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2022, 1922 e 1822: as contribuições dos centenários brasileiros para o direito

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Imagem mostra alguns dos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922: Mário de Andrade (primeiro à esquerda, no alto), Rubens Borba de Moraes, os irmãos Tácito e Guilherme de Almeida, Baby de Almeida e Yan de Almeida Prado - Wiki Commons
Soberania, organização popular e cultura brasileira são símbolos a merecer destaque e reflexão

Por Ricardo Prestes Pazello*

O ano de 2022 traz consigo uma grande oportunidade: resgatar as simbologias centenárias brasileiras. A soberania nacional, a organização popular e a cultura brasileira própria são símbolos a merecer destaque e reflexão. No fundo, está em pauta o tema da libertação nacional. Se esta tende a ser a discussão dos setores progressistas brasileiros, em um ano de grandes desafios políticos, cabe meditar também sobre o impacto de tal simbolismo para o campo do direito.

No âmbito do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), que completa 10 anos neste 2022, a simbologia dos centenários estará presente em nosso seminário nacional (a ocorrer entre 15 e 18 de junho). Muito propício, aliás, fazer o balanço de uma década à luz de uma história de 200 anos.

São 200 anos de independência, 100 anos da arte moderna e outros 100 anos de partido comunista. De quebra, temos o aniversário de 100 anos Leonel Brizola, de Dona Ivone Lara e de Darcy Ribeiro – ícones da intelectualidade e da cultura brasileira. Todas essas são datas simbólicas que carregam muito potencial reflexivo, inclusive para nós, juristas.

O centenário da SAM e o direito

A Semana de Arte Moderna (SAM) é a primeira das efemérides de 2022. Ocorrida em fevereiro de 1922, entre os dias 13 e 17, na cidade de São Paulo, ela representou um contraditório mas pulsante movimento artístico renovador. Nele, estrelaram Mario e Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho e Graça Aranha (entre os escritores); Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Victor Brecheret (entre os artistas plásticos); Guiomar Novais e Heitor Villa-Lobos (entre os músicos), afora tantos outros nomes. Seu grande legado, como diria Roberto Gomes, em Crítica da razão tupiniquim (1977), foi o de ser “uma primeira tentativa de real independência cultural face ao passado europeu e aos modelos estrangeiros”.

Muitos poderiam ser os ensinamentos dos “modernistas” brasileiros — alguns deles formados em direito, como Oswald de Andrade e Graça Aranha — para os juristas de hoje, ainda agrilhoados por um colonialismo intelectual febril. A tradição romana, teutônica, lusitana, francesa, italiana, bretã ou ianque — tudo prevalece à história (jurídica) do Brasil, seja a prática, seja a teórica. Talvez, urjam a antropofagia de Oswald ou o macunaimismo de Mario para o direito. A deglutição das teorias críticas alienígenas (como não lembrar Miguel Pressburger acusando os estrangeirismos de alternativistas, pluralistas e “critiques du droit”?) ou a reinvenção metafórica da cultura jurídica brasileira (tarefa antropológico-jurídica ainda por ser feita) devem obcecar os “transmodernistas” de agora. Em definitivo, uma viragem descolonizante contra a razão jurídica dependente.

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O centenário do PCB e o direito

Em termos de organização popular, a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em congresso ocorrido entre 25 e 27 de março de 1922, em Niterói, foi um marco que permitiu um salto de qualidade que não pode ser minorizado, sob hipótese alguma. Representando a inauguração de novo ciclo organizativo das classes populares no Brasil, a partir da herança deixada por anarquistas, antiescravagistas e anticolonialistas, a existência do PCB abriu horizontes para que uma sociedade de capitalismo dependente pudesse projetar seu horizonte socialista. Com o fito de superar as mais nefastas formas de exploração e dominação, o Partido Comunista foi relevante pelas lutas que protagonizou, mas também por ter sido condição de possibilidade para a criação de várias outras organizações políticas, à esquerda, a partir do ciclo de reconstitucionalização do país, nos anos de 1980.

A sua relevância simbólica para o direito não se deve apenas ao fato de que um dos nove entre seus fundadores, em 1922, fora um advogado – Cristiano Cordeiro (1895-1987). Mais do que isso, o resgate histórico das perseguições que sofreu – desde as prisões dos anos 1930, como a de Luís Carlos Prestes na solitária, defendido por Sobral Pinto; até a cassação do partido, em 1947 – e das contribuições que deixou para o Brasil – como as inúmeras conquistas comunistas na constituinte de 1946, a partir da bancada pecebista composta por nomes como os de Gregório Bezerra, Carlos Marighella, Jorge Amado, João Amazonas, Maurício Grabois ou o próprio Prestes – impregnam o imaginário de um país sempre alvo de narrativas conservadoras ou mesmo reacionárias. Ou seja, toda uma dialetização entre pautas defensivas e ativas marcou a história recente em nossa organização popular.

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Os centenários de intelectuais da cultura brasileira e o direito

Não bastassem os grandes eventos coletivos de 1922, o ano também gestou e pariu nomes fundamentais da cultura nacional. Em janeiro de 1922, nascia Leonel Brizola, político da esquerda nacionalista gaúcha, de trajetória ímpar, tendo se destacado pela Campanha da Legalidade, em oposição ao golpe parlamentarista contra o presidente João Goulart, em 1961, e pela defesa da resistência armada, contra o golpe militar de 1964. Já em abril de 1922, viria ao mundo Ivone Lara, enfermeira e assistente social ao lado de Nise da Silveira, militante da causa da reforma psiquiátrica, mas também Dona Ivone Lara, sambista de mão cheia e das primeiras mulheres a integrar uma ala de compositores de escola de samba (o registro oficial de nascimento da sambista é de 1921, no entanto fora uma tática de sua mãe para matriculá-la em tradicional escola fluminense). Por sua vez, no mês de outubro de 1922, Darcy Ribeiro era parido e, com ele, toda uma particular história da intelectualidade brasileira se gestaria, transitando por antropologia, indigenismo, política educacional, política institucional, resistência à ditadura e uma gigantesca obra de reinterpretação do Brasil denominada Estudos de antropologia da civilização – seu último capítulo foi o livro O povo brasileiro (1995).

Com esses intelectuais, aprendemos — juristas ou não — a defender a legalidade contra os golpistas e a resistir com os meios que estiverem à mão contra os ditadores, como no caso de Brizola; também, a compor nossa própria história (como no samba-enredo da Império Serrano, em 1965, que Dona Ivone intitulou de “Cinco bailes da história do Rio”) ou a fazer a luta por reformas estruturais; ou ainda a refletir sobre se vivemos em um país autônomo ou subordinado a interesses alheios, como o faz Ribeiro com sua teorização, respectivamente, sobre a “aceleração evolutiva” e a “atualização histórica” dos povos (consultar seu livro “O processo civilizatório”, de 1968).

Tal conjunto de reflexões — legalidade/resistência; história própria e reformas; autonomia ou subordinação — cai como uma luva para repensar o direito, hoje. E a ele se juntam as memórias de tantos outros centenários ícones de nossa cultura, como Jorge Andrade, Bibi Ferreira, Tônia Carreiro, Paulo Autran, Décio Freitas, Dias Gomes, Luiz Bonfá, Teddy Vieira ou Gordurinha. Falta espaço para resgatar tamanho patrimônio! – e isso só para citar os brasileiros.

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O bicentenário da independência e o direito

Para encerrar, talvez aquela data que seja a mais importante: o 7 de setembro de 1822. Certamente, a mais contraditória de todas, ao instaurar o Estado-nação brasileiro no alvorecer do capitalismo industrial do século XIX, pelas mãos do príncipe regente, filho da coroa portuguesa. O futuro Dom Pedro I, nascido e enterrado em Queluz (Portugal), ao declarar, porém, a palavra de ordem “Independência ou morte!” reposiciona a disputa pela nacionalidade no Brasil, ainda que, via de regra, essa esteja submersa no projeto entreguista de suas elites.

O desafio atual é o da soberania nacional. A luta contra as forças internacionais que manipulam o cenário brasileiro, ao sabor de seus interesses econômicos ou — como visto nos últimos anos — também de suas perspectivas políticas —, põe-se na ordem do dia. No interior do país, por sua vez, um projeto vende-pátria assimila os interesses estrangeiros e depaupera nossa cultura, desorganiza nosso povo e busca desarmar nossa resistência. Do ponto de vista jurídico, impõe-se recontar uma história aprisionada pelos cânones eurocentrados e/ou elitizados. Todo um itinerário de nossas relações jurídicas dependentes ainda está por ser desvendado.

Como o fizeram os socialistas latino-americanos, é preciso vocalizar o anseio por nossa segunda independência. A primeira, formal. A segunda, prenhe de tarefas democráticas, populares e, inequivocamente, nacionais. Sem etapismos, portanto nem cópias ou decalques. A libertação nacional é um imperativo, e os juristas não podem virar suas costas para ela. De mãos dadas, Abaporus e Macunaímas; Cavaleiros da Esperança e Guerrilheiros Urbanos; Sambistas e Antropólogos; enfim, todos precisam se atribuir a responsabilidade pela segunda independência. Que o ano de 2022 seja um ano-movimento para que, em comitês populares, o povo brasileiro avance em direção a esse horizonte — e com a inusitada ajuda, insurgente, dos juristas! Dentro e fora, mas sobretudo dentro, do IPDMS.

*Ricardo Prestes Pazello é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho