Cenário inédito de diálogo político de Lula com oposição interessa aos dois lados. E à democracia
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem se movido com enorme facilidade no território do centro ideológico, e essa é uma grande virada no cenário colocado desde os primórdios da redemocratização brasileira, iniciado em 1985. Lula já andou por essa seara em seu governo, quando atraiu representantes das classes economicamente dominantes ao diálogo direto com seu governo, em conselhos e comissões. O braço partidário dessas classes, o PSDB, sempre colocou o líder de esquerda e seu partido, o PT, em campo oposto ao seu. Quem polarizou foi o tucanato.
O PT, fundado em 1980, e seu maior líder político, um metalúrgico projetado para a política por um movimento de massas – as greves do ABC do final dos anos 70 – que foram definitivas para o fim da ditadura militar, apostaram nas eleições não como meio de ascensão imediata ao poder (não passava pela cabeça de nenhum de seus fundadores que o partido pudesse chegar ao segundo turno de uma eleição presidencial tão cedo), mas como um instrumento de mobilização e organização popular.
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Enquanto o poder era um projeto futuro, foi tolerado pelas elites políticas e econômicas e pelos meios de comunicação tradicionais. Na primeira eleição presidencial, todavia, quando Lula foi para segundo turno contra o candidato da direita, Fernando Collor (PRN), houve uma mudança imediata e radical na tolerância ao PT e ao metalúrgico que despontou com o maior nome da esquerda brasileira e como a alternativa mais viável de poder para as forças progressistas da sociedade. Talvez o episódio mais emblemático, que marca o início da guerra sem trincheiras travada contra o PT pela elite brasileira, tenha sido a edição do debate feito pela Globo, à véspera do segundo turno, que foi uma falsificação acabada do debate entre os dois candidatos, veiculada no noticiário mais visto no País, o Jornal Nacional. A manipulação das imagens do debate hoje faz parte dos manuais sobre como não fazer jornalismo, e dos estudos sobre como a mídia brasileira atuou no golpe que durou de 2005 a 2018.
Lula viveu sob ataque constante desde a primeira eleição direta pós-ditadura e tornou-se o mais longevo sobrevivente de fake news – enfrentou-as desde quando elas eram simplesmente chamadas de mentiras até agora, quando as mentiras foram anglicizadas. Foi massacrado pela mídia e pelos boatos no segundo turno de 1989, disputando com Collor. Continuou massacrado em sucessivas eleições até vencer um filho letrado da elite brasileira, José Serra, em 2002. Elegeu sua sucessora em 2010.
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No poder, rapidamente Lula aprendeu a transitar sobre a areia movediça da política parlamentar.
As disputas presidenciais anteriores definiram o partido oposicionista hegemônico: o PSDB. O partido derrotado por Lula tinha um projeto, interrompido pelo ex-metalúrgico, de permanecer 20 anos no poder e realizar a grande mudança liberal “modernizante” no Brasil, com o apoio explícito dos estratos de classe que se consideravam a vanguarda dessa articulação: o setor financeiro, totalmente internacionalizado nos governos FHC (inclusive os nacionais que se capitalizaram com as privatizações ocorridas no período e com a política monetária escandalosa do BC); e uma “nova” indústria que cometeu haraquiri com a adesão ao projeto que não era dela: praticamente foi à bancarrota em consequência da política de desindustrialização do governo FHC, mas era letrada e gostava de falar sobre o seu projeto de futuro do país e ridicularizar os “dinossauros” que a ele se opunham. A burguesia agrária também entrou nessa, arrotando projeto de modernização que não arranhava a estrutura fundiária, mas dava plena liberdade de uso do agrotóxico e à grilagem de terras e também acesso, também com enorme liberalidade, ao crédito subsidiado.
Banqueiros e burguesia industrial não se candidatam se forem grandes ou se não dependem do poder político diretamente, como as burguesias regionais; burguesia agrária, mais “antiga”, gosta do mando direto, inclusive na política. Para fazer número, o PSDB abrigava lideranças políticas regionais e compensava sua pouca capilaridade organizativa nos Estados jogando com a polarização nacional: o inimigo número 1 do PT era quem ocupava também a trincheira oposta na disputa local. Tanto isso é verdade que, após perder a centralidade como oposição a Lula (ou mesmo a Bolsonaro), perdeu representação regional.
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Lula, ou qualquer outro governante brasileiro pós-redemocratização, tinha como margem de manobra um grande partido, o PMDB, e pequenas legendas, mas no jogo parlamentar uma base forte é sempre teórica.
Os interesses das classes envolvidos em cada assunto transcendem a simples aritmética dos contrários e dos favoráveis ao governo dentro do Legislativo. Lula não teria governado sem negociar com os setores econômicos. Na impossibilidade de fazê-lo via o partido político que era o representante orgânico dessas classes, fez isso diretamente.
A negociação entre classes foi a coisa que Lula mais fez ao longo de seus oito anos de governo. A mídia nunca deu muita importância aos discursos em que ele coloca como grandes conquistas de seus governos o número de reuniões de conselhos, comissões, conferências públicas e audiências públicas. Deveria ter prestado atenção.
A classe dominante, portanto, acabou fazendo jogo duplo nos governos do PT. Enquanto classe, negociou com Lula e se beneficiou do projeto de país construído por ele. Simultaneamente, seus braços institucionais – o PSDB e os intelectuais orgânicos de frações de classe instalados no Judiciário e nos órgãos de controle do Estado – articulavam a volta ao poder sem intermediários, ao preço que fosse. Estes não dialogaram, nunca. Até agora.
Hoje, num cenário inédito de diálogo político de Lula com os que fizeram oposição implacável ao seu governo e articularam o golpe contra a democracia, a conversa interessa aos dois lados. E à democracia.
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Do lado do PSDB, trata-se da única chance de retomar o seu papel de representante dos estratos “modernos” da classe dominante. A conspiração que tirou Dilma do poder e levou Lula à prisão era para terminar com a eleição de um tucano nas eleições de 2018. Deu tudo errado. Quem se beneficiou da Grande Conspiração foi o representante de um lumpesinato apoiado pelos militares e por milícias civis que pode até fazer concessões de classe (e tem feito muitas, por meio do ultraliberal Paulo Guedes), mas não vai entregar o poder político.
Para Lula, trata-se de ganhar as eleições de outubro e evitar o golpe e a guerra civil. Para o PSDB, de garantir espaço para se reabilitar perante a história e retomar sua vocação de intelectual orgânico da elite econômica brasileira. Conspirar apenas não deu certo.
*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo