Perda de soberania?

Argentina tenta equilibrar soberania e crescimento econômico em acordo com FMI

Dívida começa a ser paga em 2026 e governo prevê cumprir pagamento com crescimento econômico

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

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"A história dirá quem contraiu o problema e quem o resolveu", disse o presidente argentino ao anunciar acordo com o FMI - Olivier Douliery/AFP

Se o assunto predominante na Argentina nos últimos tempos não é outro que o acordo do governo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o tema ganhou novas cores desde a última sexta-feira (28). Na manhã daquele dia, o país amanheceu com a notícia de que a Casa Rosada havia finalmente chegado a um cronograma e as regras para pagar a dívida de US$ 45,5 bilhões deixada pelo governo de Mauricio Macri. A resolução do impasse com o organismo internacional era um objetivo da coalizão governista, a Frente de Todos (FdT), desde o início do mandato de Alberto Fernández em dezembro de 2019, que busca um acordo que não comprometa a população e submeta o país às frequentes exigências de austeridade fiscal impostas pelo FMI.

No entanto, fica a dúvida: como é possível que um país com os níveis de inflação e desvalorização da moeda como a Argentina pode conseguir pagar a dívida, os juros e ainda crescer? O Brasil de Fato ouviu especialistas no país em busca de reflexões que ajudem a pintar esse complexo panorama.

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O plano

Dividido em quatro blocos, o princípio de acordo ainda precisa ser aprovado pelo Congresso antes de entrar em vigor. O Ministro da Economia, Martín Guzmán, apresentou a parte técnica do que Fernández disse horas antes ser a perspectiva de futuro que o acordo possibilita para a Argentina. Mesmo sem o conhecimento público da “letra pequena” das condições do Fundo, especialistas em economia avaliam ser um acordo amplamente cumprível com as possibilidades da Argentina.

Em síntese, o acordo consiste em um recomeço do pagamento do que ainda resta da dívida, com uma espécie de intervalo até 2026, quando a dívida de US$ 44,5 bilhões começaria a ser paga, até quitá-la em 2034.

Conflito interno

Após o anúncio, a ala kirchnerista do bloco FdT vibrou pelo seu silêncio. Dias depois, Máximo Kirchner renunciou por carta à presidência do bloco no Congresso. “Abro espaço para alguém que acredite no acordo com o Fundo”, disse o filho da vice-presidenta Cristina Kirchner.

Além dos desentendimentos próprios de uma grande coalizão que abarca diferentes vertentes do peronismo como é a FdT, os posicionamentos críticos ao acordo com o FMI – e, em consequência, à postura por vezes muito moderada de Fernández — preveem um inevitável ajuste fiscal imposto pelo organismo internacional.

Neste sentido, o economista Horacio Rovelli, que foi funcionário do Ministério da Economia de Raúl Alfonsín (1983-1989), destaca a presença dos fundos de investimento — que prefere chamar de capital financeiro internacional. “O acordo subordina o poder econômico local ao capital financeiro internacional, representado pelo FMI. A participação mais importante no Fundo é a dos Estados Unidos, onde estão os chamados fundos de investimento BlackRock, Franklin Templeton; os mesmos fundos que ficaram com as principais empresas argentinas”, destacou, em entrevista ao Barricada TV.

“O destaque é a BlackRock, que tem participação de 6,16% na YPF, 16,8% no Banco Galicia e participação majoritária na Telefônica Argentina e Pampa Argentina, um dos principais responsáveis pela fuga de capitais na gestão de Macri.”

Diretor do Centro de Estudos Econômicos e Sociais Scalabrini Ortiz, o economista Andrés Asiain aponta para o risco da subordinação ao Fundo. “Um esquema de desembolsos que não reforça reservas e nos ata a revisões periódicas para evitar o default não gera estabilidade econômica e nos condena à tutelagem do FMI”, escreveu em seu Twitter. “Espero estar enganado, mas parece um tiro no pé.”


Protesto contra o pagamento da Argentina ao FMI em janeiro deste ano. / Alejandro Pagni/AFP

Onde estão os dólares?

Os críticos afirmam que a dívida da Argentina com o FMI foi destinada, parcialmente, para a fuga de capitais e, por outra parte, para o pagamento de credores privados, que também retiraram os dólares do país. Parte da sociedade e da camada política mais à esquerda defendem a suspensão do pagamento.

A Argentina já pagou US$ 5,1 bilhões ao FMI, valor que será devolvido no programa acordado com o governo Fernández. Para enfrentar os pagamentos ao longo de 2021, o principal suporte foi a emissão monetária, que pressionou a alta de inflação, um ponto já frágil na economia argentina. Com o acordo, o governo planeja aumentar a arrecadação com a retirada de subsídios recebidos pela população mais rica (ainda que não tenha ficado claro como será feita essa classificação) e apostar no investimento público, na ciência e tecnologia e em fortalecer o setor privado para aumentar a receita e as reservas do Tesouro.

Além da emissão de moeda, outro suporte para equilibrar a situação social e econômica do país foi o Aporte Extraordinário às Grandes Fortunas, um imposto único de 2% dos bens declarados da camada mais rica da Argentina. Mesmo sendo um pagamento único e de baixa porcentagem, a lei gerou grande revolta no setor contribuinte.

“Há uma percepção de que na Argentina faltam dólares, mas isso não é verdade”, destaca Laura Testa, economista do Grupo Bicentenário. “O que acontece é que os dólares não aparecem, o que é diferente. Temos uma fuga de dólares aproximada à metade do nosso Produto Interno Bruto (PIB). Produzimos alimentos para 400 milhões de pessoas, e em um país com 45 milhões, como pode ser que pessoas passem fome”, reflete. “Não somos um país pobre, mas  temos um problema de redistribuição muito grande.”

Equilibrar as contas

O déficit fiscal consiste, basicamente, na diferença negativa nas contas do Estado, quando os gastos e créditos são maiores que os ingressos. Economista e mestre em relações internacionais, Ricardo Aronskind alega ser difícil desvincular a redução do déficit fiscal do impacto negativo sobre a população.

“Habitualmente, todos os ajustes [para redução do déficit fiscal] vêm com redução do gasto público, do investimento, castiga o emprego. Mas, teoricamente, o governo poderia fazer outras coisas, como combater a evasão impositiva. Por exemplo, parte da colheita agrícola sai pelo Paraguai, pelos portos do Rio Paraná que o Estado não controla; o mesmo acontece com o setor da mineração, gás, petróleo. Temos um Estado tonto que não controla, não regula e não arrecada.”

Mover tamanha estrutura do poder implicaria, novamente, um enfrentamento por parte do governo, algo que foge das características da administração Alberto Fernández – e estaria mais na linha do estilo afrontoso da vice Cristina Kirchner. O acordo anunciado com o Fundo deve ser, então, lido com essas mesmas lentes.

“Um acordo com o FMI nunca pode ser bom”, pontua. “Mas este governo não preparou as condições para um grande enfrentamento com o Fundo. Para chocar com um organismo respaldado pelos norte-americanos, a sociedade e a economia devem estar preparados para uma situação conflitiva”, observa.  

“Considerando isso, parece ser um acordo que deixa o governo viver como pode e, se fizer as coisas bem, pode terminar a gestão de forma mais ou menos adequada”, diz. “Hoje, a Argentina não pode planejar um crescimento anual nos próximos 10 anos, porque o FMI condiciona. Dito isso, o drama é prévio e tem a ver com a forma que a Argentina foi endividada durante o período de Macri, um aliado extraordinário das corporações internacionais e do capital financeiro internacional. Gerou uma dívida enorme em apenas dois anos e não criou uma capacidade exportadora genuína que possibilitasse vender e pagar os compromissos externos. Aí está o problema”, avalia. 

Os ouvidos e os olhos da História

Conforme anunciou Fernández ao comunicar a negociação com o FMI, o governo espera o reconhecimento de uma administração que arcou com suas dívidas sem balançar demais as estruturas — ao mesmo tempo que move um processo judicial para investigar a contratação da dívida, já que o empréstimo violaria as próprias normas do FMI.

"A história dirá quem contraiu o problema e quem o resolveu'', disse o presidente argentino no anúncio sobre o acordo.

A mesma expectativa pairava em setembro do ano passado, nas prévias das eleições legislativas. Com o avanço da vacinação contra a covid-19, a Frente de Todos esperava a resposta das urnas. "A verdade é que a população não vota em um governo porque conseguiu vacinas, tem a ver com a sua situação histórica", aponta a economista Laura Testa. “A Argentina tem expectativas mais altas porque houve um momento em que as pessoas viviam melhor”, diz.

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Uma pesquisa realizada em janeiro pela consultora Analogias revela que apenas 4 de cada 10 argentinos sabem quem foi responsável pela dívida com o FMI. 26% dos entrevistados opinou que a dívida foi contraída pelo governo Fernández. Além disso, os dados foram piores para a Frente de Todos quando perguntados sobre que governo aumentou mais a dívida externa da Argentina. Neste ponto, a maioria (45%) opinou que foi o governo de Fernández, contra 38% que apontou para o governo macrista.

O resultado das eleições legislativas no ano passado deram o recado: se as políticas não chegam à população e as condições de vida não melhoram, não há vilões e heróis ou, pelo menos, não facilmente identificáveis. A coalizão macrista, Juntos por el Cambio (JxC), deixou a coalizão peronista para trás nas urnas na grande maioria das províncias do país, e este cenário gera uma enorme incógnita para a eleição presidencial de 2023.

As perguntas ainda pairam sobre um governo na metade de seu mandato, com o fardo de precisar pagar o maior empréstimo da história do FMI e uma negociação que, pelo menos por enquanto, não sabemos sobre as letras pequenas do acordo.

Edição: Thales Schmidt