Causa do conflito é geopolítica, mas fatores econômicos e interesses das corporações prevalecem
A guerra entre Rússia e Ucrânia segue em escalada. Já são 12 dias de confronto e mais de 1,5 milhões de refugiados que deixaram o território em direção a países fronteiriços, como Polônia e Hungria. As negociações entre os dois países, que determinariam um cessar-fogo, não tiveram sucesso até o momento.
Convidado desta semana no BDF Entrevista, o professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Reginaldo Nasser, questiona as mesas de negociações formadas, até o momento, para encerrar o conflito: “Os enviados não são os representantes mais importantes dos seus respectivos estados. É uma conversação entre os dois envolvidos, Ucrânia e Rússia, mediados por um terceiro... que é Belarus?”.
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“Um conflito dessa dimensão não ter [na mesa de negociação] ninguém da comunidade europeia, não ter ninguém dos Estados Unidos, não ter ninguém da ONU [Organização das Nações Unidas], a própria configuração do espaço, não diz muito”, critica Nasser.
O professor explica ainda que os fatores geopolíticos foram determinantes para o início da guerra, mas os interesses econômicos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) prevaleceram na relação de Rússia e Ucrânia.
Na entrevista, além da guerra entre Rússia e Ucrânia, Nasser analisa o papel da China na geopolítica global, o mundo multipolar, as sanções econômicas e a crise de refugiados gerada pela guerra e a diferenciação que se criou na relação entre ucranianos que chegam a Europa e refugiados advindos do continente africano e do Oriente Médio.
“Eu acho que, em primeiro lugar, essa é uma face muito clara do colonialismo. Ele nunca deu folga, mas por vezes, ele aflora com intensidade. Inclusive, chama a atenção de certos setores 'progressistas europeus', se a gente olhar para a história, infelizmente, não é de espantar, haviam socialistas na França que apoiavam a colonização da Argélia”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Na última semana, Rússia e Ucrânia voltaram a se sentar em mais uma rodada de negociações. Foi acertado durante essa última rodada um corredor humanitário, para a evacuação de civis. Essa pode ser uma brecha para o presidente Putin ser um pouco mais contundente na invasão?
Reginaldo Nasser: Olha, eu acho que não tem relação nenhuma com isso. Quando houve a reunião, tempos depois nós assistimos a um combate intenso entre as forças russas e ucranianas pela tomada da usina nuclear. Foi logo depois. Isso que está estabelecendo as conversas é aquilo que é o mínimo que pode ter numa guerra, um corredor humanitário.
Ele está dentro do escopo do chamado Direito Internacional Humanitário. O Direito Internacional Humanitário não coloca em questão a guerra. Ele é muito pragmático. Ele parte do pressuposto que a guerra existe e tenta minimizar seus custos. Então, quando se discute questões vinculadas ao Direito Internacional Humanitário, não é sobre pais, não é sobre o acordo, não é sobre isso, é sobre amenizar os efeitos da guerra.
A respeito dessas conversações, eu, já desde o início, acho tudo muito estranho, ou para dizer, não tem grandes intenções de fazer um acordo mais importante nesses encontros, por vários motivos. Primeiro, aqueles que são enviados não são representantes, os mais importantes superiores dos seus respectivos estados. Outra, uma conversação entre os dois envolvidos, Ucrânia e Rússia, mediados por um terceiro, que é Belarus.
Quer dizer, um conflito dessa dimensão não tem ninguém da comunidade europeia, não tem ninguém dos Estados Unidos, não tem ninguém da ONU, quer dizer a própria configuração do espaço para a conversa, também não diz muito. Então, eu acredito que essas conversações não vão muito longe.
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Nós tivemos alguns atores que se envolveram durante o processo. O presidente da França, Emmanuel Macron, o primeiro-ministro Olaf Scholz, no começo tentou mediar, mas depois a Alemanha perdeu um pouco da sua estratégia natural, que vinha, por exemplo, desde os tempos de Angela Merkel, de conversa e diálogo. A Europa não foi capaz de fazer essa mediação, professor?
É, veja, não só esse, mas esse conflito, em particular, a medida que ele se desenrola, há mudanças nos objetivos, nas táticas, na estratégia. Então, até o momento quando se deu a invasão das tropas russas, como você disse, o Macron e o Scholz desapareceram.
O Scholz até aparecia bem, porque ele teve posições muito equilibradas em relação aos Estados Unidos, parecia não submisso, conversou bastante com o [Vladimir] Putin.
O Macron também ensaiou levantar o Acordo de Minsk, que é o único que tem na mesa, mas a partir do momento que houve a invasão, aí você já está em um outro patamar. A partir desse momento, inclusive, a Alemanha e a França retrocederam e acabaram seguindo as orientações norte-americanas de uma forma geral, o que é lamentável.
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Agora que chegamos nesse grau de escalada do conflito, a gente especula muito o que vai acontecer nesse pós-conflito. Há uma análise, e eu tenho até conversado com alguns especialistas russos, militares e cientistas políticos, de que a expectativa da Rússia era fazer uma espécie de guerra relâmpago, uma operação militar rápida, bem sucedida, a exemplo do que aconteceu na Geórgia, em 2008, com um conflito de cinco dias. Agora, no entanto, o Putin ficou num caminho sem volta. O que deve acontecer, ele vai estimular uma derrubada do governo ucraniano, vai alcançar mais territórios?
Sua pergunta é aquela que, como se diz, vale 1 milhão de dólares, ou de rublos. Mas vamos especular. Eu acho que é bom voltar um pouco para o início, para saber o que é o pós. Todo mundo se surpreendeu com as atitudes de Putin. Um dos maiores consultores de segurança dos Estados Unidos, George Friedman, disse um dia antes: “A Rússia não vai invadir”.
Ele foi obrigado, inclusive, logo na sequência, a escrever no site dele, que dá consultoria para grandes empresas, se desculpando pelo erro. Isso tudo pegou muita gente de surpresa.
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O que aconteceu? O parlamento russo, claro, sobre as ordens expressas do Putin, aprovou uma resolução que reconhecia as regiões separatistas e como você bem apontou, algumas semelhanças com o caso da Geórgia. E aproveito para acrescentar que o Putin vem com essa ideia desde Kosovo. É como se dissesse, os Estados Unidos fez, nós vamos fazer também.
Então, ele vem nessa sequência: região separatista, vai lá, protege; vamos ver a população, ocupa militarmente e pronto, fica por aí, que é o que fez na Crimeia.
A Crimeia teve o plebiscito. Se esperava isso, tanto é que é pessoal do ocidente, criticou muito, que o termo não era correto, que o Putin usou inclusive a terminologia de Forças de Paz e ele movimentou nisso, foi a autorização do parlamento, inclusive, na época. Estou falando na época, mas é uma semana, 9 dias.
Não se sabia adequadamente até onde iam essas tropas, porque a dúvida era: bom, tem a região, para os russos, de direito, que é separatista e tem aqui está ocupada de fato pelos separatistas. Aí, ficou a questão se ele vai além, porque se vai além, vai ter confronto, então todo mundo estava espantado com aquela coisa.
E o que ele fez? Fez essa invasão por toda a Ucrânia, dispondo de todos os meios e isso fez com que se entrasse em um outro patamar, mudasse completamente, inclusive, em termos de legitimidade, legalidade, em termos operacionais e em termos de objetivos também.
Já disse o grande pensador, o [Carl von] Clausewitz e todo mundo repete, “que a guerra é a continuação da política, por outros meios”. Então, se ele está invadindo a Ucrânia, então não estão mais em questão as regiões separatistas. Ele está indo além. É o que você colocou: “derrubar um governo e colocar um outro?”. Se especulou.
É irreal desmilitarizar um país como a Ucrânia
Depois ele foi acrescentando outros objetivos, de “desnazificar” a Ucrânia, que a gente fica pensando se não é retórica. Porque, veja bem, é irreal desmilitarizar um país como a Ucrânia, não tem como. O outro, colocar um governo. Como é que a Rússia vai manter isso. A Ucrânia não é, em termos de poder, qualquer país. Não é a Síria, não é a Georgia. E outra, nem Síria, nem Georgia contaram com o apoio que a Ucrânia está tendo, militar e econômico.
Então, veja, eu acho que tudo isso que nós estamos falando é muito evidente, para passar despercebido pelo Putin. Acredito eu, estou supondo aqui, que não seja isso. Acho que ele vai no estilo clássico, do realismo na geopolítica, ele está colocando elementos a mais, para negociar e depois retirar.
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Para além do fator geopolítico, há quem aponte a questão econômica como um interesse dos Estados Unidos na região. O controle do mar negro ou a produção de gás que chega na Europa e que hoje é quase monopolizada pela Rússia. Os Estados Unidos foram, praticamente, fiadores dessa guerra, ao negociar pela Otan ou não negociar, na verdade. Qual é o papel dos Estados Unidos nesse conflito?
Olha, no ano passado eu escrevi um livro sobre a ocupação dos Estados Unidos no Afeganistão, a maior ocupação da história dos Estados Unidos. Quando os Estados Unidos saíram [do território afegão], muitos colegas meus comemoraram o fim do império. Está tudo gravado. Eu fui um dos poucos que disse que não era o fim do império, era uma questão de retirada parcial.
Os Estados Unidos têm o maior orçamento militar no mundo. Os Estados Unidos têm 750 bases militares no mundo. Só para comparar, a China tem uma. E, goste ou não, a máquina econômica, militar, capitalista, ela tem uma hegemonia no mundo. Tem sido contestado, isso é importante, pela China, parcialmente pela Rússia, mas é uma máquina, tem vários tentáculos, alguns explícitos, outros sutis.
E é interessante que quando os Estados Unidos saíram do Afeganistão, no mês seguinte, houve uma votação do orçamento no Congresso e os recursos paramilitares aumentaram. Aí todo mundo disse: “Mas como, os Estados Unidos estão saindo da guerra?”
Estão se preparando para outra, por isso se chama império.
E o que você disse é muito importante. A causa inicial do conflito, neste que nós estamos vendo, pode ser geopolítica, mas ao se iniciar, você acaba conjugando outros fatores, como os econômicos. Então você aproveita de uma circunstância, aproveita de uma situação, para ir além nesse projeto econômico de corporações.
Isso é uma luta de corporações da área energética, corporações na área financeira, todo um espectro de corporações envolvidas
Isso é uma luta de corporações da área energética, corporações na área financeira, todo um espectro de corporações envolvidas, que passa a se envolver diretamente. Os Estados Unidos já estavam se opondo ao gasoduto Nord Stream [2], construído pela Alemanha e pela Rússia. Custou bilhões de dólares, estava sem funcionar por oposição dos Estados Unidos, foi jogado por terra.
Tem um pensador de direita, neo-conservador, mas um grande historiador, Walter Russel Mead, que escreveu um texto há um tempo, que me chamou atenção. O texto e dizia que todo mundo está falando de um soft power, o poder suave, e de um hard power, que é o militar. E ele disse: “Tem um outro que eu chamo poder pegajoso, que não é o soft, nem o hard, que é o econômico". Ele chamava poder pegajoso no sentido que ele gruda e traz para a sua esfera, de forma muito mais sutil, você não tem tiro de canhão, e é verdade.
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O isolamento russo tem uma série de impactos. As sanções econômicas já estão colocadas à mesa, algumas já atingem diretamente a Rússia, tem uma desvalorização gigantesca do rublo, por exemplo, a bolsa da Rússia não abre há três dias. E o Putin agora se torna um pária aos olhos do ocidente. Isso limita a ideia de um mundo multipolar, ou a China pode ser, por exemplo, uma fiel da balança e impor essa derrota aos Estados Unidos?
É difícil, mas veja só, é interessante observar a seção de equívocos e autocrítica. O Paul Krugman, Nobel de Economia, escreveu outro dia assim: “Eu pensava que a economia da Rússia fosse mais sólida”. Eu acho que transpareceu algo que nem o Paul Krugman estava percebendo, a fragilidade.
Acho que nessa questão de mensuração de poder, a Rússia está abaixo dessas potências e, portanto, nunca pôde ser considerada para fazer parte de um mundo que a gente poderia chamar multipolar. Eu acho que isso - tudo bem, é da época - é um equívoco e não tem forma mais para resgatar. Quando se falava de multipolar, eu acredito que era muito mais ideológico, para várias perspectivas, do que real.
Alguns chegaram a colocar a Europa, mas olha, a Europa como nós estamos vendo, a Europa ocidental, no limite, ela está com os Estados Unidos. Então o que resta é dizer que poderia ser um mundo bipolar, mas eu também não diria bipolar.
A China tem uma competição com os Estados Unidos, isso é óbvio, só que ela está dentro das regras internacionais. A China não está questionando uma regra internacional, as regras básicas, as instituições basilares da ordem. Há quem fale em outra ordem, mas não tem nada de outra ordem.
Mas veja a China, ela transita. O apoio dela não é implícito à Rússia. Foi importante, mas ao mesmo tempo ela não não se alinha completamente, não tem grandes pretensões no mundo, fica ali na dela. Eu, particularmente, nunca encarei muito esse negócio de mundo multipolar.
Eu acho que, em termos de análise, não em termos de propósito, lá na década de 1990, os “neocons” americanos diziam que o mundo era unipolar. Infelizmente ele é unipolar e eu acrescentaria o que você falou na questão anterior, o econômico, porque às vezes o econômico ele não é de polos, no sentido de nação, ele é de blocos econômicos, hegemônicos.
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Nós temos, sem dúvida, uma crise humanitária. Já temos mais de 1,5 milhão de refugiados que deixaram a Ucrânia em direção à Polônia, à Hungria, entre outros países que fazem fronteira. Mas o que se tem visto é uma abordagem totalmente distinta da que é utilizada, por exemplo, com refugiados do mundo árabe. São 7 milhões de sírios, 4 milhões de venezuelanos e mais de 2,5 milhões de afegãos, todos eles têm envolvimento direto dos Estados Unidos. Que bom que os ucranianos estão sendo recebidos, mas a diferenciação que se criou para outras crises é gritante, não?
Eu acho que, em primeiro lugar, essa é uma face muito clara do colonialismo. Ele nunca deu folga, mas por vezes, ele aflora com intensidade . Inclusive, chama a atenção de certos setores “progressistas europeus”, se a gente olhar para a história, infelizmente, não é de espantar, haviam socialistas na França que apoiavam a colonização da Argélia.
A Otan, como nós estamos discutindo a Europa, ela ajudou a ocupar o Afeganistão por 20 anos. Ela ocupou o Iraque e atacou a Líbia. Fora do cenário europeu então, como você disse muito bem, tem responsabilidade direta nesses refugiados, como também ataca a Síria.
Mas aqui mostra a evidência do que esse pensamento, vamos dizer, humanista europeu, entende por humanidade. Aliás, hoje, um deputado do parlamento espanhol, deu uma declaração e foi aplaudido dizendo que os afegãos não são refugiados bem vindos, como são os ucranianos. O primeiro-ministro da Bulgária disse a mesma coisa, eu não vi nenhuma repreensão a isso por lá.
:: Ucrânia tem mais de meio milhão de pessoas refugiadas ::
Portanto, esse tratamento que está dando aos refugiados da Ucrânia, como você bem disse, eu acho que é de aplaudir, mas gostaria que fosse assim com os outros, mas não é. Você sabe que eu mesmo fui confrontado em vários posts. Eu posto em português e os por portugueses estão me contestando sobre o que eu estou falando a respeito. Eles estão reafirmando que, os ucranianos, por serem europeus, devem ser privilegiados na recepção, mostrando a face colonial.
A Otan vai continuar mostrando as suas garras fora do cenário europeu
Mas eu diria que a Otan vai continuar mostrando as suas garras fora do cenário europeu, a Ucrânia recebe muita ajuda e estão passando dificuldades. Mas, imaginem outros países que passaram crises ainda piores e não têm ajuda.
Eu finalizo lembrando algo que está acontecendo desde o ano passado e os humanistas aí de plantão, não se preocupam. Dados oficiais: cerca de 90% da população do Afeganistão está sob risco grave de fome e insegurança alimentar. Os Estados Unidos congelaram o dinheiro do governo afegão.
Antes do Talibã tomar o poder, eles congelaram 7 bilhões de dólares e ainda está congelado e agora, querem usar metade desse dinheiro para as vítimas, para as famílias do 11 de setembro. Essa é uma espoliação imperial das mais nefastas.
Edição: Rebeca Cavalcante