.


Putin serviu 15 anos o serviço de inteligência soviético, a KGB, chegando ao posto de tenente-coronel / Imago

23 anos no governo

No dia 31 de dezembro de 1999, Boris Yeltsin renunciou à presidência e Vladimir Putin tornou-se chefe de Estado interino até março de 2000, quando foram realizadas eleições gerais e ele foi eleito com 53% dos votos contra Gennady Zyuganov, candidato pelo Partido Comunista da Federação Russa.

Logo no início da gestão, reafirmou o controle sobre as 89 regiões do país dividindo-as em sete novos distritos federais, cada um chefiado por um representante nomeado pelo presidente. Também suspendeu a participação dos governadores regionais no Conselho da Federação, a câmara alta do parlamento russo. 

Em 2002, assinou o Tratado de Moscou com o então presidente dos Estados Unidos George W. Bush. O pacto determinava que cada país reduziria seu arsenal nuclear nos 10 anos seguintes.

Apesar de ter se comprometido com a luta "contra o terrorismo" desatada pela Casa Branca após o atentado do 11 de setembro, em 2003, opôs-se à invasão do Iraque e à derrubada do governo de Saddam Hussein.

Durante seus primeiros anos como presidente, Putin reestatizou a Gazprom, maior empresa estatal russa, responsável pela produção anual de 763 bilhões de m³ de gás. Também promoveu uma reforma comunicacional, fortalecendo meios de comunicação estatais russos e perseguiu as "máfias russas", formada por oligarcas que enriqueceram após a desintegração da URSS, aplicando a "ditadura da lei" contra a corrupção.


Após suceder o presidente Boris Yeltsin, em 1999, Putin tornou-se o principal líder político da Rússia / Mikhail Klimentyev / AFP

Após exercer seu segundo mandato, em 2008, foi nomeado primeiro-ministro por Dmitri Medvedev, presidente da Rússia e copartidário na legenda Rússia Unida. Medvedev governou o país até 2012, quando Putin voltou a candidatar-se e ocupar a presidência.

Em 20 anos de gestão encabeçada por Putin, o gasto militar do país aumentou 12 vezes, colocando a Rússia como uma das maiores, senão a maior potência militar no mundo, inclusive passando a exportar sua tecnologia para vários países. Sistemas antimísseis, aviões caça e vários tipos de armamento. A Rússia também é o segundo maior exportador de armas do mundo, atrás somente dos Estados Unidos.

De acordo com relatório do Instituto Estocolmo para a Paz (SIPRI - siglas em inglês), em 2021, o país possuía 6225 ogivas nucleares, desbancando os EUA do topo do ranking, com 5500 armas nucleares.

"A Rússia é fundadora da Organização de Cooperação de Xangai, que possui 12 milhões de soldados na ativa e 6 milhões na reserva. Dizer que toda essa movimentação parte de um estadista conservador é um erro de análise", comenta o sociólogo Lejeune Mirhan.

Com Putin, o PIB do país se multiplicou por cinco: de US$ 300 bilhões (R$ 1,5 trilhão), em 2000, a U$ 1,7 trilhão (R$ 8,4 trilhão) em 2019. A expectativa de vida do povo russo aumentou em 10 anos, para 73,6 anos, e o desemprego caiu para 5,5%. Os bons resultados econômicos e a estabilidade política do país poderiam explicar o alto índice de aprovação do mandatário, que ronda entre 70 e 80% de popularidade. 

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Conservadorismo

Em 2020, o chefe de Estado aprovou uma reforma constitucional, que além de aumentar o período de mandato de quatro para seis anos, também permite que o líder do Executivo concorra até cinco vezes para reeleição. No caso de Putin, isso significa que ele poderia ser presidente do país, caso eleito, até 2036.

O novo texto foi aprovado por ampla maioria na Duma e, em seguida num referendo popular com 74% de apoio. A reforma ampliou as atribuições do Legislativo, além de incluir outras medidas, como a "fé em Deus" como um valor essencial do país, o matrimônio como instituição heterossexual, o russo como "língua do povo formador do Estado" e a previsão de que as crianças devem receber uma educação de qualidade para tornar-se "patriotas". 

Desde que assumiu a chefia do Estado, o nacionalismo tornou-se a base do seu discurso para unir o país com maior extensão territorial do mundo e lar de mais de 100 grupos étnicos.

Membro da Igreja Ortodoxa Russa, como presidente Putin se aproximou do Patriarcado de Moscou e fortaleceu a instituição dentro do país, isso após 74 anos de distanciamento da Igreja de centros de poder e do Estado laico durante o período da URSS. O padre Tikhon Shevkunov seria seu conselheiro espiritual e confessor, chamado de dukhovnik em russo.


O padre da Igreja Ortodoxa Russa, Tikhon Shevkunov seria o mentor espiritual de Vladimir Putin / Imago

Em 2013 aprovou uma lei que proíbe a promoção da homossexualidade para menores de 18 anos. Putin diz que a lei "não prejudica ninguém" e o departamento de justiça da Rússia diz que foi projetada para "proteger a moral e a saúde das crianças".

"Apesar da sua formação na KGB, ele é um religioso e conservador nas suas ideias, com bastante proximidade com o presidente brasileiro. Putin defende muito mais uma questão nacional do que socialista. Putin não é socialista", analisou em live do Brasil de Fato, o doutor em filosofia e professor da Unesp, Hector Luis Saint-Pierre 

A posição conservadora na política interna fez com que Putin se aproximasse de outros líderes de direita e até extrema direita no mundo. 

O mandatário húngaro, Viktor Orbán, e a candidata à presidência da extrema direita francesa, Marine Le Pen, seriam dois aliados do presidente russo dentro da Europa. 

Por outro lado, suas alianças com governantes de esquerda, como o venezuelano Nicolás Maduro, o cubano Miguel Díaz-Canel e o chinês Xi Jinping, para diversos analistas, baseiam-se em um pragmatismo político e nos objetivos militares e econômicos do país.

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"Eu não tenho a menor dúvida de que Putin é um líder do campo anti-imperialista. Não entro em questões pessoais sobre seus hábitos, costumes, preferências. O que importa é ação do Estado russo, que há mais de 20 anos, é uma ação objetivamente anti-imperialista. Não por acaso ele defendeu o governo sírio de Bashar Al Asad", defendeu o sociólogo Lejeune Mirhan.

Já o professor de Relações Internacionais da UFABC, Giorgio Romano, em live com o Brasil de Fato, ponderou "Putin é profundamente anti-hegemônico. Ele se alia ao chavismo e financia grupos de extrema direita na Europa Ocidental e isso tem uma lógica. A lógica é: onde existam forças anti-hegemõnicas, anti-Estados Unidos, o Putin vai apoiar, porque isso aumenta o poder de barganha da Rússia".


Jair Bolsonaro e Vladimir Putin se cumprimentam e acenam para a imprensa após declaração conjunta, em Moscou, 16 de fevereiro de 2022 / Kremlin

Relação com Ucrânia

A Ucrânia conquistou sua independência em agosto de 1991, após o fim da URSS, e as relações com a Rússia começaram a se desgastar a partir de 1994, com a gestão de Leonid Kutchma, considerado "pró-Ocidente".

No entanto, a balança comercial entre os dois países continua favorável para o lado russo. Em 2019, a Rússia exportou US$ 6,6 bilhões (R$ 33 bilhões) à Ucrânia, majoritariamente petróleo e derivados, e importou US$ 657 milhões (R$ 3,4 bilhões), principalmente em alumínio e produtos químicos.

As duas nações também possuem acordos de envio de gás russo para a Europa pelo território ucraniano vigentes até 2024. 

Em fevereiro de 2014, quando o presidente Viktor Yanukovych sofreu um golpe de Estado após meses de protestos do episódio conhecido como Euromaidan, ele pediu asilo na Rússia e Putin solicitou a aprovação parlamentar para o envio de tropas à Ucrânia. 

No início de março do mesmo ano, tropas russas haviam efetivamente assumido o controle da Crimeia, uma república autônoma ucraniana cuja população era predominantemente de origem russa. No mesmo mês, a população da Crimeia realizou um referendo popular aprovando sua anexação à Rússia.

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Em 2015, foram assinados os Acordos de Minsk, que previam desmilitarização da Crimeia e da região de Donbas, e o compromisso de Kiev em aumentar a autonomia das regiões separatistas - algo que não aconteceu.

Dias antes de declarar o início da operação militar especial para "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia, Putin reconheceu a independência das repúblicas populares de Donestk e Lugansk, enterrando os últimos compromissos do pacto de 2015.

No seu discurso, criticou ataques de Kiev à Igreja Ortodoxa Russa e acusou o governo ucraniano de tergiversar a história dos dois países, dando brecha para o fortalecimento do neonazismo.

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"[A Ucrânia] começou a construir seu Estado na negação de tudo o que nos une, procuraram distorcer a consciência, a memória histórica de milhões de pessoas, gerações inteiras que vivem na Ucrânia [...] Você quer a descomunização? Bem, isso nos convém muito bem. Mas não é necessário, como dizem, parar no meio do caminho. Estamos prontos para mostrar o que a descomunização real significa para a Ucrânia", afirmou.

Apesar de assegurar que a Ucrânia moderna foi uma criação da União Soviética, Putin fez uma série de críticas à concepção de Estado defendida por Lenin e fez referências ao território do Império Otomano Russo, como o passado que une os dois países.

"Então, no século 18, as terras da região do Mar Negro, anexadas à Rússia como resultado das guerras com o Império Otomano, foram chamadas de Novorossiya. Agora eles estão tentando esquecer esses marcos da história, bem como os nomes de figuras militares estatais do Império Russo, sem cujo trabalho a Ucrânia moderna não teria muitas grandes cidades e até mesmo a saída para o Mar Negro", ressaltou Putin.

Edição: Arturo Hartmann