Coluna

Lamas de verão

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Por que centenas de pessoas morrem em episódios como o mais recente, em Petrópolis? Por que as indenizações ou realocações das pessoas demoram absurdamente, ou simplesmente nunca chegam? - Carl de Souza / AFP
O que poderia ter sido feito para evitar essa tragédia?

Por José Carlos Garcia*

 

“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira
(...)

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”

(Águas de março, Tom Jobim, 1972)

 

Diz-se que Tom Jobim começou a compor "Águas de março" após um dia exaustivo de muito trabalho, em sua casa em São José do Vale do Rio Preto, na região serrana do Rio, não muito longe de Petrópolis ou Nova Friburgo. Ainda que o conjunto de versos soltos, sem conjunções subordinativas ou coordenativas, tragam-nos à memória imediatamente o fluir geral da vida, em sucessão de imagens evocativas e jogos antitéticos, a “amarração” deste clássico da música popular brasileira, tanto musical, quanto poeticamente, se faz pelo que é designado no seu título, as conhecidas enxurradas que finalizam o verão no estado do Rio de Janeiro – a canção evolui, em letra e arranjo, num turbilhão de repetições e sugestões imagéticas cujo ritmo evoca a própria enxurrada, o fluxo da água, da inundação, a vida, a morte, o tombo da ribanceira; “é a lama, é a lama!”

Objeto de inúmeras versões, mas imortalizada no dueto do autor com Elis Regina, em gravação de 1974, esta canção, que já foi considerada a melhor já composta no Brasil em todos os tempos, completa 50 anos em 2022. O hiperlink para o verbete correspondente na wikipedia inserido aqui faz referência a duas fontes de inspiração para Tom: o poema "O caçador de esmeraldas", de Olavo Bilac, publicado em 1902, e um ponto de umbanda recolhido e gravado por J. B. de Carvalho em 1933, de onde teriam saído os versos “é pau, é pedra”.

A referência que faço a "Águas de março" e a suas fontes mais remotas, um poema parnasiano de 120 anos e um ponto de macumba sem autoria definida, ligado ancestralmente às religiões afro-brasileiras, não se faz por acaso: são próprias do clima, fator natural repetitivo, sazonal e mais do que conhecido, as grandes chuvas e as enxurradas de verão no sudeste, sobretudo no Rio de Janeiro. Chuvas torrenciais fechando o verão, derrubando barreiras, casas, inundando e enlameando ruas e soterrando pessoas e coisas são tão previsíveis nesta época do ano quanto o nascer e o pôr do sol. Ainda que, antes se concentrassem mais no fim da estação (daí “águas de março”), também não datam de hoje os estudos e debates científicos sobre os efeitos do desmatamento, do aquecimento global e de anomalias climáticas sazonais, como El niño e La niña, no regime de chuvas do país. O Painel Intergovernamental para a Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês) é um órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicado a isso, e foi fundado em 1988. A cidade do Rio de Janeiro recebeu uma das primeiras grandes conferências mundiais sobre mudança climática, a Eco 92, há 30 anos.

Se isso é assim, por que as tragédias seguem ocorrendo? Por que centenas de pessoas morrem em episódios como o mais recente, em Petrópolis? Por que as indenizações ou realocações das pessoas demoram absurdamente, ou simplesmente nunca chegam? Por que as autoridades e a mídia sempre se assombram com “choveu nesse dia mais do que a média esperada para o mês de fevereiro”, se isso vem ocorrendo sistematicamente, ano após ano?

Antes de avançarmos, quero deixar claro que não pretendo exigir das autoridades, locais ou nacionais, o impossível. Basta um giro em volta do mundo para perceber que, quando chuvas ou estiagens são muito particularmente intensas, as perdas de vidas e patrimônio são muitas vezes inevitáveis, e o aquecimento global tem provocado desastres cada vez mais graves. Governo nenhum pode impedir de chover na enxurrada, ou mandar chover na seca. No entanto, as consequências dramáticas destes eventos naturais podem ser ao menos minimizadas, especialmente quando são esperadas sazonalmente. Basta que haja comprometimento dos governos com a questão ambiental e suas repercussões sociais e humanas. Investimento em contenções de encostas, em limpeza de rios, em fiscalização contra o desmatamento e contra a ocupação irregular de áreas de encosta, controle da impermeabilização do solo, limpeza de esgotos pluviais, tratamento de esgoto industrial e doméstico, planos de emergência eficientes em caso de calamidades, agilidade em indenizações e realocações, são características de governos democráticos que se preocupam com o bem-estar das populações que os elegeram. Mais do que benevolência, é um dever seu. É apenas para isso que existem, servir às populações, especialmente àquelas que não podem enfrentar casos como estes sem apoio oficial.

Até a manhã de quarta-feira, dia 23 de fevereiro, o número oficial de vítimas fatais da tragédia de Petrópolis estava em 198 vidas, e pelo menos 69 pessoas estavam desaparecidas. Dado este número de desaparecidos, tantos dias depois do evento, é, infelizmente, impossível imaginar que o número de mortos não possa ainda crescer muito. O que poderia ter sido feito para evitar essa tragédia?

Em janeiro de 2011, 918 pessoas morreram em seis cidades serranas do Rio. Nova Friburgo concentrou, então, o maior número de vítimas, 429. Em seguida vieram Teresópolis, com 392 óbitos; Petrópolis, 71; Sumidouro, 22; 02 em Bom Jardim; e 02 em São José do Vale do Rio Preto, onde Tom Jobim começou a compor Águas de março. 30 mil pessoas ficaram desalojadas. Até hoje cerca de cem pessoas seguem desaparecidas. Desde então, muita coisa foi feita, é verdade. Cerca de R$ 510 milhões foram gastos em obras de contenção, mas os especialistas asseguram que há muito ainda por fazer, e que muitas pessoas seguem vivendo em áreas de risco. Em Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo, 2.332 famílias teriam recebido moradias em áreas seguras ainda em 2013, dois anos após a tragédia. 966 delas ganharam imóveis construídos em parceria pelos governos estadual e federal e outras 1.366 receberam indenizações. Apesar disso, ainda em 2018, sete anos depois, pessoas protestavam contra o descumprimento de promessas de indenização e moradia. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais – Cemaden, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), teve seu orçamento anual reduzido de quase R$ 91 milhões, em 2012, ano de sua criação, para menos de R$ 18 milhões, no ano passado (esses são valores nominais, sequer estão corrigidos pela inflação, o que aumentaria ainda mais a proporção dos cortes; corrigidos pelo IPCA-E, os R$ 91 milhões de 2012 corresponderiam, hoje, a mais de R$ 164 milhões). No ano passado, apenas 40% do orçamento do Estado do Rio de Janeiro para obras e investimentos para evitar tragédias como a de Petrópolis foi executado – dos mais de R$ 420 milhões previstos, apenas R$ 167 milhões foram gastos.

Este tipo de catástrofe não ocorre sozinha, não é fruto do acaso, da fatalidade. A causa imediata pode ser um evento natural extraordinário, mas sua ocorrência periódica é sabida, e há meios de gerenciamento disponíveis para reduzir seu impacto na vida das pessoas e na economia. Economizar com este tipo de recurso é próprio de uma agenda neoliberal ignorante, que descarta o que é essencial e estrutural, mas não mexe com destinações para cobrir juros no sistema financeiro. No meio destas cifras e tabelas, centenas de pessoas morrem, perdem seus entes queridos ou todo o patrimônio construído com muito trabalho ao longo da vida. A própria economia, que parece ser o que os autoproclamados deuses neoliberais querem proteger a todo custo, é brutalmente atingida: a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – FIRJAN estima que 2% do PIB de Petrópolis tenha sido perdido em impacto direto (o indireto será muito maior), cerca de R$ 665 milhões. 65% das empresas da cidade foram afetadas, e 85% delas ainda não haviam retomado seu funcionamento, quando este artigo estava sendo redigido.

Nova Friburgo e Petrópolis somam-se a tantas outras tragédias causadas por deslizamentos em áreas de risco, como em Angra dos Reis, em Minas Gerais, no Morro do Bumba, em Niterói, e tantas outras. Em geral, diz-se que sua causa foram chuvas atípicas, anormais, imprevisíveis. Talvez elas sejam atípicas em sua intensidade particular, ou em sua concentração geográfica, mas todas, sem qualquer exceção, estão no horizonte de previsibilidade de que chuvas intensas no verão do Rio de Janeiro são um fato conhecido há séculos, que elas decorrem de antropização e aquecimento global, e que as medidas para minimizar o custo em vidas devem ser adotadas antes, não depois, da lama derramada. De acordo com dados levantados pela UFRJ, 92% da área deslizada em Nova Friburgo era antropizada, e apenas 8% tinham cobertura vegetal nativa. Segundo o IBGE, no último levantamento deste tipo, feito em 2010, 8,2 milhões de pessoas viviam em áreas de risco, mais de 26% delas sem esgoto adequado. Quantas dessas pessoas precisarão ainda morrer para que os orçamentos não sejam cortados, os investimentos sejam priorizados e executados, a prevenção, reforçada, e o apoio posterior, agilizado?

Sem respondermos a estas questões, especialmente com ações concretas, as águas de março seguirão sendo muito menos do que “uma promessa de vida no teu coração”. Serão, antes, pau, pedra, tombos de ribanceira, morte.

Fim do caminho.

 

*José Carlos Garcia é doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo