Rio Grande do Sul

Coluna

O assassinato de Moïse é um ato político do fascismo

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"Um jovem trabalhador precarizado, negro, estrangeiro refugiado, assassinado sob tortura não é apenas um crime factual. Assume uma dimensão de projeto político" - Foto: @caleefotografia
Trata-se de um crime amparado em um privilégio messiânico, autoconferido: o de oprimir

Poucas vezes um fato, neste caso uma tragédia, é capaz de condensar tantos significados quanto o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabamgabe. O jovem trabalhador foi violentamente assassinado no dia 24 de janeiro. Amarrado e espancado, foi cercado e agredido até a morte por quatro homens armados de pedaços de madeira.

O crime hediondo se deu em um dos quiosques na beira da praia na cidade do Rio de Janeiro. Moïse foi até a “empresa” reivindicar ao que tinha direito: a remuneração rala havida por ter trabalhado alguns dias como atendente. Lá, indefeso, foi vítima de tortura. Com os pés e mãos amarradas, impossibilitado de reagir, os covardes o mataram com crueldade. Uma cena de crime que remete ao assassinato do sargento Manoel Raymundo Soares, em 1966, vítima indefesa do aparato de repressão da ditadura militar.

Muitos significados agruparam-se nesse assassinato precedido de tortura.

A relação do trabalho precário, que isola o trabalhador na solidão da subtração das regras e do sistema de proteção é um desses significados. Seu patrão, amparado nas novas regras trabalhistas, sentiu-se acobertado pela impunidade do mau empregador. Não é suficiente que o preço do trabalho seja aviltado pela reforma trabalhista, é preciso dificultar ou mesmo negar ao trabalhador a remuneração do trabalho vendido.

Um direto traço do escravismo, portanto do racismo estrutural no Brasil. A negação ao pagamento é a negação do escravagista ao direito de liberdade dos indivíduos tornados escravos por condição de raça. O racismo aplicado em decorrência da visão de que a população negra não deveria ser livre, mas destituída à força de sua condição humana, tornada propriedade. A recusa em pagar é a negação do reconhecimento de humano livre, provido de direitos, conferido aos jovens negros neste país. Esse é o segundo significado presente.

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Não há como ignorar a nacionalidade de Moïse, o que aliás os assassinos e torturadores obviamente sabiam. Ele era congolês, nascido na República Democrática do Congo, de onde vieram outras cinco vítimas de assassinato no Brasil desde 2019. A condição de refugiado supõe que receberia acolhimento, segurança e respeito no país que o asila. O que o imigrante congolês encontrou foi exatamente o contrário, foi recebido com xenofobia e violência. Do ponto de vista do sistema internacional de direitos humanos, a morte violenta de um refugiado é o que de pior pode acontecer à imagem do país. Esta é outra dimensão significativa.

Mas o que dá a esse episódio impulso em progressão geométrica é a conjunção simultânea de todos esses significados. Um jovem trabalhador precarizado, negro, estrangeiro refugiado, assassinado sob tortura não é apenas um crime factual. Assume uma dimensão de projeto político. Um projeto cujos inimigos são os trabalhadores, os negros, os jovens, os homossexuais, as mulheres, o de outra religião e os imigrantes. Uma ação amparada em uma visão de mundo.

O homem executado naquele momento era a síntese do inimigo dos fascistas. Trata-se de um crime amparado em um privilégio messiânico, autoconferido: o de oprimir. Oprimir em causa dos poderosos. A pobreza e a ausência de direitos amarraram as mãos e pernas de Moïse, o fascismo desceu o tacão.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko