O projeto político da classe dominante “moderna” não tem partido próprio, apenas aluga espaço
É de uma lógica cristalina a dificuldade das elites brasileiras de apresentarem uma solução viável – pela via eleitoral – ao candidato da esquerda à Presidência da República. A conspiração para tirar o PT do poder não se reverteu automaticamente em apoio ao PSDB, partido que dividiu com a legenda de Lula o apoio da maioria dos brasileiros desde a primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso para presidente, em1994, até 2014.
Nesse momento, o último candidato tucano que chegou ao segundo turno, Aécio Neves, tentou levar a Presidência no grito, ao questionar, seis anos antes de Donald Trump usar esse artifício para tentar fraudar as eleições americanas, a lisura da disputa contra a reeleita Dilma Rousseff. Depois, participou ativamente da campanha de desestabilização do governo Dilma até o desfecho do golpe contra ela, em 2016.
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O PSDB fez uma viagem lenta, agora sem volta, em direção ao udenismo – a UDN foi o braço civil do golpe militar de 1964. Sem votos suficientes para voltar ao poder, abriu mão de qualquer compromisso com a democracia. Assim como a UDN, não percebeu que era justamente na arena democrática que residiam as suas chances de protagonismo na vida política. Deu um tiro no próprio pé, a exemplo do líder udenista Carlos Lacerda.
Distanciado de suas bases, a legenda fechou o ciclo de um lento e implacável processo de deterioração partidária. Sem força política para liderar uma oposição democrática aos governos petistas e optando por métodos autoritários para destituir o partido que os eleitores tinham como sua antítese, o PSDB de Fernando Henrique Cardoso viu seu espaço eleitoral ser ocupado por hordas de extrema-direita e um exército de pinóquios, napoleões de hospício, milicianos e políticos de ocasião.
Esse não foi apenas um rearranjo institucional. A guinada tucana à direita desorganizou o quadro partidário de tal forma que não existe hoje nenhuma representação política orgânica da classe dominante brasileira. Não se pode dizer que a elite detenha o monopólio do poder político. Na verdade, ela é condômina de um poder conquistado por partidos de ocasião, onde operam uma casta de militares de extrema-direita, evangélicos, milicianos, representantes de políticas locais – enfim, um lumpesinato urbano com interesses individuais mais sólidos do que qualquer projeto político de poder.
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A classe dominante não está no comando político: apenas aluga o puxadinho. E apenas o suficiente para resolver os seus interesses mais imediatos. No governo Bolsonaro, não tem espaço para nenhum projeto de poder que não seja o de conivência com a destruição do país. Fora do governo Bolsonaro, não tem possibilidade de voo solo.
O produto do desarranjo não é apenas a impossibilidade eleitoral do centro político ascender ao poder por méritos próprios – ou, se contrariar todas as previsões e ganhar eleições para presidente, de operar com uma base política minimamente orgânica.
Todo o equilíbrio de poder da democracia brasileira pós-64 foi montado dentro de uma lógica absolutamente conservadora de uma guerra fria jabuticaba. Segundo as teorias conspiratórias conservadoras (alardeadas inclusive pelo PSDB, que se dizia social-democrata), de uso meramente eleitoral, o PT era o risco comunista que deveria permanentemente ser combatido.
Quatorze anos de governos petistas (oito de Lula e seis de Dilma) jamais comprovariam a tese. Mas o fato é que essa propaganda política teve força suficiente para articular o quadro partidário por oposição ao petismo. Isto é, a democracia pós-ditadura militar teve como pilar um partido realmente orgânico, de massas, o PT; e um que a ele se opõe.
Quando levou a guerra contra o PT para dentro das instituições democráticas (o Judiciário e o Legislativo) e deu espaço para a conspiração da extrema-direita dentro dos quartéis, não se importando com o preço que o país pagaria por essa aventura, o PSDB acabou perdendo a mão. A situação saiu de seu controle. Nesse momento, já operavam com a extrema-direita organizações internacionais especializadas em envenenar a opinião pública.
O processo de impeachment, do qual esse condomínio participou, levou a radicalização ao extremo. O PSDB tornou-se um partido anódino perto da extrema-direita que despontava sem esforço.
As ondas de pânico provocadas pelos conspiradores que rondam tribunais, quartéis e Legislativo desde 2005 e amplificadas pela máquina de propaganda fascista internacional que apoiou Bolsonaro em 2018 levaram uma massa despolitizada e amorfa a uma radicalidade tal que reduziram o PSDB a nada. O partido que conspira, depõe e assassina reputações tornou-se para o eleitor antipetista um amontoado sem graça, sem apelo qualquer.
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O país vai para as urnas com uma enorme disfunção. A classe dominante não tem um partido para chamar de seu. Não existe relação orgânica entre o setor hegemônico economicamente e as instituições políticas.
Se no período Bolsonaro prevalece um capitalismo primitivo e sanguinário, onde todos os interesses predatórios se impõem, é por duas razões. A primeira delas é que, para o lumpesinato que ocupa o poder, a destruição “de tudo isso que está aí” é um projeto político de “depuração”: acabar com qualquer sinal da existência de forças progressistas, seja o professor primário, seja um ex-presidente. Em segundo porque, na falta de espaço próprio, a classe dominante facilmente compra quem for conveniente comprar. E a base bolsonarista está à venda.
*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante