Coluna

Marielle Vive: Quem é essa Têmis negra, que acorda até a surdez dos muros?

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Os assassinatos de Marielle e Anderson ocorreram justamente no mês de março, em que historicamente celebram-se as lutas feministas - Miguel Schincariol/AFP
A polícia e o MP até hoje ainda não concluíram as investigações sobre quem foi o mandante da morte

Por Cláudia Maria Dadico e José Carlos Garcia*

No dia 14 de março de 2018, por volta das 21h30min, a vereadora carioca Marielle Franco, nascida Marielle Francisco da Silva, foi assassinada a tiros no Estácio, região central do Rio de Janeiro, juntamente com seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes.

Cerca de um ano depois, dois ex-policiais, Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, foram presos acusados de serem os executores dos homicídios, e em julho de 2021 o miliciano Almir Rogério Gomes da Silva foi preso sob a acusação de ser o mandante do crime.

Entretanto, a rigor, polícia e Ministério Público até hoje ainda não concluíram as investigações sobre quem foi o mandante da morte, nem sobre o paradeiro da arma utilizada, uma submetralhadora MP-5. Ao longo destes quatro anos, o inquérito do assassinato de Marielle e Anderson já teve à frente cinco delegados diferentes.

Os assassinatos de Marielle e Anderson ocorreram justamente no mês de março, em que historicamente celebram-se as lutas feministas.

Marielle era uma liderança feminista promissora. Apesar de jovem, já tinha uma carreira política sólida, comprometida com as pautas de gênero, em sua intersecção com raça e classe e com os direitos do povo das favelas. Ícone de um novo jeito de fazer política, ancorada nas próprias origens e, assim, acolher e amplificar a voz do povo pobre e favelado que a elegeu.

Os tiros que interromperam sua trajetória ecoam até hoje e ainda colocam nas bocas de todas as mulheres que celebram o 8M o gosto acre de sangue. Todas nós morremos naquele dia. Todas nós renascemos e renasceremos, a cada mês de março, com mais força, mais coragem e mais gana de viver. Viver e amar. Amar e resistir. Resistir e lutar contra a violência que vitimiza tantos corpos femininos e feminizados neste que é um dos lugares mais inseguros do planeta para ser mulher, negra e LGBTQIA+.

Em homenagem à Mulher, Feminista e Vereadora, publicamos na presente coluna um poema escrito à época dos fatos por um dos articulistas que assinam este texto.

 

Têmis no Asfalto

José Carlos Garcia

 

Para Marielle Franco

 

Prisioneiro de minha toga e minhas roupas – já não visto branco,

vou só pelo cinza das ruas

Revisito a revolta sem armas do poeta

Dele trago a mesma impotência e náusea

ou o mesmo relógio parado em justiça e fezes

Há uma suspensão no tempo, abismo, vortex, buraco negro devorador de existências

 

As peles das palavras são navalhas na minha pele

(a pele, branco que afinal visto – mas não é branco, é róseo)

 

Em meu desfile de mortos vejo seu corpo solto no asfalto

A venda lhe escapa aos olhos, a balança atirada ao chão

A túnica ensanguentada de descaso

expõe-lhe coxas e sexo de forma indecente

Cubram-lhe o sexo! As crianças não o podem ver se já não é objeto, mas gente!

Cubram-lhe o sexo que não é mais mercado, mas dor e ausência

É apenas a presença enevoada na carne de outra mulher que se desnuda

na lágrima solitária que lhe cai

 

Quem é essa Têmis negra vertida em sangue? Que faz no silêncio atroz do asfalto?

 

No asfalto vivem misérias, mãos suplicantes com fome de vida

Vagam pelo asfalto bêbados e loucos

crianças abandonadas ou que se abandonam à volúpia vil

A pele negra é negra como o asfalto negro

pisada como o asfalto negro

derretida e dura como o asfalto

 

Nele vagam meretrizes à busca de desamor pago

vagam pernas cansadas de labor e clausura

marcham massas protestantes de punhos fechados que acariciam

 

Quem é essa Têmis violentada no asfalto?

Por quais caminhos se lhe interromperam os caminhos?

Por quais descaminhos se lhe encontraram quatro balas a cabeça?

 

O Rio de aço e seu tráfego dela já não desviam

– o aço que lhe perfura não veio do chão quente de verão, mas da frieza da mão –

antes se une em rio caudaloso e multidão

 

Quem é essa Têmis negra, que acorda até a surdez dos muros?

Flor negra de justiça que não pode nenhum Dumas

Que não ousa Baudelaire algum

Que trina balanças de compaixão e luta?

 

Em luto segue a multidão atônita

desfila a vida onde antes desfilavam mortos

Pelo asfalto negro seguem atropelados, protestos, putas

enquanto outros voltam à casa, com olhos de celulares e tablets sem ênfase

na voragem devoradora da humanidade em sangue

 

Olho o relógio na grande cidade – já não são cinco horas, o tempo parou

Tudo é memória invivida de justiça e fezes.

 

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**José Carlos Garcia é doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

***A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo