Coluna

A morte de Moïse e os porquês da reversão da contrarreforma trabalhista e do teto de gastos

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De Madureira, onde morava, o congolês Moïse Kabagambe tinha que percorrer mais de 20 quilômetros até a Barra da Tijuca - Reprodução/Redes Sociais
Moïse só buscava seu salário, com o qual pretendia apenas sobreviver. Encontrou uma morte brutal

Gustavo Seferian, Jorge Luiz Souto Maior e Valdete Souto Severo*

 

O Brasil todo acompanha com perplexidade e comoção os desdobramentos da notícia da morte do jovem trabalhador congolês Moïse Mugenyi Kabamgabe, cruelmente assassinado no quiosque Tropicália, no Rio de Janeiro. O crime se deu porque Moïse foi cobrar de seus patrões R$ 200 por dois dias de trabalho ainda sem o devido pagamento.

São muitas as camadas históricas e sociais que atravessam o caso. A iniciar pelo racismo, que estrutura a sociedade brasileira e que remonta a escravidão colonial que por quase quatro séculos imperou no país, ainda hoje lançando fortes marcas nas relações de trabalho e na descartabilidade das vidas negras. Passa pela xenofobia, que, na visão de alguns, autoriza, pela simples condição de imigrante – sobretudo de um país periférico e dependente da África qual é o Congo, que por séculos experimentou o bruto achaque colonial belga –, o desrespeito aos mais elementares direitos humanos daqueles e daquelas em tal condição. E encontra em seu lugar de classe uma desembocadura maior, que coloca a maioria das pessoas na condição de depender apenas da venda da própria força de trabalho para sobreviver sob o sol do capital, o que no mais das vezes é tremendamente duro e difícil.

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Moïse só buscava seu salário, com o qual pretendia apenas sobreviver. Nada mais. Encontrou uma morte brutal.

O que esse episódio reafirma é a realidade de que não há negociação com o patrão.

O caso de Moïse não é isolado, ainda que nos choque pela violência e pela explicitação de tudo que já mencionamos. Basta lembrarmos que em 2017 o pedreiro Claudio Ximenes Neto foi morto a facadas por cobrar R$ 1.000,00 por seus serviços, ou então das alarmantes cenas de uma trabalhadora que, após fazer um acordo na Justiça do Trabalho para receber valores decorrentes de suas verbas rescisórias e FGTS, foi espancada por seu ex-empregador, que tentou tomar à força o dinheiro por ela recebido. Isso para não falarmos na infinitude de mortes de trabalhadores e trabalhadoras rurais que por apenas exigirem seus bens de vida, seus mais elementares direitos à existência, acabaram encontrando a morte como resposta de seus exploradores, em que o caso do “tal de natal” exemplifica por todos o grau de violência de classe que caracteriza o latifúndio em nosso país.

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A morte direta também não é a única agressão sofrida por quem depende do salário para viver. Toda vez que alguém despede sem nada pagar ou forja uma justa causa, para se não permitir sequer o acesso ao seguro-desemprego, concretamente impõe privação, impedindo a compra de alimento, o pagamento do aluguel, e, portanto, a fruição da vida.

Não importa aqui ecoar a sanha punitivista, baseada em comoção midiática, para criminalização dos autores desta barbaridade. Importa denunciar o quanto tantos daqueles que ora se dizem horrorizados com o ocorrido reproduzem, há muito, a mesma violência e também o quanto esta violência é estrutural e histórica em nossa realidade.

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Por mais que compreendamos que estas questões só virão a ser completamente remediadas quando pusermos abaixo essa ordem social podre, marcada pela exploração e pela opressão, que faz ora de acabar, é certo que algumas medidas concretas podem e devem desde logo ser implementadas para abrir veredas à construção de um mundo novo.

Dentre elas, e tomada esta perspectiva, podemos dizer que o ocorrido na Barra da Tijuca se soma a debate que fortemente se colocou na esfera pública no início de 2022 e que merece ser reavivado permanentemente: a revogação da “reforma” trabalhista efetivada logo após o golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Roussef.


No RJ, ato organizado pelo Levante Popular da Juventude em protesto ao assassinato brutal de Moïse Kabagambe / Matheus Alves/Levante Popular

Apavorando os agentes do capital e os defensores da ordem, a ideia da revogação das leis que lesaram os trabalhadores e trabalhadoras apareceu como um raio em céu azul no debate público de um ano já marcado há muito pelo processo eleitoral. E não pode do mesmo modo repentino desaparecer, como se fosse uma “participação surpresa” que possa retumbar como simples expectativa em nossos ouvidos.

É preciso pontuar, de plano, que a revogação de uma ou mais leis destrutivas, como é o caso de 13.467, não irá alterar essa estrutura. O que aqui ressaltamos é a importância simbólica de todos os atos que reafirmem a centralidade do trabalho e a necessidade de proteção jurídica que de algum modo limite os efeitos perversos dessa sociabilidade doente.

Assumamos, então, a proposta de reversão das “reformas” como uma proposta efetiva, e debatamos um pouco mais ela.

Dentre os mais de duzentos dispositivos que a contrarreforma de Temer implementou na CLT[4], temos que destacar algo que encontra um eco de fundo em muitos destas mudanças, que é justamente a abertura de “liberdade” formal para negociação das condições de trabalho entre exploradores e explorados e exploradas.

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Sabemos que o Direito do Trabalho se construiu historicamente a partir da ruptura da noção de “autonomia individual da vontade”. Foi justamente por reconhecer a necessidade de intervir e limitar essa vontade que direitos sociais foram regulados pelo Estado, que, tomando as desigualdades materiais existentes entre trabalhadores e trabalhadoras e seus exploradores, cristalizou a necessidade de relativizar os ajustes individuais em detrimento da lei.

Por sua vez, a construção da noção jurídica de autonomia coletiva da vontade não é mais do que o reconhecimento da pressão exercida sobre o capital, pela classe trabalhadora, para garantir melhores condições de vida.

Afinal, não há negociação com o patrão, e medidas coercitivas previstas em lei e implementadas pelo poder público reclamam ser efetivadas como salvaguarda daqueles e daquelas que vivem da venda da sua força de trabalho.

A atuação coletiva só se justifica para ir além, ampliar a proteção de quem trabalha. O que a “reforma” faz, longe de estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado, é buscar - através da lei - a anulação da luta sindical.  Ao ampliar as possibilidades de exercício da autonomia individual da vontade – como no que se refere à pactuação de jornada de trabalho, estabelecimento de banco de horas, e até mesmo destituição de direitos, como no caso dos assim chamados trabalhadores “hipersuficientes” –, a “reforma” trabalhista subverte os alicerces históricos do Direito do Trabalho.

Estas e todas as demais medidas instauradas pela dita “reforma” merecem ser revistas, e isso por diversos motivos:

i) São elas resultantes do golpe de estado de 2016, que acelerou o processo de desmonte social já então experimentado no país;

ii) Não respeitaram qualquer espécie de ditame, sejam legais ou políticos, do processo legislativo, trazendo uma abusiva e imensa inflexão normativa sem qualquer debate público;

iii) Importaram flagrantes inconstitucionalidades, donde a primeira encontra eco na vedação ao retrocesso social, qual inscrita no caput do art. 7o da Constituição, isso para além de outras, que seguem em discussão e invariavelmente estão sendo reconhecidas pelo crivo do Judiciário;

iv) Não tiveram – como não poderia ter – alcançado seus maiores anseios anunciados, quais sejam, de aquecimento da economia, manutenção e criação de novos empregos. Até porque  a criação de novos empregos reclama medidas completamente diversas do que aquelas apontadas pelas “reformas”, como a redução de jornada de trabalho e garantia no emprego;

Revogar a “reforma” é um ato simbólico - que guarda, inegavelmente, efeitos concretos - de compromisso político fundamental em um momento de tanta agressão às trabalhadoras e trabalhadores. Um passo inicial, que longe de significar efetiva mudança estrutural, reforça a potência das mudanças possíveis e resgata, no que tange à criação coletiva de normas, o parâmetro constitucional de constante busca da melhoria das condições sociais de quem trabalha.

Não se trata, portanto, de discutir a legalidade ou ilegalidade da medida, suas possibilidades jurídicas ou outros salamaleques, senão a existência ou não de vontade política de fazê-lo. E é dessa vontade que urgentemente precisamos!

Moïse era um trabalhador precário, como é a massa dos jovens, negros e periféricos de nosso país. Não gozava de proteção social em sua relação de trabalho, que expressava a tendência buscada pela burguesia para com a lida do Direito do Trabalho: dissolvê-lo em suas origens contratuais puras, civis. Encontrou, na situação que levou à sua morte, a expressão mais brutal do que é o mando patronal, tão agudizado pela dita “reforma” de 2017.

Nesse jogo bastante sórdido das alternativas eleitorais, afirmamos sem pestanejar: não há negociação com o patrão. Portanto, não há que se tergiversar quanto a esse assunto. Qualquer projeto que anseie um perfil de oposição à prática golpista, miliciana e neofascista que tomou de assalto o país precisa assumir com todas as letras a agenda programática de revogação das “reformas” instituídas no país – ao menos – de 2016 para cá.

Neste texto-manifesto exortamos:

Que a reversão das Reformas Trabalhistas – sobretudo as previstas nas Leis n. 13.429 e 13.467/2017 – seja um compromisso das candidaturas à esquerda nas eleições de 2022.

Que junto a elas também a EC 95/2016, o desmonte do Ministério do Trabalho e Emprego, a Contrarreforma da Previdência e outras medidas de austeridade implementadas por força do golpe de 2016 sejam revistas.

Que possamos construir condições de honrar a morte de Moïse, Neto, do menino Miguel Otávio Santana da Silva e de tantas outras vítimas do genocídio, que se aprofunda no nosso país e que encontra na destruição dos Direitos Sociais uma de suas perversas faces.

 

Moïse Kabagambe, presente!

 

*Gustavo Seferian é professor da UFMG, membro da secretaria nacional do IPDMS e diretor do ANDES-SN

**Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP e Desembargador do TRT da 15a Região

***Valdete Souto Severo é professora da UFRGS e Juíza do TRT da 4a Região.

****Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo