Livro do ano 2021

Livro reconta fábula dos três porquinhos e o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho

A história ganha releitura juntando fato e fábula e remete a crime de Brumadinho que está prestes a completar 3 anos

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O livro Sagatrissuinorana escrito por João Luiz Guimarães e ilustrado por Nelson Cruz é recontado à moda Roseana - Nelson Cruz/ divulgação
“Pensei como as crianças estavam lidando com a tragédia em Brumadinho”, diz escritor

“O recado da terra chega quase sempre sem aviso. E o que era estória viva, urdida no sem-tempo da fábula, vira história, soterrada pela notícia.”

No livro infantil ‘Sagatrissuinorana’ escrito por João Luiz Guimarães e ilustrado por Nelson Cruz, o fato e a fábula andam juntos. Mas o que pode ser mais assustador que o lobo mau da história dos três porquinhos? Esse texto que está na contracapa do livro encerra com a frase que pode sugerir a resposta: "Às vezes, o homem pode ser o lobo do lobo”. 

A fábula clássica dos três porquinhos é recontada com a metáfora do crime do rompimento das barragens nas cidades mineiras de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). A última que completa três anos no dia 25 de janeiro. 

“Já tinha acontecido anos antes em Mariana, mas em Brumadinho o impacto foi diferente, porque dava pra ver as pessoas correndo e era algo indizível. E as imagens se repetiam na televisão, na internet e aquela lama era infinita. E aí ao escrever fiquei pensando como as crianças estavam processando aquilo que era mais assustador que o lobo. Essa lama que engole e que soterra o lobo no sentido simbólico. O lobo como esse ponto de fuga que projetamos todos os nossos medos, nossas angústias na infância das coisas que ainda não estão elaboradas”, explica o escritor João Luiz Guimarães. 

Ganhador do Prêmio Jabuti 2021 nas categorias infantil e livro do ano, a obra ilustrada se inspira na escrita de Guimarães Rosa desde o título. "Saga", como é chamado pelo próprio autor, nasceu de um exercício criativo na pós-graduação em literatura. No início João conta que achou que o texto era violento demais. 

“Eu respeitei o que estava sentindo que era a violência do fato. Como é para essas pessoas, quando começa a chover nestas cidades? Você fica pensando: será que essa barragem vai aguentar? E em Minas é uma questão muito séria mesmo. E essas grandes empresas, o dinheiro que tem envolvido, tudo isso parece uma luta muito desigual”, comenta o autor sobre o seu terceiro livro. 


Rio Paraopeba após o rompimento de barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG) em 2019 / Creative Commons

 Inspirado na escrita de Guimarães o livro brinca com as palavras, com a linguagem, com as imagens. O título apesar de parecer complicado ‘Sagatrissuinorana’  é uma referência a Sagarana, um dos livros de contos mais famosos de Guimarães Rosa. O título do livro de João e Nelson pode ser entendido como ‘A Saga dos Três Porquinhos'. 

“Peguei esse mesmo vocábulo do mesmo jeito que ele brincava com as palavras e afastei a palavra ‘Sagarana’ e coloquei suíno no meio [trissuino] que são três porquinhos. Então ficou como se fosse assim, a Saga dos Três Porquinhos. A palavra esquisita de dizer e eu gostei disso, desse estranhamento. Eu tô seguindo Guimarães porque ele não facilitava e era esse jogo, a língua era um grande brinquedo para ele”, traduz João que é roseano apaixonado. 

O livro também dialoga por meio da diagramação com o ofício do jornalista de narrar o fato e do escritor de fabular o acontecimento. O trecho lido no começo do quadro é um exemplo dessas duas camadas que dialogam no texto. 

João acompanhava o trabalho do mineiro Nelson Cruz que é reconhecido na literatura e sondou o ilustrador para participar do livro. Ele fala que da parceria nasceram dois textos: um texto imagético e um literário. 

Duas composições caminhando em paralelo e misturadas de tal forma que você não separa mais. Tem ideias que vão estar só na imagem, tem ideias que vão estar só no texto. Ambos têm sua autonomia, sua maneira de ser, seu estatuto e conversam entre si. E se você arrancar um, o outro fica capenga, e aquela obra não se sustenta mais”, comenta João.


'Sagatrissuinorana' como obra do ano pelo Jabuti coloca em evidência o livro ilustrado / Prêmio Jabuti

O mar de lama nas ilustrações aparece devagar no meio das montanhas mineiras, a cada página ela cresce no meio da paisagem e chega destruindo tudo ao redor, os porquinhos e o lobo. Ao todo foram 270 pessoas que morreram no crime de Brumadinho e seis pessoas ainda seguem desaparecidas. Ninguém foi punido. 

O processo criativo de Nelson começou quando ele ouviu as primeiras notícias do crime de Mariana e Brumadinho e como as autoridades passaram a minimizar a gravidade do fato. Nelson mora em Santa Luzia próximo de Bento Rodrigues e de Mariana e acompanhou os impactos do crime nas famílias afetadas. 

“O processo criativo não começou no momento que recebi o texto.  Começou lá atrás em 2015 [rompimento da barragem em Mariana] com a dor, a indignação e a revolta. Acho que foi um vulcão que ficou guardado em mim durante cinco anos e que surgiu em forma dessa narrativa dessas imagens", diz o autor das ilustrações . 

O Brasil possui cerca de 900 barragens mapeadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). 31 estão em estado de emergência em Minas Gerais, com três já no nível máximo de alerta.

A lama vai se aproximando dos personagens em primeiro plano ao mesmo tempo que dá para ver a beleza das montanhas de Minas Gerais  desaparecendo. Ele diz que há uma indignação permanente com essa destruição que vai acontecer mais cedo ou mais tarde. É o que conta Nelson sobre as ilustrações. 

“Quatro anos depois acontece o crime de Brumadinho. A mesma história se repete. O estado de Minas é o estado de uma riqueza mineral. Muito grande nós estamos recheados de barragens, né? E de mineração, né que vão aos poucos, né corroendo a nossa paisagem. E vou retirando aquilo que é de valor natural para a população mineira , que são as nossas montanhas. Isso foi um um trauma.  Para Minas Gerais, isso é um trauma porque ela é uma tragédia imagética.”

'Sagatrissuinorana', foi publicado pela editora independente Ôzé e é uma homenagem às vítimas das dois crimes. 

 

 

 

Edição: Douglas Matos