A união das culturas camponesa e caiçara é a marca da comunidade José Lutzenberger, em Antonina, no Paraná. Esse encontro cultural passou a ser celebrado com a Festa da Reforma Agrária, que ganhou a segunda edição em dezembro de 2021 - a primeira ocorreu em 2019. A atividade reuniu centenas de pessoas da região e da capital, em meio à beleza das agroflorestas, com sabor tradicional do barreado e ao ritmo do fandango caiçara.
O território é um acampamento agroflorestal do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), localizado em uma cidade histórica do litoral paranaense. Cravada no meio da Mata Atlântica desde 2003, a comunidade é um símbolo de recuperação ambiental por meio da Reforma Agrária Popular.
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"Somos famílias que temos como prática o cultivo de alimentos a partir da agrofloresta e da agroecologia. É sempre caloroso pra nós poder viver esse momento de confraternização com vocês que sempre estão com a gente nas lutas", enfatizou Sara Wandenberg, integrante da coordenação da comunidade, na abertura da festa. A atividade foi realizada pela associação da comunidade, Filhos da Terra, pelo MST e pela Associação de Cultura Popular Mandicuera.
Como parte da programação da festa, houve a inauguração de um monumento na entrada da comunidade. Entalhado em madeira pelos integrantes do MST Roberto Gaiardo e Juliana Barbosa, a obra traz as imagens de um mourão de cerca e de um facão.
“Toda a nossa luta está representada nesse momento de arrancar a cerca, arrancar o mourão, e fincar um marco do Movimento Sem Terra aqui no litoral do estado. Aqui é o primeiro acampamento agroflorestal de uso comum da terra, e resgatando toda essa cultura caiçara [...]. E o facão é o instrumento do trabalhador sem terra, indígena, caiçara, que trabalha com agrofloresta”, disse Jonas Souza, também da coordenação da comunidade, sobre o significado da obra. O plantio de árvores aos pés do monumento simbolizou o compromisso da comunidade com o reflorestamento daquele território.
Cultura de povos em harmonia com a natureza
Em quase 20 anos de trabalho coletivo e agroecológico, as famílias da comunidade garantem a harmonia entre a natureza e o avanço da Reforma Agrária Popular. Antes da chegada das cerca de 20 famílias que formam a comunidade, a área era alvo de crimes ambientais, como a degradação pela criação de búfalos e o desvio do leito do Rio Pequeno, que atravessa o território.
Com a ocupação, camponeses e camponesas iniciaram um trabalho de recuperação da Mata Atlântica, aliado à produção de alimentos a partir da agroecologia e da agrofloresta - sem utilização de agrotóxicos e com relações humanas e ambientais justas, com integração da produção de alimento com a mata nativa.
O reconhecimento público pelo reflorestamento da Mata Atlântica veio em 2017, quando a comunidade venceu o prêmio “Juliana Santilli”. A premiação confirma o papel das comunidades tradicionais e das famílias camponesas na preservação da floresta.
A luta e a prática da comunidade se aproxima da realidade vivida também pelos povos caiçaras de outras comunidades do litoral paranaense, conforme explicou mestre Aorélio Domingues, do grupo Mandicuera.
“A gente tem muito a ver com o MST porque fazemos a luta por terra e por território, principalmente. O caiçara não tem o território reconhecido e quando a gente olha uma foto de satélite, vamos ver que o caiçara está onde está a Mata Atlântica mais preservada”, enfatizou.
O mestre fandangueiro apresentou o povo caiçara como “agricultores-pescadores”, descendentes de imigrantes europeus (principalmente portugueses) e indígenas que vivem na faixa litorânea entre Paraty, no Rio de Janeiro, até a Baía da Babitonga, em Santa Catarina. A principal luta do povo caiçara é pelo reconhecimento de seus territórios tradicionais e também pelo fortalecimento das culturas próprias, como o fandango, a Bandeira do Divino e a Pesca Artesanal.
A festa na comunidade José Lutzenberger se soma ao cultivo e à multiplicação da cultura caiçara. Parte das rabecas utilizadas durante a festa foram produzidas na Associação Mandicuera, em oficinas de música feitas com adolescentes e jovens. As formações terão continuidade em 2022, inclusive com etapas realizadas na comunidade José Lutzenberger.
Para Jonas Souza, a construção do acampamento Lutzenberger é parte de um processo do trabalho humano que cuida das espécies nativas, do bioma, e ao mesmo tempo produz alimento. “É o resgate da cultura caiçara, aquele modo tradicional de fazer produção de alimento, não de mercadoria", reforçou.
Bandeira do Divino
A procissão da Bandeira do Divino marcou a abertura da festa, quando os símbolos sagrados foram levados até a casa de uma das moradoras da comunidade. A tradição tem origem por volta de 1300, em Alenquer, Portugal, e foi mantida por imigrantes do litoral paranaense, nas comunidades onde não existia a presença da igreja.
“Essa tradição tem mais de 400 anos aqui no litoral e é um dos símbolos da cultura caiçara. Trouxe essa bandeira hoje como símbolo de resistência, porque há mais de 400 anos ela se faz aqui, é a musicalidade que se faz aqui”, disse Aorélio Domingues, que é mestre capelão da Folia do Divino.
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Segundo o mestre, as bandeiras não ficam onde tem a festa, porque um é sacro e o outro é profano. Os versos da romaria sempre são feitos na hora, conforme o contexto: “É a forma que o capelão e o mestre folião tem de fazer a saudação para quem está assistindo”.
Fandango Caiçara
Os mesmos instrumentos tocados ao longo da procissão - viola, rabeca e adufe - também deram o ritmo para o fandango caiçara. Quem garantiu o baile até o amanhecer foi o grupo Mandicuera, vindo direto da Ilha de Valadares, de Paranaguá.
Para animar mais de 10 horas de música ao vivo, o baile ganhou reforço de artistas do grupo Família Domingues, do Coletivo Ubá, e do grupo Mestre Eugênio - formado por crianças e adolescentes, parentes de fandangueiros.
"Amanhece” é a palavra de ordem do fandango, cantada e colocada em prática no baile. "O baile de fandango tem que amanhecer o dia para ele resistir firme e forte como cultura. Quando a gente fala 'amanhece', não é só para o baile amanhecer, é para vocês estarem aqui fortalecidos, permanecido e resistentes", explicou Domingues.
Barreado
Além da religiosidade e da música, a cultura caiçara também se expressou por meio da culinária. Cerca de 100 quilos de carne serviram de matéria-prima para a preparação do barreado, prato típico do litoral paranaense, servido no almoço da festa.
Luzinete de Souza Oliveira é uma das moradoras da comunidade que prepararam o prato simples, porém muito saboroso, com ela mesma resumiu. “É difícil você ver um antoninense aqui do Litoral, ou alguém de Guaraqueçaba ou de Morretes, que não come barreado. A gente escolheu esse prato porque significa a nossa raiz. Já vem desde os Jesuítas que andavam por aqui e cozinhavam a carne na panela de barro”, explicou.
Além da panela de barro, o tempo de cozimento é o principal diferencial no preparo. São pelo menos 12 horas no fogão a lenha. A receita leva carne de músculo, patinho ou acém (sem osso ou gorduras), tomate e temperos a gosto, como cominho e açafrão. É opcional incluir bacon.
Mulheres da comunidade também produziram pastéis recheados com palmito pupunha, colhido das agroflorestas do acampamento.
Resistência popular no campo e na cidade
Ao longo da pandemia da covid-19 e da crise econômica e social prolongada pela qual o Brasil passa, a comunidade José Lutzenberger também se somou às ações solidárias do MST, com partilha de alimentos agroecológicos.
Roberto Baggio, integrante da coordenação nacional do MST, frisou que isso ocorreu apesar de se tratar de camponeses que não recebem qualquer apoio do poder público e que ainda lutam para permanecer no território.
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“Nós não podemos ter dúvida nenhuma de que os trabalhadores do campo e da cidade podem e devem ter como horizonte erguer um projeto para o conjunto da sociedade, para a maioria, para a gente se libertar de vez da minoria que nos oprime”, afirmou Baggio.
Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos e presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, enfatizou a urgência de medidas de combate à fome e de incentivo a quem garante a produção de alimentos.
“Nós estamos vivendo um momento muito difícil no nosso país, com graves violações de direitos humanos. É a submissão de 20 milhões de pessoas à fome extrema, de não ter acesso ao direito à alimentação. Avançar num processo de conquista da reforma agrária, da regularização fundiária para quilombolas, comunidades tradicionais, que de fato produzem o alimento para a população brasileira, é fundamental”, disse.
Quem também visitou a comunidade neste dia foi Maria Aparecida Blanco de Lima, desembargadora do TJ-PR, integrante do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) Fundiário. "A tentativa é sempre de buscar soluções, resultados pacíficos para os casos [...]. É uma luta quase que desigual, mas a gente acredita nos direitos humanos e que possamos diminuir essa situação de desigualdade que vivemos”, garantiu.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Rebeca Cavalcante e Lia Bianchini