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“Lutar, lutar, lutar”: o filme que conta a história do Galo pela ótica da torcida

Em entrevista, diretor aborda as mudanças que o clube tem passado nas últimas décadas

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
"É um filme explicitamente parcial, feito por torcedores atleticanos, apaixonados pelo Atlético e por futebol" - Foto: Pedro Souza / Clube Atlético Mineiro

O Atlético Mineiro vive o momento mais próspero de sua história nas quatro linhas. Em menos de uma década, conquistou a maioria de seus títulos importantes; figura entre os melhores times dos últimos anos nas Américas; e está prestes a comemorar a construção de um estádio próprio, com sua simbologia e identidade.

A paixão do torcedor alvinegro e sua face popular e de massas, entretanto, é bem mais antiga. Ela remonta ao período das vacas magras, quando, em meio ao azar ou a injustiças da arbitragem e da cartolagem, o Galo não deixou de ser grande, mesmo não ganhando campeonatos importantes. Por décadas, seu principal trunfo era ter ao lado uma torcida que se orgulhava de pertencer à massa alvinegra nos bons e maus momentos.

É claro que o Atlético também é o Reinaldo, o Éder, o Luizinho, o Ronaldinho Gaúcho, mas a coisa só se configura com a torcida

O Galo, porém, não está imune ao processo de elitização que tomou conta do futebol brasileiro e afasta a imensa maioria dos torcedores, pobres, negros, trabalhadores dos estádios e dos centros de decisão sobre a vida dos clubes. Essas entidades são cada vez mais controladas por investidores, conglomerados da mídia, patrocinadores e até proprietários - no caso do clube-empresa.

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Para o cineasta Sérgio Borges, esse conflito é a própria luta de classes, que perpassa o futebol. No documentário “Lutar, lutar, lutar”, que ele dirigiu ao lado de Helvécio Marins, Sérgio se dedica a contar a história centenária do Atlético Mineiro privilegiando a experiência do torcedor. “Eu acredito que a base da história do Atlético está ao nosso favor”, afirma, em entrevista ao Brasil de Fato MG. Confira.

Brasil de Fato MG – Sérgio, qual a história desse projeto? Como ele foi pensado e conduzido?

Sérgio Borges – Quando o Atlético foi campeão da Libertadores, em 2013, eu procurava um time para fazer um documentário de outra natureza: entrar em uma instituição de futebol, com todas as suas complexidades, contradições, jogadores de classe mais baixa ganhando muito dinheiro, relações de companheirismo e de hierarquia, a relação do capitalismo. O futebol é uma coisa muito maravilhosa como espaço de encontro, diversidade, pertencimento, mas também um espaço em que todas as mazelas do capitalismo estão presentes. Porém, não encontrei muito espaço em uma instituição grande de futebol, onde há muita coisa em jogo: dinheiro, a imagem de pessoas que são conhecidas. 

Temos um filme que fale não só sobre o Atlético, mas sobre o ser humano e os altos e baixos da vida de um torcedor de futebol

Na época, o meu parceiro, o Helvécio, que é codiretor do filme, propôs fazer outro projeto com o Atlético, que dissesse um pouco sobre a história do clube e que fosse para a torcida. Menos uma análise sociológica ou crítica do futebol e mais um filme em que o próprio torcedor pudesse se reconhecer e que, ainda assim, esses próprios elementos políticos aparecessem, em razão da própria história do time.

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A partir dessa mudança de rumo, conseguimos o aval do Atlético em 2014, mesmo ano em que o time acabou sendo campeão da Copa do Brasil. Nós filmamos esses momentos e, junto das filmagens, fomos atrás da história do Atlético em fotos, vídeos, matérias de jornal, para tentar compor essa narrativa. O projeto acabou sendo muito maior do que imaginávamos e só o lançamos em 2021. Um dos motivos é que a história do clube, que é centenária, é muito grande. Encontramos cerca de 500 horas de material, afora 100 horas que gravamos de entrevistas com jogadores, torcedores, jornalistas.

No início, o Atlético era um time que qualquer pessoa podia torcer, tinha uma torcida feminina organizada, o primeiro jogador negro do futebol mineiro

É um filme explicitamente parcial, feito por torcedores atleticanos, apaixonados pelo Atlético e por futebol. Demoramos sete anos por ser uma pesquisa extensa, por querermos trabalhar com muito cuidado, mas também por quereremos levantar recursos. E, depois, veio a pandemia, que atrasou o projeto, até que, enfim, no fim do ano [de 2021], conseguimos lançar o filme.

Ao fazer um filme de torcedores para torcedores, você demarca um lugar muito interessante, pois há muitos filmes e livros sobre clubes de futebol que abordam as conquistas, os títulos, a trajetória dos atletas, os heróis dentro de campo. A experiência do torcedor como parte do clube tem um lugar privilegiado?

Exato. É claro que o Atlético também é o Reinaldo, o Éder, o Luizinho, o Ronaldinho Gaúcho, mas a coisa só se configura com a torcida. São as pessoas que fazem a diferença com sua paixão, a mobilização da torcida.

Eu tenho 46 anos, nasci depois que o Atlético foi campeão, em 1971, e convivi com esse “quase” no Brasileiro. Fomos oito vezes semifinalistas e estivemos em três, quatro finais, sem nunca ganhar. Temos histórias de injustiça e roubalheira. Então, mais importante do que ter títulos, ser atleticano era massa por conviver, ir ao Mineirão, viver a alegria da coletividade, da festa, independentemente de ser campeão ou não.

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Realmente, a maioria dos documentários de futebol no Brasil se prestam mais a celebrar as conquistas do que falar de outra coisa. No nosso filme, também celebramos as conquistas, mas também falamos dos momentos difíceis, dos momentos injustos, dos momentos de não ganhar títulos, da queda para a série B, da dificuldade, algo que forja o torcedor atleticano.

Na verdade, a história de vida de qualquer pessoa é marcada por conquistas e derrotas, momentos bons e ruins. Nós achamos que, ao não nos furtar de contar essa parte da história, temos um filme que fale não só sobre o Atlético, mas sobre o ser humano e os altos e baixos da vida de um torcedor de futebol.

A história do Galo parece ter como fio condutor essa lógica do sofrimento, sacrifício e superação, que faz com que cada pequena ou grande conquista tenha um enredo quase religioso. Mas, agora, na temporada fantástica de 2021, o time não deu chance ao azar e acabou vencendo com facilidade três campeonatos, é incontestavelmente a melhor equipe do Brasil. Isso é uma virada na história do Galo? A relação do time com a torcida vai mudar? A torcida ficará mais exigente?

Isso é uma coisa que os torcedores atleticanos se perguntam sempre. Eu não sei responder, mas eu acho que isso caminha com o mundo. Existe uma disputa de forças mais coletivistas, democráticas, e forças que são o oposto disso. Sempre falamos que a torcida do Cruzeiro só ia ao campo quando o time ganhava, que era exigente de um jeito mal-acostumado, ruim. É como se essas posições se invertessem agora. Mas, ao mesmo tempo, a base da história do Atlético não é feita só de injustiças.

Além do cinema, o filme está disponível para alugar no endereço filmedogalo.com.br, por R$ 13,92

O Galo é um time fundado quase que com a cidade. Em 1908, provavelmente, era um lugar de encontro social. Diferentemente do América, que se dizia um time da aristocracia, ou do Cruzeiro, um time da colônia de trabalhadores italianos, o Atlético era um time que qualquer pessoa podia torcer, tinha uma torcida feminina organizada, o primeiro jogador negro do futebol mineiro, os jovens que os mais velhos não queriam deixar jogar e que fundaram seu próprio time, que foi administrado por uma mulher de descendência uruguaia. Nossos grandes ídolos foram Dadá Maravilha, que viveu na rua, Reinaldo, que se machucou muito jovem, que tem uma história de sofrimento e, por sua posição política, foi muito boicotado. Posso pensar no Guará, que abandonou a carreira precocemente em um acidente, jogando futebol.

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Essa história de sofrimento, resistência e superação acompanha o Atlético. Grande parte da torcida acompanha o clube por reconhecê-lo como um grande símbolo disso. Nenhuma torcida é um só um perfil ideológico, nem todo mundo vê a história do Atlético do mesmo jeito. Mas essa história de mais de 100 anos nos diz o que o clube pode ser no futuro.

Agora, tem investidores, uma certa capitalização do futebol. Desde que a Copa do Mundo veio para o Brasil, o público que vai aos estádios é muito mais elitizado. Ainda assim, as pessoas menos privilegiadas ainda torcem, fazem suas economias para ir ao estádio. Eu, particularmente, fico feliz de ter uma equipe tão boa, mas, ao mesmo tempo, também fico com essa interrogação, isso que até preocupa o torcedor que olha por outro lado. Eu acredito que a base da história do Atlético está ao nosso favor, no sentido de não nos tornarmos uma torcida que só apoia quando o time está ganhando.

Esse processo de elitização que você mencionou atinge o futebol como um todo. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos torcedores que apoiaram o time na época das vacas magras estão sofrendo com a carestia, o desemprego, a desigualdade. O que pode ser feito para que esse torcedor não se perca, não fique separado, distante, alheio à vida do clube, como se o futebol não fosse feito para ele?

De fato, é um fenômeno global. Agora, inclusive, criam as S/As e os clubes passam a ter proprietários. A base de uma agremiação popular de futebol ou samba ou qualquer outra não faz sentido tendo um dono. Além disso, o torcedor menos privilegiado não tem conseguido ir ao estádio, o futebol se torna cada vez mais um fenômeno da televisão, há um jogo no estádio que é transmitido para todo o estado, coisa que antes quase não acontecia. De maneira análoga, como há uma crítica ao PT, que deixou de dialogar com suas bases, eu acho que quem está comandando um time deveria criar espaços de diálogo e aproximação com a torcida.

Lembro que, quando filmávamos a Copa do Brasil, em 2014, as pessoas que estavam dentro do Atlético falavam do estádio do Borussia Dortmund, que tinha uma parte mais popular, que seria algo como a antiga geral. Eles queriam que o estádio do Atlético também tivesse esse espaço, sem ser caro demais. Não sei se esse plano para a Arena continua em jogo.

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O nosso mundo tem sido isso, cada vez mais, uma dominação de menos pessoas em relação às outras pessoas na definição do destino, no cotidiano. Essa é uma tônica perigosa, que tende a ruir em algum momento porque é insustentável. Vi uma frase de alguém que disse: “nos tiraram tantas coisas, que até o nosso medo foi tirado”. Esse conflito de classes se torna inevitável. Eu não sei como isso vai acontecer nos clubes de futebol, mas tende a haver uma radicalização do confronto de maneira global, pois está cada vez mais difícil viver de maneira digna neste mundo.

Como a gente pode ver o filme?

O filme foi lançado no cinema no dia 11 de novembro e ainda está em cartaz no Cine Belas Artes. Agora, ele também fica disponível para alugar no endereço filmedogalo.com.br, por R$ 13,92, as pessoas podem ver o filme em casa por 48 horas.

Todo filme, hoje em dia, entra em plataformas. Normalmente, nos streamings, há intermediários, que ganham com os filmes, e os próprios produtores, que investiram tempo, trabalho, dinheiro, ficam reduzidos a uma porcentagem muito pequena. Resolvemos fazer de uma forma em que tenhamos menos intermediários. A gente não está no Netflix, não estamos nesses lugares, mas estamos disponíveis para o torcedor assistir por R$ 13,92. O filme também está disponível na Espn, em TV fechada.

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Estamos fazendo outros tipos de exibição, tivemos uma sessão na ocupação Carolina Maria de Jesus, em Belo Horizonte, junto com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e a Resistência Alvinegra. Estamos tentando levar o filme para grupos que não vão conseguir alugar pela internet para assistir.

Por fim, falar que eu sou torcedor atleticano, fiz esse projeto pensando na minha paixão, está sendo uma emoção indescritível. Tem o retorno que o torcedor tem dado. O filme consegue condensar esse processo histórico, centenário, a emoção que o atleticano sente com o time. É bom lembrar que, se o time ganhou tudo ano passado, para chegarmos aqui, teve toda uma história de luta, injustiças e sofrimento, até a redenção. É muito bom ser parte disso, dentro daquilo que eu sei fazer, que é contar a história na linguagem do audiovisual.

Edição: Larissa Costa