A polícia e o MP até hoje ainda não concluíram as investigações sobre quem foi o mandante da morte
Por Cláudia Maria Dadico e José Carlos Garcia*
No dia 14 de março de 2018, por volta das 21h30min, a vereadora carioca Marielle Franco, nascida Marielle Francisco da Silva, foi assassinada a tiros no Estácio, região central do Rio de Janeiro, juntamente com seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes.
Cerca de um ano depois, dois ex-policiais, Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, foram presos acusados de serem os executores dos homicídios, e em julho de 2021 o miliciano Almir Rogério Gomes da Silva foi preso sob a acusação de ser o mandante do crime.
Entretanto, a rigor, polícia e Ministério Público até hoje ainda não concluíram as investigações sobre quem foi o mandante da morte, nem sobre o paradeiro da arma utilizada, uma submetralhadora MP-5. Ao longo destes quatro anos, o inquérito do assassinato de Marielle e Anderson já teve à frente cinco delegados diferentes.
Os assassinatos de Marielle e Anderson ocorreram justamente no mês de março, em que historicamente celebram-se as lutas feministas.
Marielle era uma liderança feminista promissora. Apesar de jovem, já tinha uma carreira política sólida, comprometida com as pautas de gênero, em sua intersecção com raça e classe e com os direitos do povo das favelas. Ícone de um novo jeito de fazer política, ancorada nas próprias origens e, assim, acolher e amplificar a voz do povo pobre e favelado que a elegeu.
Os tiros que interromperam sua trajetória ecoam até hoje e ainda colocam nas bocas de todas as mulheres que celebram o 8M o gosto acre de sangue. Todas nós morremos naquele dia. Todas nós renascemos e renasceremos, a cada mês de março, com mais força, mais coragem e mais gana de viver. Viver e amar. Amar e resistir. Resistir e lutar contra a violência que vitimiza tantos corpos femininos e feminizados neste que é um dos lugares mais inseguros do planeta para ser mulher, negra e LGBTQIA+.
Em homenagem à Mulher, Feminista e Vereadora, publicamos na presente coluna um poema escrito à época dos fatos por um dos articulistas que assinam este texto.
Têmis no Asfalto
José Carlos Garcia
Para Marielle Franco
Prisioneiro de minha toga e minhas roupas – já não visto branco,
vou só pelo cinza das ruas
Revisito a revolta sem armas do poeta
Dele trago a mesma impotência e náusea
ou o mesmo relógio parado em justiça e fezes
Há uma suspensão no tempo, abismo, vortex, buraco negro devorador de existências
As peles das palavras são navalhas na minha pele
(a pele, branco que afinal visto – mas não é branco, é róseo)
Em meu desfile de mortos vejo seu corpo solto no asfalto
A venda lhe escapa aos olhos, a balança atirada ao chão
A túnica ensanguentada de descaso
expõe-lhe coxas e sexo de forma indecente
Cubram-lhe o sexo! As crianças não o podem ver se já não é objeto, mas gente!
Cubram-lhe o sexo que não é mais mercado, mas dor e ausência
É apenas a presença enevoada na carne de outra mulher que se desnuda
na lágrima solitária que lhe cai
Quem é essa Têmis negra vertida em sangue? Que faz no silêncio atroz do asfalto?
No asfalto vivem misérias, mãos suplicantes com fome de vida
Vagam pelo asfalto bêbados e loucos
crianças abandonadas ou que se abandonam à volúpia vil
A pele negra é negra como o asfalto negro
pisada como o asfalto negro
derretida e dura como o asfalto
Nele vagam meretrizes à busca de desamor pago
vagam pernas cansadas de labor e clausura
marcham massas protestantes de punhos fechados que acariciam
Quem é essa Têmis violentada no asfalto?
Por quais caminhos se lhe interromperam os caminhos?
Por quais descaminhos se lhe encontraram quatro balas a cabeça?
O Rio de aço e seu tráfego dela já não desviam
– o aço que lhe perfura não veio do chão quente de verão, mas da frieza da mão –
antes se une em rio caudaloso e multidão
Quem é essa Têmis negra, que acorda até a surdez dos muros?
Flor negra de justiça que não pode nenhum Dumas
Que não ousa Baudelaire algum
Que trina balanças de compaixão e luta?
Em luto segue a multidão atônita
desfila a vida onde antes desfilavam mortos
Pelo asfalto negro seguem atropelados, protestos, putas
enquanto outros voltam à casa, com olhos de celulares e tablets sem ênfase
na voragem devoradora da humanidade em sangue
Olho o relógio na grande cidade – já não são cinco horas, o tempo parou
Tudo é memória invivida de justiça e fezes.
*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
**José Carlos Garcia é doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
***A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.
****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo