"Quando acabar essa calamidade social, que as pessoas voltem a se enxergar", diz Paula Lima
As eleições de 2018 ficaram marcadas por uma virada de chave na política e na sociedade brasileira. Os discursos proferidos oficialmente mobilizaram uma parcela da população em um caminho perigoso, onde grande parte dos direitos estabelecidos e avanços sociais alcançados foram colocados em xeque.
No caso do racismo, problema estrutural da sociedade brasileira, os registros desse crime dispararam no ano passado, ancorados no amparo que a pessoa que comete este ato recebeu a partir do aval ou conivência de autoridades brasileiras. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, somente em 2021, foram 1.019 casos de injúria racial registrados. Em 2020, foram 476 casos.
“Logo que acabou a eleição em 2018, eu fiquei com muito medo. Eu fiquei muito assustada porque eu realmente não sabia que a gente convivia com pessoas que pensavam dessa maneira”, afirma a cantora Paula Lima.
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Lima, convidada desta semana do BDF Entrevista, destaca que apesar de serem corriqueiros os casos de racismo, sentia uma paralisia da sociedade brasileira em relação ao tema. “E acho que a gente estava muito no automático antes da pandemia. Esses problemas, sempre aconteceram, a gente estava meio anestesiado”, explica.
Segundo a cantora, a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio de 2020, foi um divisor de águas. “Aquilo doeu de uma maneira diferente. Primeiro porque a gente viu uma pessoa dizendo: ‘eu não consigo respirar, eu não consigo respirar, eu não consigo respirar”. E um outro com o joelho no pescoço dele”.
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“Mas eu espero que, com o fim dessa calamidade social que a gente está vivendo, as pessoas voltem a enxergar, as pessoas voltem a pensar de forma mais humana, de forma mais gentil, de forma mais amorosa, de forma mais igualitária”, completa Lima.
Na entrevista, Paula Lima também fala de sua trajetória, quando decidiu largar o trabalho no Tribunal de Justiça de São Paulo para viver de música, fala de carnaval, e também de novos trabalhos que devem chegar ao público ainda neste ano.
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“Estou muito inspirada, eu estou muito afim de fazer muita música esse ano. Eu estou pronta para não parar de trabalhar, trabalhar muito. Alguma coisa mexeu realmente comigo e eu estou mais inspirada do que nunca, muito afim de fazer”.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: O último ano foi muito complicado, mas apesar das dificuldades, você completou 20 anos de carreira. Tem um momento que foi uma virada de chave para a tua trajetória musical?
Paula Lima: Eu venho de uma família de classe média, mas uma família de classe média negra, então é diferente da classe média branca, porque as dificuldades existem. A diferença é que eu estudei em colégio particular, que eu fui trabalhar aos 20 anos de idade, nunca me preocupei com conta. Meu pai sempre trabalhou e a gente tinha uma casinha na Praia Grande [Litoral Sul de São Paulo].
Foi uma coisa, de certa forma, tranquila. Mas eu sabia que eu seria responsável por mim mesma e sempre me preocupei como vai ser o meu futuro? Porque, em geral, as famílias negras não têm herança. Você pode até herdar uma casinha ali do seu pai, da sua mãe, mas é uma coisa que, para você viver realmente bem, o trabalho é muito árduo.
Eu me preocupava muito com isso e escolhi fazer direito. Estudei no Mackenzie, me formei, mas no meio da faculdade eu conheci uma galera da música e aquilo mexeu com a minha cabeça.
Eu estudo piano desde os 7 anos, meu pai sempre foi um cara muito musical, eu vivia cantando nas festas da escola. E quando eu me deparei com esses caras e fui para o estúdio, vi os músicos e vi a montagem, os instrumentos, eu falei: “meu Deus, é isso que eu quero. Eu amo fazer isso”.
Mas sabiamente, conversando com a minha mãe, ela falou assim: “olha, eu acho que é justo que você arrisque, é a pior coisa que tem, você olhar para trás depois e pensar, por que eu não fiz? Mas eu acredito que seja melhor você ter um caminho seguro também, pelo menos para você ter um plano B”.
Foi aí que eu trabalhei no Tribunal de Justiça [de São Paulo]. Mas teve um dia que eu estava muito cansada, eu tinha feito um show com Funk Como Le Gusta e fui para o Tribunal. Um advogado chegou lá pedindo uma petição. De repente, ele olhou para mim e falou: “você não estava cantando ontem com o Funk Como Le Gusta? O Brasil é muito injusto. É um absurdo Uma cantora como você, que faz o que você faz, que canta, como você canta vir trabalhar aqui”.
E eu tinha que acordar às 9 da manhã. Foi uma loucura. É muito louco porque são mundos muito diferentes. À noite eram 2.000 pessoas curtindo, aplaudindo e tal e no dia seguinte tendo que trabalhar mesmo, a gente batia ponto ali.
O Curumim, que a galera de São Paulo conhece, veio me falar também que eu estava ali porque eu queria. Aquilo me caiu mal, mas foi decisivo para eu pedir as contas do Tribunal e seguir a carreira musical.
Você também é colunista, tem gostado de escrever, e vi que o que te motivou foi a morte de George Floyd e o levante do Black Lives Matter nos Estados Unidos, que depois alcançou o mundo todo. A violência policial, os casos de racismo, eles sempre existiram, mas eles ganharam muita força desde 2018, com discursos oficiais que praticamente exaltam isso. Mesmo que os propagadores desse racismo sejam removidos nas eleições deste ano, essa onda conservadora que tomou o país, ela tende a ficar com a gente por bastante tempo?
Eu acho que tende a ficar por algum tempo. Eu não tinha pensado sobre isso. Mas eu fico pensando o seguinte, antes as pessoas provavelmente estavam dentro do armário, porque ninguém se transforma da noite para o dia: “eu não pensava como maluco, mas agora, se o maluco está falando maluquice, eu também falo maluquice”.
Acho que essas pessoas sempre nutriram esse tipo de sentimento, essa visão, mas ao mesmo tempo engraçado como a gente não sentia esse ódio todo, essa agressividade toda, essa busca pelo separatismo.
Eu espero que, assim como a gente não via antes, daqui a algum tempo, isso pelo menos amenize e os discursos que estarão em voga, os discursos que serão manchete, não serão mais esses.
Eu espero que a gente consiga, de alguma maneira, transformar esse período sombrio, angustiante que a gente - já vou colocar o viveu, não vou falar que a gente vive, não - espero que a gente consiga colocar essas pessoas dentro do armário.
Já que elas não vão se transformar totalmente, que elas voltem para o armário e as coisas fiquem um pouco mais leves, mais harmoniosas.
Logo que acabou a eleição em 2018, eu fiquei com muito medo. Eu fiquei muito assustada porque eu realmente não sabia que a gente convivia com pessoas que pensavam dessa maneira retrógrada, misógina, homofóbica. Na verdade, a gente sempre soube, mas eu sinto que é também um problema de busca pelo conhecimento para a transformação, sabe? Existe uma preguiça nisso.
Essa segurança pública atacando todas as pessoas negras e principalmente homens negros, mas agora até essa barreira foi rompida, os policiais estão batendo nas mulheres. E a gente está vendo os vídeos e sempre são mulheres negras. Elas têm sempre o mesmo perfil: de comunidade, de periferia. E eles fazem o que fazem.
Mas eu espero que, com o fim dessa calamidade social que a gente está vivendo, as pessoas voltem a enxergar, as pessoas voltem a pensar de forma mais humana, de forma mais gentil, de forma mais amorosa, de forma mais igualitária, de maneira que o outro se veja em mim e eu me veja no outro. Com os mesmos direitos, as mesmas qualidades, o mesmo direito às oportunidades.
Você acredita que o movimento negro organizado tem se fortificado? Ele tem feito esse tipo de ação mais dura, mais contestadora. E, apesar dos casos de racismo explícito, há também uma retomada do discurso da defesa dos direitos , contra o racismo. Você também se vê representada por esse movimento negro que vem se consolidando e deve emplacar nomes importantes nas próximas eleições?
O movimento negro é uma das maiores potências que a gente tem. Eu vejo grandes vozes, grandes personalidades falando de uma maneira muito coerente, muito poderosa, muito empoderadora, muito consciente, com muita propriedade, com muito bom senso também, de uma inteligência admirável, pessoas que me orgulham, pessoas de muita idoneidade, que buscam a dignidade e a transformação.
E através das palavras e das ações, elas realmente estão fazendo acontecer, a gente vê isso acontecendo. Obviamente, a gente tem hoje internet, então a gente tem um exército aí, e a gente não esconde mais as nossas mágoas, as nossas decepções, as nossas frustrações.
A gente está ali para defender a gente, estamos muito nós por nós, mas de uma maneira misturada, eu acho que tem um pouco a ver com o discurso, não a questão da arma, porque aqui a gente é contra arma totalmente, e contra a violência. Mas a gente tem muito agora o discurso do Malcolm X, um discurso do Martin Luther King, com um discurso da Conceição Evaristo, com o discurso do Silvio de Almeida, da Erika Hilton, da Djamila [Ribeiro], do Preto Zezé, que tem um trabalho de CUFA (Central Única das Favelas) de, sei lá, 20 anos já acontecendo. E agora ele é, inclusive, colunista da Folha. Tem o Thiago Amparo, a Joice Berth, que eu adoro também ler todos os as os textos dela, é muita gente interessante.
Gente falando, fazendo acontecer e que ganhe espaço e respeito, ocupando um espaço muito próprio. Então eu me vejo representada nesse movimento negro. Eu quero de alguma forma sempre somar. Eu não sou uma intelectual, eu não sou uma ativista de bandeira, mas eu sou uma mulher que estou nesse ativismo, junto com outras pessoas comuns, outras pessoas negras.
E acho que a gente estava muito no automático antes da pandemia. Esses problemas, como você bem disse, sempre aconteceram, então a gente estava meio anestesiado, mesmo com todas essas pessoas e todas essas falas, e mesmo com toda a transparência que é necessária.
Mas eu acho que a partir da morte do George Floyd, aquilo doeu de uma maneira diferente. Primeiro porque a gente viu uma pessoa dizendo: “eu não consigo respirar, eu não consigo respirar, eu não consigo respirar”. E um outro com o joelho no pescoço dele.
Porque a gente fica sabendo da violência nas comunidades, da violência com as pessoas negras. E a partir desse vídeo, as pessoas resolveram gravar também muito mais. Então hoje todo dia tem um vídeo horrível para a gente assistir e se questionar, e tentar mudar alguma coisa dentro dessa sociedade.
Você fez o teste de DNA recentemente, que identificou a tua origem em África. Quão importante foi, para você, resgatar essas origens?
Nossa, eu fiquei muito emocionada, eu me senti honrada pela porcentagem gigantesca, era 82% de sangue negro. Eu falei: “caramba, eu sou muito preta, olha que coisa maravilhosa”. A gente saber realmente de onde a gente veio, especificamente, porque as pessoas falam África como se fosse um país, mas é um continente gigantesco com N culturas.
Acho que é um pouco diferente da América do Sul, por exemplo, que a gente não tem nada a ver, a gente é quase não latino. A gente é latino, sem ser latino. A cultura é outra. O jeito de ser é outro. O abraço é outro.
Acho que é diferente de África, porque eu acho que a África, de toda forma, tem uma essência. Mas é muito bacana saber que tem Gana, que tem Angola, que tem outros países que agora eu não vou lembrar, tem mais três.
Mas, a minha avó, era uma avó branca e tem ali Polônia na minha história, eu achei interessantíssimo isso. A minha avó era Cabocla, provavelmente ela tinha negro na vida dela, mais atrás, mas ela casou com meu avô, lindo maravilhoso, com olho puxado, azul marinho e era a paixão da vida dela. Eles tiveram 5 filhos e a questão da negritude sempre foi muito presente para eles e para nós.
Eu fico muito feliz de ter esse sangue totalmente negro, muito orgulhosa. Se nascesse de novo, eu gostaria de vir exatamente como eu sou, não sei se exatamente no Brasil, mas eu quero vir preta. E quero continuar cantando também e quero continuar com esse swing, esse balanço, que só a gente tem.
Paula, você está preparando um disco novo. Como é que está essa produção?
É, o que eu vou lançar agora é um single, que eu vou fazer com a Amanda Magalhães. Isso eu nunca falei para ninguém. Ela é neta do Oberdan Magalhães, fundador da banda Black Rio e filha do William Magalhães, uma mulher talentosíssima. E ela fez uma música para mim, produziu e logo mais vou colocar a voz e essa música deve sair até abril.
Em março, eu lanço um outro som, com o Joabe Reis, a gente vai criar um projeto um pouco mais instrumental, com uma sonoridade diferente. Essa música já está pronta, é só uma questão mesmo de burocracias.
E o meu disco, que vai ter músicas inéditas de pessoas incríveis, estou acreditando muito nele, estou muito apaixonada já por ele, ele vai ter uma produção mais que especial, que isso eu não posso falar mesmo, mas a gente vai entrar em estúdio em março para fazer.
Vai ter banda, vai ter um suingue que tem muito a ver comigo, mas tem um ineditismo. Posso falar que tem música inédita do Gabriel Moura, que é parceiro do Seu Jorge, tem música inédita do Pretinho da Serrinha, tem música inédita da Tereza Cristina.
Estou muito inspirada, eu estou muito afim de fazer muita música esse ano. Eu estou pronta para não parar de trabalhar, trabalhar muito, mas não parar de trabalhar nesse 2022 e fazer shows também. Alguma coisa mexeu assim realmente comigo e eu estou mais inspirada do que nunca, muito afim de fazer.
Você tem muito a ver com o carnaval, e neste ano a gente, novamente não terá a festa, por conta do novo avanço da covid. Nessa época do ano a gente já estaria vivendo o clima pela cidade, já tinha esquenta das escolas de samba, dos blocos de Carnaval. Como você está lidando com mais um ano sem o carnaval?
Está me fazendo muita falta. O carnaval é uma expressão artística que vem das pessoas pobres e pretas, o grande conceito é esse. E é uma arte tão fabulosa, tão única, tão singular e tão genial que a gente tem que aplaudir de pé mesmo.
Eu tive a sorte de ser comentarista de carnaval na Globo, ao lado do César Tralli, já desfilei ao lado de Elza Soares na Vai-Vai, no enredo Mulheres que Brilham, já desfilei com Milton Nascimento na Mangueira, já fui abrir alas da Viradouro ao lado da Deise Nunes, nossa miss, com muita gente bacana envolvida.
Já, obviamente, passei madrugadas assistindo todas as escolas, tudo isso já aconteceu. Já fui para a avenida com os meus pais e com a minha avó, na época que era na Tiradentes. A gente ia com a minha minha mãe, pegava uma bolsa, meu pai pegava outra bolsa, então tinha refrigerante, sanduíche. Eu tinha uns 6, 7 anos. O carnaval realmente faz parte da minha vida.
Eu prefiro que todo mundo esteja vivo, todo mundo bem saudável, porque as pessoas estão se contaminando, graças a Deus, obviamente com sintomas muito mais leves. Eu tive covid, você é a primeira pessoa que está sabendo isso de uma maneira pública. Foi no dia 7 de janeiro e no dia 18, o PCR deu negativo.
Eu não fiquei alardeando isso, mas os sintomas foram bem leves. Eu tive uma dor de garganta e coriza. Uma coisa que durou alguns dias. Mas todo show que eu faço agora eu termino falando Viva a Vacina, para que o ano que vem a gente tenha de novo carnaval, a gente tenha de novo essa vida que a gente gosta e que a gente possa encontrar as pessoas e sem medo, porque a gente está sempre agora com um receio do que pode acontecer.
Edição: Vivian Virissimo