Pernambuco

Coluna

O desamparo é a própria picada do mosquito

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No Brasil, cerca de três mil crianças foram diagnosticadas com a síndrome durante o surto de microcefalia em 2015
No Brasil, cerca de três mil crianças foram diagnosticadas com a síndrome durante o surto de microcefalia em 2015 - EBC
O mundo esqueceu do Zika, mas a picada do abandono social segue sendo mortal

[Audiodescrição: Em fotografia, sentada, dando um beijo na testa do seu filho deitado em seus braços, aparece uma mulher parda. Ela está com os cabelos presos, estes são escorridos e castanhos. Veste uma blusa de manga amarela. A criança, que está dormindo, possui deficiência é do sexo masculino, também é parda. Veste uma roupa branca , amarela, laranja e azul. Ao fundo uma parede de tijolos e uma porta de vidro. Fim da descrição.]

O ano era 2014. Os noticiários estavam marcados pela multidão de pacientes apontando sintomas de uma doença que diziam ser virose, posteriormente dengue e mais tarde nomeou-se Zika. Com o decorrer da proliferação, as filas passaram a ter uma nova característica; crianças recém-nascidas com a “circunferência da cabeça reduzida” e, segurando estas no colo, milhares de mulheres aflitas procurando por respostas. 

Seguindo a construção da série de colunas acerca do abandono, gostaria de abrir o artigo dessa quinzena na voz da Dra. Adriana Melo - Obstetra da maternidade pública de Campina Grande,  pioneira em identificar a relação entre Zika e Microcefalia - no documentário “Zika” dirigido por Débora Diniz e produzido pela Anis (Instituto de Bioética):

 “O nível de tensão dessas mães quando elas estão assim (aparecem mulheres gestantes sentadas aguardando atendimento) é como no corredor da morte, ou algo do tipo [...] no campo de concentração e aqui dentro elas vão ter a sentença”

Mas a sentença que se materializa não é a do estereótipo de  “gestantes vítimas de um mosquito”, mas sim a do abandono de milhares de mulheres nordestinas, pobres, negras, as quais convivem com a Síndrome Congênita do Zika Vírus nos corpos dos seus filhos.

A epidemia foi decretada como finda no ano de 2017 e com ela foram enterradas as histórias de vida que davam conteúdo para as frases impactantes - hora de caridade, hora de mulheres guerreiras e exemplo de vida - dos noticiários da época. 

Com isso, enquanto a cidade aos poucos se lembrava da epidemia como história, no sertão abriam-se novas páginas atravessadas pela ainda necessidade de combate em seu território, bem como, pela falta de assistência alimentar, à saúde, estudantil e de transporte para as cuidadoras e cuidados. 

Débora Diniz ao escrever o livro “ZIKA: do sertão nordestino à ameaça global” alega que as políticas brasileiras falaram mais do mosquito do que de gente. A autora segue na tentativa de inverter essa ótica trazendo a história de Géssica, que após ninar o filho já sem vida em seus braços, entregou no corpo de João Guilherme e a sua dor, amor e confiança, para que a Dra. Fabiana pudesse eternizá-lo na ciência, abrindo portas para os primeiros estudos acerca da Síndrome Congênita do Zika Virus. Géssica disse: “não queria ser egoísta com todas as mães do mundo sem resposta”.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

No livro vibramos com o amor de Alessandra, com a cumplicidade gerada entre Géssica e Conceição, quando, pelos atravessamentos da vida, recebe o enxoval da companheira como doação. Acompanhamos também a angústia de Marina Leite ao tentar sobreviver a uma gravidez sem esperança. 

São longas histórias, porém esquecidas e alheias a qualquer tipo de incômodo social. Apagadas diante do argumento de que a proliferação do mosquito já não existe mais. O mundo esqueceu o Zika, no entanto, ainda temos registros do nascimento de crianças acometidas pela síndrome congênita. Para além disso, cuidadoras e cuidados continuam vivenciando a tal picada do abandono em uma pandemia, na qual o acompanhamento e estimulação dessas crianças são substancialmente prejudicados. 

Diante de uma rotina desgastante, Maria e Alessandra, duas avós Alagoanas que cuidam de Erik, relatam que ele não consegue mais falar, mesmo que estas tenham praticamente se graduado em Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Terapia Ocupacional e Psicologia na faculdade da sobrevivência. Não foi suficiente para enfrentar a falta de assistência às crianças com deficiência mediante a pandemia da COVID-19.

Visto essa sucessão de abandonos e incertezas, uma conclusão: o desamparo é a própria picada do mosquito. A Síndrome Congênita do Zika Vírus não atravessa apenas a barreira placentária, nem está apenas nos rostos cansados das mulheres paraibanas, pernambucanas e alagoanas, ou na circunferência pequena do formato de cabeça das crianças, está no espelho perverso da desigualdade, a qual possui território, raça e gênero.  

As consequências mais graves do Zika na gravidez não são especificamente o nascimento de uma criança com deficiência ou a possibilidade de morte do feto, mas sim o abandono do Estado e dos homens (pais) em efeito dominó. Essas mulheres sobrevivem através da força de comunhão entre outras mulheres, as quais encaram, de fato, o corredor da morte, não exatamente para receber um diagnóstico, mas sim para driblá-la quase que sem ferramentas. 

No sertão são as mães, tias, avós, netas, irmãs e vizinhas que, em rede, aprendem juntas a enfrentar a discriminação, se protegem, cometem excessos de maternidade, se culpam, lutam por esperança, trocam informações pelos direitos assistenciais e descobrem, na ciência da comunhão, meios para desenvolvimento e estimulação dos seus filhos, os quais, em muitos casos, as ciências da saúde não conseguiram fazer, sobretudo por falta de aproximação

Estamos falando da peleja de mulheres que fazem dos seus corpos uma extensão do corpo dos seus filhos e descobrem neles o que a ciência ainda desconhece, mas que, em contrapartida, se machucam fisicamente, afetivamente e coletivamente.

O mundo esqueceu do Zika, mas a picada do abandono social segue sendo mortal. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga