Calma, não desista. Respira e segue lendo. Vai piorar
Em A Paixão Segundo G.H., a personagem-título vai arrumar o quarto da empregada, que se demitiu. Encontra uma barata. Ela esmaga o inseto na porta do armário. Vaza aquela gosma branca. Em êxtase, ela contempla a agonizante morte da barata. Depois, lambe a gosma da barata.
Calma, não desista. Respira e segue lendo. Vai piorar.
Clarice Lispector é nossa poeta mais intensa. No livro citado acima, a simbologia é a seguinte: a barata é a parte intragável da vida. É a parte da vida que não queremos olhar, tocar, digerir. A barata é o medo que paralisa nosso potencial de transformação, metamorfose, mudança.
Não é nada fácil acessar as múltiplas camadas da vida. É preciso ter coragem na alma e amor no coração.
A parte mais gostosa da vida é o autoengano. Fazemos isso o tempo todo. Vivemos a nos contar mentiras gostosas, que nos fazem sentir “melhor”, enquanto as gavetas da alma permanecem fechadas.
Como esses pequenos e lindos gestos que fazemos para “salvar o planeta”. Haja paciência! Adoramos salvar o planeta nas redes sociais e em “pequenos gestos do dia a dia”. Pequenos gestos para engrandecer nossas meias verdades inconvenientes.
Enquanto isso, os desmatadores fazem o serviço. Porque nós é que pagamos a motosserra, com nosso consumo desenfreado. Cada vez que vamos ao shopping center, tomba uma árvore na Amazônia. Lamento, são os fatos.
Quem banca a devastação são as multinacionais que nos vendem as tranqueiras da vida, de alimentos cheios de agrotóxicos a roupas e celulares. Nosso dinheiro banca a devastação da floresta.
Uma dica, deu certo comigo: assuma teu lado mais podre antes de “fazer a sua parte” para salvar o planeta. Lamba a gosma das baratas que te habitam as gavetas. Perca a paciência para as hipocrisias que inflam o ego.
Depois, nada precisará ser salvo. Muito menos o planeta. Poderemos gozar a vida sem culpa, enquanto os desmatadores fazem o serviço sujo.
Menos de 5% do lixo produzidos nas cidades brasileiras é reciclado. Adoramos nos vangloriar da nossa capacidade de reciclar latinhas. Santa hipocrisia! As empresas de lixo agradecem. Nós dormimos em paz e elas lotam as próprias contas bancárias em Luxemburgo. De quebra, patrocinam toda sorte de ONGs de “sustentabilidade”.
E patrocinam políticos, obviamente. As câmaras de vereadores, Brasil afora, rezam a cartilha dos cartéis de lixo, de ônibus, de funerárias. Sempre foi assim e não vai mudar.
Na questão ambiental, a palavra mágica é “sustentabilidade”. De sabonetes esfoliantes a cigarros e mísseis de guerra, tudo é sustentável. O movimento ambientalista caiu direitinho nessa lorota. Os desmatadores agradecem. E nós dormimos em paz, com nossos pequenos gestos para salvar o planeta. Haja paciência!
Outra dica grátis: sempre que alguém te falar em sustentabilidade, solte o arroto de quem acabou de comer uma barata. Não se deixe enganar.
Em caso de muito autoengano, você sairá de Clarice e entrará em Kafka. Se tornará o próprio inseto, com sua gosma branca e hipócrita.
*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo
