A Terra Indígena Koatinemo, onde mora o cacique Okara Asurini, faz divisa com a Terra Indígena Ituna Itatá, nos municípios de Senador Porfírio e Altamira, região do Médio Rio Xingu, no Pará. O que Asurini vem presenciando de perto é o resultado das violentas invasões no território vizinho, onde vivem os ‘isolados do Igarapé Ipiaçava’.O território, marcado pelo avanço de desmatamento sem precedentes, tem até instalações de ramais e estradas.
Ituna Itatá é uma das quatro terras indígenas onde vivem grupos de indígenas isolados cujo único amparo legal é a “portaria de restrição de uso”, uma ferramenta jurídica criada pelo Decreto 1.775 de 1996 que impediria a entrada e circulação de pessoas estranhas no local com o objetivo de “proteger determinado perímetro para a atuação da equipe do órgão indigenista no trabalho de localização ou monitoramento de índios isolados”, segundo documento da Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI).
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“Após a confirmação da presença de indígenas isolados, a área da Restrição de Uso deve servir como base para os estudos circunstanciados de identificação e delimitação e posterior demarcação fundiária da terra indígena, conforme a Portaria 14/1996, da Funai, visando ao usufruto exclusivo dos isolados”, diz a OPI. Como a TI Ituna Itatá, há outras três na mesma situação: as TIs Piripkura, em Mato Grosso, Pirititi, em Roraima, e Jacareúba/Katawaxi, no Amazonas.
Para a TI Pirititi, a portaria de restrição de uso foi renovada em dezembro de 2021, por apenas seis meses. A dos Piripkura vai vencer no mês que vem, em março – foi renovada em setembro de 2021. A de Jacareúba/Katawaxi venceu em dezembro e ainda não foi reeditada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A portaria de Ituna Itatá só foi renovada no último dia 1º por pressão das organizações indígenas e por decisão judicial.
“A Ituna Itatá é uma terra de indígenas isolados bem conhecidos e já foi bastante invadida por grileiros e fazendeiros. Ano passado eu estive lá. Estamos preocupados porque o desmatamento está avançando para a nossa terra”, diz Okara Asurini em entrevista exclusiva à Amazônia Real.
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Para a Funai, contudo, não existem povos isolados na TI Ituna Itatá, conforme informou em nota divulgada na semana passada, para justificar que não iria mais renovar a portaria de restrição de uso. Nesta semana, após repercussão provocada pelas organizações indígenas, a Funai reeditou a portaria e publicou no Diário Oficial da União, mas por apenas seis meses. No último dia 25, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará entrou com ação na Justiça Federal pedindo que a renovação tivesse uma vigência de ao menos três anos.
Para os procuradores do MPF, a interdição administrativa deferida em portaria pela presidência da Funai é a única proteção jurídica oferecida atualmente aos povos isolados da TI Ituna Itatá.
O testemunho de Okara Asurini refuta a justificativa da Funai sobre a suposta inexistência de indígenas isolados em Ituna Itatá. O cacique disse à reportagem que está preocupado com os danos que a falta de um processo de reconhecimento da TI pode causar também aos indígenas de seu próprio povo, os Asurini do Xingu. Isso porque as invasões começam a ultrapassar as terras dos Asurini, o que coloca em risco também esse povo. O povo Asurini habita seis aldeias dentro do território, justamente para tentar proteger ainda mais a terra.
“Essa terra de isolados já está toda ocupada pelos grileiros, então nós estamos preocupados com essa notícia de que a Funai não vai mais poder estar dando um apoio para vigiar nossa terra”, continuou Okara.
A liderança Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), denuncia que a não renovação das portarias de restrição de uso abrem precedente para que territórios que têm a presença de povos isolados sejam fragilizados e que esses povos sejam extintos.
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“Estamos diante de uma situação de risco real de que essas pessoas possam desaparecer. Isso não deixa de ser mais um ato de genocídio de um órgão indigenista novamente repetindo as histórias de colonialismo. É assassinato”, disse Angela Kaxuyana à Amazônia Real.
Com 142 mil hectares, Ituna Itatá foi reconhecida pelo Estado brasileiro em 2011, quando o território passou a ter proteção assegurada com a portaria de restrição de uso como condicionante do processo de licenciamento das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no governo de Dilma Rousseff (PT). Desde então, a portaria teve três edições: em 2013, 2016 e 2019. A portaria de 25 de janeiro de 2019 vigorou até janeiro de 2022. A última foi publicada no dia 1º de fevereiro de 2022.
Preocupada com a inoperância da Funai em renovar as portarias, a Coiab e a organização OPI iniciaram uma campanha pública para pressionar o governo brasileiro, sobretudo pela iminência do vencimento da portaria de Ituna Itatá, a renovar as portarias das terras indígenas de grupos isolados.
De acordo com relatório da OPI, a TI Ituna Itatá “se insere dentro de uma região fortemente pressionada por vetores de colonização e grilagem vindos das cidades de Altamira e de Anapú”. Em 2014, diz a OPI, já havia sido identificado um desmatamento expressivo no território. Desde 2018, com novos monitoramentos, foram constatados avanço de desmatamento, grilagem, abertura de estradas e ramais, registros irregulares de Cadastro Ambiental Rural (CAR), entre outras irregularidades.
“Durante os últimos três anos, inclusive durante o pior momento da pandemia, e à revelia da regulamentação das Portarias de Restrição de Uso, as invasões e o desmatamento na TI Ituna-Itatá continua a ocorrer e atinge níveis alarmantes”, conclui o relatório.
Segundo a Coiab, Ituna Itatá “vive uma explosão da grilagem desde o final de 2016, com o fim das obras de Belo Monte e o incentivo do governo federal – refletido na flexibilização das leis ambientais e no enfraquecimento da proteção das terras indígenas no país”.
Ameaça de madeireiros aos Pirititi
Localizada no limite da Terra Indígena Waimiri Atroari, no estado de Roraima, a TI Pirititi está na mesma condição de vulnerabilidade da dos povos isolados de Ituna Itatá. A portaria de restrição de uso foi renovada no dia 9 de dezembro de 2021, mas por apenas seis meses.
O coordenador educacional do Programa Waimiri Atroari, Walter Blos, afirmou à Amazônia Real que a TI é pressionada pelo desmatamento e retirada de madeiras. Situada em Rorainópolis, município de Roraima, a região é conhecida pelas serrarias e grande quantidade de madeireiras, com madeiras ecoadas pela BR-174.
“Tem muitos assentamentos de colonos e madeireiros, por isso os Waimiri quiseram cuidar dos Pirititi. Eles tem uma história de contato com eles e agora não gostariam que os Pirititi sofressem”, explica Walter Glos.
Em 2018, a Funai e o Ibama apreenderam 7.387 toras de madeira retiradas da TI Pirititi. Foi a maior apreensão de madeira realizada em Rorainópolis, até então. Segundo o Ibama, elas seriam transportadas até o Porto do Chibatão, em Manaus, e enviadas para outros estados. Desde então, não houve mais notícias de operações para identificar crimes ambientais no território.
De acordo com Walter Glos, temendo invasão e ameaça à vida dos indígenas isolados Piririti, os Waimiri Atroari assumiram, há anos, a função de também proteger o território dos Pirititi, construindo dois postos de fiscalização nas extremidades da terra que são constantemente vigiados por grupos de indígenas que se revezam mês a mês.
“Todo dia eles fazem fiscalização nos limites das terras para ver se não tem invasão de madeireiros. Em 2020, foi denunciado que havia uma estrada e vários trechos desmatados, do limite da área interditada até o limite dos Waimiri. Eles (os Waimiri) estiveram lá, tinha barraca, casa, eles derrubaram tudo”, contou Walter Blos.
A prova de que os isolados Piririti estão presentes no território são os vestígios e retiradas de objetos que pertencem aos Waimiri-Atroari, segundo Blos. “Os Waimiri saem para ritual em uma aldeia e quando voltam percebem que sumiu um facão, sumiu uma panela, encontram rastros na mata, um jabuti pendurado, uma árvore cortada de forma diferente. Eles sabem onde tem as aldeias dos Pirititi, mas não vão lá”, explicou.
Em junho de 2021, o MPF em Roraima ajuizou ação solicitando a demarcação da TI Pirititi em até três anos. Enquanto isso, o procurador Alisson Marugal pede a prorrogação da portaria de restrição de uso. Segundo o MPF, os Waimiri Atroari denominam os Pirititi de “Piruichichi” ou “Tiquiriá” e são considerados parentes por eles.
Isolados do sul do Amazonas
No Amazonas, a TI Jacareúba/Katawaxi, situada entre os municípios de Lábrea e Canutama, no sul do estado, também teve a portaria de restrição de uso vencida em dezembro. Antes, a última portaria havia sido assinada em 1º de dezembro de 2017, com prorrogação de quatro anos.
O indigenista Leonardo Lenin, do OPI, relata uma expedição feita em 2011, em que foram encontrados vestígios dos indígenas Katawaxi e foi solicitada a restrição de uso. “Não só encontraram vestígios dos indígenas isolados, como eles (que participavam da expedição) foram acuados por esses indígenas. Esse relatório põe na conclusão que esse povo está confirmado, isso é um passo importante, e solicitou que haja prorrogação da portaria para continuar os trabalhos”, explica.
Leonardo Lenin conta que o povo Katawaxi sobrevive da caça, da coleta e da pesca, utilizando porções grandes do território, mudando de região dependendo da época do ano, para aproveitar a floresta, como na época em que os castanhais estão cheios.
“Houve outras expedições, um pouco mais recentes, antes do governo Bolsonaro, que encontraram vestígios apontando a presença desses indígenas isolados. As portarias têm essa intenção de parar as atividades econômicas, para que a Funai possa fazer o trabalho de localização. Porque é assim, as pessoas andam na floresta para apurar esses vestígios. Qualquer informação que aponte e a presença deles e sobretudo para se ter uma noção real do território que eles ocupam e enfim começar a demarcação”, diz Leonardo.
“A não renovação da portaria abre um grande precedente de que territórios que têm a presença de povos isolados sejam fragilizados e que esse povo seja extinto. Estamos diante de uma situação de risco real de que essas pessoas possam desaparecer. Isso não deixa de ser mais um ato de genocídio de um órgão indigenista novamente repetindo as histórias de colonialismo. É assassinato”, disse Angela Kaxuyana, da Coiab.
Segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA), o povo Katawixi utiliza apenas uma área do território, com uso de florestas e castanhais. Além dos ataques de invasores, os indígenas também precisam lidar com a pavimentação da BR-319, que atinge a região.
“A BR-319 possui alto potencial de estimular o desmatamento na região, uma vez que propiciará acesso a vastas áreas da floresta amazônica hoje preservadas. Uma parte do impacto total da rodovia no desmatamento ocorre ao longo da rota da rodovia em si, porém o maior impacto potencial desta rodovia está em permitir a migração para fronteiras mais distantes”, explica o instituto, no relatório.
O sul do Amazonas é a área de maior pressão de frentes de desmatamento do estado, com alto custo socioambiental que impacta populações tradicionais e povos indígenas. Os grupos isolados são os mais fragilizados, situação que se agrava com os cortes nos orçamentos e a política antiindígena do governo de Jair Bolsonaro (PL).
Em setembro do ano passado, a coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai informou à presidência do órgão a confirmação de um novo grupo de indígenas isolados vivendo nas proximidades do rio Purus, no interior da Reserva Extrativista do Médio Purus, conforme reportagem do site O Joio e o Trigo.
Segundo Ângela Kaxuyana, o que a Funai está fazendo ao negar a presença de indígenas isolados é uma “irresponsabilidade”. Ela lembra que a Constituição garante aos povos indígenas que o Estado tem o dever de demarcar as terras dos povos indígenas. De acordo com o artigo 231, essas terras se caracterizam como as tradicionalmente ocupadas e habitadas em caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas que sejam importantes para a preservação dos recursos naturais e à própria vivência física, cultural e de tradições desses povos.
“Esse Estado que nega a existência dos povos indígenas, a gente não pode minimizar. A gente precisa afirmar os grandes riscos desse povo ser assassinado, dizimado, varrido. Isso é claramente para ações ilícitas para aumento de desmatamento, para interesses de expansão agrícola, para abrir as portas para queimadas. Esse povo está encurralado diante de uma situação que vai começar a intensificar as ações ilícitas”, disse Ângela.
Ameaça aos Piripkura
A portaria de restrição de TI Piripkura vai vencer em março – renovada por seis meses em setembro de 2021, após ação do MPF. No estado de Mato Grosso, onde habitam os dois últimos homens do povo Piripkura-Baita e Tamandua, parte do território de 243 mil hectares foi invadida por latifundiários e grileiros, que destruíram trechos da floresta, criam gado e abriram estradas. Os autores da devastação não temem punição e ameaçam a vida dos indígenas.
Rita Piripkura, que viveu como isolada na terra Piripkura por muitos anos, alertou sobre os riscos pelos quais passam seus parentes. Ela disse, em entrevista à Amazônia Real, que está “ficando com muito medo deles serem mortos em conflitos, porque o cerco cada vez mais está se fechando”.
Em outubro de 2021, o ISA fez um sobrevoo no território e em dossiê mostrou que a área desmatada nos últimos dois anos aumentou 27.000%. Foram 12.426 hectares devastados. Em 2017, a Funai publicou portaria prorrogando por 18 meses a determinação de proibir invasões e permanência de pessoas estranhas ao quadro do órgão. Em agosto de 2018 isso foi prorrogado por mais dois anos. Em setembro de 2021, por determinação judicial, ela prorrogou novamente, dessa vez por apenas seis meses.
De acordo com o gerente de povos isolados da Coiab, Luciano Pohl, a TI Piripkura está cheia de fazendeiros que tentam ocupar o lugar. “Há muita procura desse território. Tem fazenda que está instalada desde 1980. Eles foram obrigados a sair de lá por conta do povo indígena de Piripkura, mas depois entraram, começaram a desmatar novamente, pressionar a terra indígena. A Funai não regulariza a terra e eles vão ficando lá do jeito que podem”, diz.
O processo de demarcação da TI Piripkura se arrasta desde 1985, quando a Funai criou um Grupo Técnico para identificar o território. Desde então, o processo de homologação nunca terminou, embora a confirmação da presença dos Piripukra seja clara e conhecida internacionalmente.
Ação covarde, diz indigenista
Com ampla experiência como sertanista em terras indígenas na Amazônia onde vivem povos isolados, Armando Soares, hoje aposentado da Funai, condena a resistência e até mesmo a recusa do órgão indigenista em renovar as portarias de restrição de uso. Ele afirma que esta decisão pode causar mais mortes de indígenas.
“É uma medida extremamente covarde, estúpida, agressiva e desproporcional. Está na base do texto constitucional a obrigação do governo federal de proteger os territórios indígenas. Elas são de ocupação tradicional e a ocupação dos povos isolados é inquestionável. Eles estão ali, ocupam aquele território, sobrevivem naquele território”, disse.
Além da exploração das terras, Armando toca em duas questões ao falar do risco que os isolados passam: a diferença da saúde de pessoas indígenas em contato com não indígenas e a perda de culturas que ainda não foram conhecidas.
“O segundo risco grave é a questão da saúde, da memória de defesa do organismo deles, porque eles não têm nenhuma defesa a essas doenças virais que a gente tem hoje na nossa sociedade. Outra situação também muito grave é que não temos nenhum conhecimento mais profundo sobre a cultura da grande maioria desses povos isolados, sobre a sua a língua, sobre nada disso e corre-se o risco, corre mesmo o risco iminente de você destruir um povo que não existe outro igual no mundo”, explica.
Em nota, a Apib também se posicionou contra a não-proteção das terras e participa de uma rede de protestos que incluem mobilizações sociais e engajamento na web, como forma de pressionar a entidade e reverter esse cenário. “A Funai, burlando o seu próprio Estatuto, coloca-se assim a serviço de interesses particulares que visam se apropriar e explorar não apenas as terras não homologadas, mas também as já regularizadas, situação fartamente verificada pelas crescentes invasões em todos os biomas, principalmente na Amazônia, com graves riscos à sobrevivência física e cultural dos nossos povos e comunidades”, diz a Apib.
Orçamento menor em 2022
Além das claras manobras administrativas e jurídicas que atentam contra os povos, o presidente Bolsonaro também vetou do orçamento de 2022 o valor de 773 mil reais que seria destinado à regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção de povos isolados. Também houve redução de 859 mil reais na proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas.
O Ministério do Meio Ambiente sofreu um corte de 35,1 milhões de reais e a maior parte desse valor seria usado para ações de controle de incêndios florestais em áreas federais prioritárias. Com isso, a pasta deve ter em 2022 o valor de 3,1 bilhão de reais. Em 2021 foram 2,9 bilhões de reais, conforme consta no Portal da Transparência do Ministério do Meio Ambiente.
O que dizem as autoridades
Procurada, a Funai não respondeu às perguntas sobre as portarias dos territórios dos indígenas isolados até a publicação desta reportagem. O MPF no Amazonas informou que existe um procedimento extrajudicial em tramitação para investigar o que ocorre na TI Jacareúba/Katawiri e que, no dia 28 de janeiro, solicitou da Funai uma resposta sobre a renovação da portaria, com prazo de 72 horas. A Amazônia Real entrou em contato novamente para saber se a Funai respondeu, mas a assessoria do MPF não deu retorno.
O MPF do Pará informou que segue com processo na Justiça para que a Funai renove as portarias dos territórios de indígenas isolados. Esse processo rendeu uma renovação da portaria por seis meses, mas o MPF tinha pedido o prazo de três anos. O MPF de Roraima e o MPF de Mato Grosso não responderam às perguntas da Amazônia Real.