A natureza se torna mercadoria. A ecologia se torna espetáculo
Dentre as muitas mentiras que conto a mim mesmo, está a inabalável certeza de que é possível “salvar a Amazônia”.
Fecho os olhos e me vejo em um mundo ambientalmente equilibrado, socialmente justo, economicamente igualitário. Um lugar onde eu possa fazer a diferença.
Para salvar a Amazônia, meu pequeno gesto se unirá a milhões de outros pequenos gestos ao redor do mundo. Uma grande união de esforços entre pessoas, empresas, governos e organizações da sociedade civil.
Nessa jornada, juntos, vamos “enfrentar” as mudanças climáticas, “combater” o desmatamento, “proteger” nossos rios, “garantir” vida digna aos povos indígenas e comunidades tradicionais.
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Para isso, temos que fazer a nossa parte. Cada um faz a sua parte.
E vamos perdendo as contas de quantos campos de futebol são desmatados por hora. Nos atrapalhamos na contagem de quantas vezes Portugal cabe nas áreas desmatadas. Ou seria a Itália?
Governos dos países ricos se escandalizam com os índices de desmatamento. Esquecem de mencionar que estão nesses mesmos países as sedes das empresas que financiam a estrutura de derrubada de florestas. Esquecem de nominar os donos do dinheiro. Os que bancam o desmatamento são os que bancam também as campanhas políticas.
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Da minha parte, também me escandalizo. Dentre as minhas atividades profissionais, está a de rastrear os donos do dinheiro que financiam crimes ambientais e violações de direitos humanos. Então, me escandalizo ao ver que o dono do dinheiro que banca o desmatamento é o mesmo que banca o político que faz a política pública.
O dono do dinheiro é o mesmo que banca as organizações que deveriam denunciar crimes ambientais praticados por este mesmo dono do dinheiro.
Então, tudo fica nebuloso. Deliberadamente nebuloso. A natureza se torna mercadoria. A ecologia se torna espetáculo. Tudo se torna autoengano.
O consumo, não importa as consequências, é nosso verdadeiro dever cívico. Nos dedicamos a ele em tempo integral. As alterações nos rumos da tragédia amazônica são meramente cosméticas.
Mas... o autoengano é uma delícia.
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Eu mesmo faço questão de reciclar meu lixo e assinar todas as petições que chegam na minha caixa de e-mail, de modo a integrar a grande corrente global para salvar a Amazônia e fazer do mundo um lugar melhor e mais justo.
Só não desisto de integrar, assim como você, essa grande sociedade de consumo em que nos transformamos.
Minha ética é minimalista. Indolor. Quero salvar a Amazônia e, de preferência, o planeta todo, mas rejeito tudo o que prescreve renúncia ou ameaça de mudança das minhas crenças.
O consumo é meu sentido de vida. Consumo informações, mercadorias, imagens, signos, símbolos, corpos, discursos.
O shopping center – físico e das redes sociais - é meu templo. A mercadoria é o milagre que aplaca o meu vazio. Eu sou a mercadoria.
Sou o dono do dinheiro que banca o desmatamento. Sigo comprando, comprando, comprando... das empresas que bancam o desmatamento.
Meu conselho é o seguinte: mantenha o otimismo, faça a sua parte.
O seu pequeno gesto se integrará a outros pequenos gestos e vamos salvar o mundo.
Só não olhe pra cima.
*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Leandro Melito