A proposta de Orçamento da União prevê o valor de R$ 1.210 para o salário mínimo a partir de janeiro de 2022. O valor inclui um reajuste de pouco mais de 10%, baseado no índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), a inflação oficial estimada para todo este ano. Acontece que o INPC só será conhecido em 11 de janeiro, o que pode implicar em algum pequeno desvio decimal entre o previsto e o consolidado. O que importa , porém, é que, pelo terceiro ano consecutivo, o salário mínimo não terá aumento real. E como as previsões de inflação do governo não têm batido com a realidade, o piso nacional corre o risco de ficar até abaixo da inflação.
Para se ter ideia da importância desse mecanismo de recomposição da renda, é preciso saber o que a lei define como salário mínimo. A Constituição Federal de 1988, no capítulo dos Direitos Sociais, define que o salário mínimo deve cobrir todas as necessidades do trabalhador e de sua família, deve ser unificado em todo o território nacional e ser reajustado periodicamente para garantir seu poder aquisitivo. (Para conhecer melhor essa história visite a página do Dieese.)
Custa a subir, cai rapidamente
Mas, entre os anos 1970 e 1990, a inflação devorou o poder de compra do salário mínimo, dificultando que esse papel constitucional fosse cumprido. Para que isso um dia venha a se concretizar, é preciso promover gradualmente, a cada ano, aumentos reais (acima da inflação). Era o que vinha ocorrendo desde 2003 (primeiro ano do governo Lula) até 2019 (primeiro ano do governo Bolsonaro).
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Nesse período, uma política de valorização do salário mínimo conseguiu assegurar ganhos de 78% acima da inflação. De acordo com o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor técnico do Dieese, isso representou a entrada de R$ 250 bilhões ao ano na economia brasileira. Ou seja: esse montante entrava no bolso dos trabalhadores, e se transformava em consumo das famílias. Por sua vez, esses recursos abasteciam o comércio, mantinham as encomendas da indústria e do agronegócio – todos criavam empregos – e faziam a roda da economia girar.
Por exemplo, em janeiro de 2003, uma pessoa que recebia o piso nacional precisava trabalhar sete meses para alcançar o valor que a Constituição considerava necessário para um mês. Em janeiro de 2015, último ano em que a lei de valorização do salário mínimo foi renovada até 2019, esse esforço havia caído para quatro meses.
Enfim, o Brasil caminhava, ainda que lentamente, para fazer valer a lei. Mas, com o fim da política de valorização, voltou a andar para trás. Atualmente, o salário mínimo necessário é quase seis vezes maior do que o valor realmente pago.
Fica para o próximo
Segundo Clemente Ganz Lúcio, esse retrocesso no salário mínimo é um mau presságio para a economia do país em 2022. “A falta de valorização é uma ausência importante na economia. Isso explica em parte a queda da massa salarial. Nós deixamos de ter essa inversão de ânimo econômico e poder de compra da base salarial”, afirma.
Ganz Lúcio, que é assessor do Fórum das Centrais Sindicais, informa que a revisão dessa política para o salário mínimo é um dos principais pontos da agenda sindical no início de 2022. “Não é por outro motivo que a agenda das centrais sindicais, a ser apresentada em maio aos candidatos a cargos eletivos nas eleições do próximo ano, defenderá a retomada de uma política de valorização do salário mínimo”, disse em entrevista a Glauco Faria na Rádio Brasil Atual.
A queda na renda nacional, além de um drama para quem vê o dinheiro ficar cada mês mais curto, é um dos principais entraves para a retomada do crescimento econômico. Basta se observar a relação entre os indicadores de emprego e renda divulgados ontem (28) pelo IBGE.
Renda mais baixa desde 2012
“Para se ter ideia, vejamos esses últimos 12 meses (de outubro de 2020 e deste ano). Apesar dos 10 mil postos de trabalho fechados no ano passado, da pandemia, de lá cá 8,7 milhões foram repostos. É uma quantidade expressiva, mas, por incrível que pareça, esse contingente a mais não foi capaz de elevar a massa salarial, a soma de todos os salários na economia.” Clemente se refere aos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a Pnad Contínua, que revelou ter ocorrido queda de 11,1% na renda média dos ocupados, embora a taxa de desemprego tenha caído alguns pontos. “Portanto, mesmo com 8,7 milhões a mais trabalhando, a massa salarial caiu. Isso significa que houve um brutal arrocho, que está refletido na menor média de remuneração desde 2012.”
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De acordo com o sociólogo, esses resultados da Pnad mostram uma pequena retomada de postos de trabalho fechados durante a crise agravada pela pandemia da covid-19. “Mas ainda estamos em patamares inferiores à situação de antes da crise. Ou seja, essa dinâmica de reposição não é positiva nem virtuosa. Predomina na recuperação o surgimento de postos de trabalho precários, sem carteira e autônomos sem CNPJ nem proteção social”, explica. “A criação de postos de trabalho com carteira assinada é tímida.”
Além disso, boa parte das vagas criadas nesse período, sobretudo nos setores de comércio e serviços, tendem a fechar novamente em janeiro. Assim, os indicadores dos próximos meses devem refletir a redução dessas ocupações após o ligeiro aquecimento sazonal de final de ano.
Maus empregos, economia travada
“E esse mundo do trabalho mais precarizado está refletido na renda. Estamos com o menor nível salarial desde que essa pesquisa começou, justamente por causa da predominância desse tipo de ocupação que vem surgindo. O que se observa são postos de trabalho frágeis, com remuneração muito baixa. E, além disso, corroídas por uma inflação mais elevada”, observa o sociólogo.
A massa salarial é importante de ser observada porque representa o poder de compra da economia. “Mais de 60% da nossa capacidade de recuperação e sustentação econômica vem da renda das famílias”, afirma Ganz Lúcio. Ou seja, se a economia coloca pessoas no mercado e não é capaz de aumentar a capacidade de consumo das famílias, patina. “Não há como sustentar um crescimento econômico. E isso é o que está indicado para 2022, um mundo do trabalho muito precário, com baixa capacidade de geração de empregos. E continuando a conviver com esses números: quase 13 milhões de desempregados, quase 30 milhões de subocupados, fora o desalento ou a informalidade.”
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O ex-diretor do Dieese reforça que as empresas produzem quando observam que a economia aumenta os postos de trabalho, os salários e, portanto, o poder de consumo de toda a sociedade. “Desse modo, as empresas produzem para uma sociedade que tem capacidade de absorver novas demandas. Se isso não acontece, a economia não tem crescimento mais duradouro, porque dependerá quase que exclusivamente de sua capacidade de exportação. Não aumentando o poder de compra de toda a sociedade não se anima o setor produtivo”, ele explica. Por isso, não é nada boa a perspectiva de enfrentamento desses problemas para 2022.