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Ucrânia, Biden, Putin e Bolsonaro

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Pode se especular também que a decisão de ir para Moscou reflete uma reação de Bolsonaro às repercussões da viagem de Luiz Inácio Lula da Silva para Europa - Ricardo Stuckert
Neste ano, o Brasil volta a fazer parte do Conselho de Segurança da ONU e isso interessa a Putin

Por Giorgio Romano Schutte*

Até a publicação deste artigo, está confirmada a viagem do presidente Jair Bolsonaro (PL) para Moscou em fevereiro, estranhamente em meio à maior crise ente o Ocidente e a Rússia desde o fim da guerra fria. O brasileiro não era o maior aliado dos Estados Unidos?

Primeiramente, em relação às tensões. As notícias sobre uma mobilização de tropas na fronteira com a Ucrânia começaram a circular no final do ano passado, mas essa história se inicia com o discurso do Vladimir Putin, em 2007, em Munique (Alemanha), na Conferência sobre a segurança na Europa.

Foi lá que ele apresentou sua doutrina criticando o unilateralismo e a arrogância dos EUA e da Otan (Organização do tratado do Atlântico Norte) e reivindicou o direito da Rússia de ser respeitada.

Putin questionou para que serve a aliança militar ocidental depois do fim da guerra fria. O ocidente nunca conseguiu dar resposta e sempre considerou que não deve satisfação à Rússia.

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A Otan, porém, começou sua expansão para o Oriente, primeiro filiando os países que faziam parte do bloco soviético, como Polônia, Hungria e Bulgária. Depois, em 2004, abriu as portas para as ex-repúblicas soviéticas do Báltico: Letônia, Estônia e Lituânia. A proposta era avançar com a filiação da Georgia e da Ucrânia.

A Rússia, então, reagiu com a intervenção militar na Georgia em 2008. No caso da Ucrânia, no período entre 2008 e 2014, houve de ambos os lados infiltração e manipulação política. Não há bandidos e mocinhos nessa história.

Em fevereiro de 2014, foi a vez das forças pró-Ocidente organizarem uma onda de manifestações violentas conhecidas como Euromaidan em Kiev, capital da Ucrânia, derrubando o governo que estava se aproximando à Rússia.

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A reação foi a anexação da Crimeia em março 2014 e apoio a forças armadas pró-Rússia no oriente da Ucrânia, particularmente nas regiões de Donetsk e Luhansk. Nos confrontos desde então, houve mais de 10 mil mortos e mais de 20 mil graves feridos.

Observe-se que a Europa tem posições diferentes internamente e em relação aos EUA. Países do leste europeu se posicionam na linha norte-americana, mas os países da Europa Ocidental, em particular a Alemanha de Angela Merkel, tentaram manter o diálogo e sobretudo não prejudicar as relações comerciais com a Rússia, incluindo ai a importação de gás e petróleo.

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As coisas tomaram outro rumo com a chegada do Joe Biden e seu slogan America is back - “EUA estão de volta”. Parte desta ofensiva - que está prioritariamente direcionada à contenção da ascensão chinesa - é returbinar a Otan e reconsolidar a aliança com a Europa como espinha dorsal da sua hegemonia.

A Rússia de Putin, fortalecida pela parceria com a China, resolveu reagir à nova dinâmica. Aí aparece a demonstração de força na fronteira com a Ucrânia, justo em um momento de fraqueza de Biden devido a questões de política interna.

Evidente que também há uma dinâmica da política interna russa: a necessidade de Putin de manter sua posição, diante da fadiga natural após tantos anos no poder.

As reivindicações são de que nenhuma outra ex-república soviética (além dos países bálticos) entre na Otan e a retirada das tropas da aliança dos países que se juntaram à Organização depois do fim da guerra fria. Ou seja: não só as ex-repúblicas soviéticas, mas também os países da Europa Oriental. E Putin exige também garantias no papel assinado e registrado em cartório.

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É uma pauta de reivindicação absolutamente legitima. Evidente que Putin sabe que é impossível para os EUA e mesmo a Europa concordar com tudo, mas pode se chegar a um meio termo se houver vontade política.

Enfim, as tensões estão se acumulando e há vários desfechos. Por enquanto, a Rússia pode avançar de três formas: uma guerra cibernética para enfraquecer o governo da Ucrânia; invasão limitada nas regiões orientais; e provocar uma troca de regime mobilizando revolta interna, o que seria uma troca na mesma moeda dos tumultos antirrussos em 2014. Invasão total ou simples retirada sem qualquer ganho são muito pouco prováveis.

Menos provável ainda é que haja qualquer confronto militar entre 4 e 20 de fevereiro, que é quando acontecerão os Jogos Olímpicos de Inverno. O Espírito Olímpico é exatamente a promoção da paz, e durante os Jogos os países participantes declinam da guerra. Sendo os Jogos na China, com certeza isso pesa.

A China, aliás, deixou muito claro seu total apoio às reivindicações russas. É também na ocasião da abertura dos Jogos, no dia 4 de fevereiro, que Putin viaja para China e terá um encontro pessoal com Xi Jinping, o primeiro desde o início da pandemia.

Na realidade, os EUA estão bastante perdidos. Biden e o seu ministro de Relações Exteriores, Anthony Blinken, deixam claro que, por enquanto, não estão dispostos a negociar nos termos da Rússia.

Ao mesmo tempo, já explicaram que a Ucrânia, não sendo membro da Otan, não pode contar com apoio militar direto. Há ameaças de uma reação forte no campo econômico e financeiro, excluindo a Rússia do sistema de pagamentos internacionais, chamado Swift. Mas isso poderia ser danoso aos interesses europeus. O conflito atual serve inclusive para testar a unidade entre os EUA e a União Europeia.

Diante de tamanha confusão, o que Bolsonaro vai fazer em Moscou, se ele de fato for?

Na verdade, o convite para o brasileiro ir para Moscou é antigo e foi articulado ainda na gestão do ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Seria uma viagem que envolve outros países cristãos com governos conservadores que defendem uma pauta de costumes, como a Hungria e a Polônia. Por causa da covid, a agenda fora adiada.

Neste ano, o Brasil volta a fazer parte do Conselho de Segurança da ONU como um dos dez membros não permanentes. Isso interessa a Putin. Há uma pauta de comércio que envolve interesse na compra pelo Brasil de de sistemas de mísseis antiaéreos e sistema de combate a drones russos.

O principal produto de exportação brasileira para a Rússia é a soja. O Brasil tem um déficit com a Rússia pelas importações de fertilizantes e houve problemas fitossanitários com a importação de carne brasileira.

Pode se especular também que a decisão de ir para Moscou reflete uma reação de Bolsonaro às repercussões da viagem de Luiz Inácio Lula da Silva para Europa e a imagem de um certo isolamento internacional do ex-capitão do Exército.

Ao final, a proximidade entre o clã Bolsonaro e a família Trump não ajudou muito na relação com os EUA sob gestão Biden. Além de Moscou, Bolsonaro pretende também visitar Hungria onde o presidente da extrema direta Viktor Orban enfrenta uma eleição com uma oposição unida em março.

Enfim, não há data exata confirmada e pode ser que Bolsonaro ainda recue dessa ideia, que com certeza não agrada aos EUA.

*Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.

**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outras colunas.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Leandro Melito