Para um turista que venha pela primeira vez à cidade de São Paulo, descobrir os traços de uma presença negra por aqui é praticamente impossível.
Monumentos? “Aqui na cidade de São Paulo consegui identificar apenas quatro, até a conclusão de minha pesquisa, em fevereiro de 2021”, conta ao Jornal da USP a turismóloga Denise dos Santos Rodrigues, autora do estudo de mestrado Cidade em preto e branco: turismo, memória e as narrativas reivindicadas da São Paulo Negra, desenvolvido na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
Os monumentos a que Denise se refere são os de Zumbi dos Palmares, que fica na Praça Antonio Prado; Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira, arquiteto negro escravizado no século 18), localizado na Praça Clóvis Beviláqua; estátua de Mãe Preta, no Largo do Paissandu, junto à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; e Luiz Gama, que fica no Largo do Arouche. Todos estão localizados nas áreas centrais da capital paulista.
Afroturismo é um conjunto de práticas de resgate, valorização, preservação, reconexão com a identidade e história por meio dos bens culturais, materiais e imateriais, as quais têm os sujeitos negros como protagonistas.
Sob a orientação do professor Luiz Gonzaga Godoi Trigo, Denise analisou em sua pesquisa as iniciativas de afroturismo que resistem, recontam e reivindicam uma São Paulo Negra. De acordo com a pesquisadora, apesar de existir nos órgãos oficiais de turismo um roteiro específico de temática afro, o documento encontra-se desatualizado, incompleto e carece de informações que versem sobre a negritude na formação da sociedade paulistana e brasileira.
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A pesquisa analisou os distritos da Sé, República, Liberdade e Bela Vista, locais que remontam às origens e expansão de São Paulo. Ainda hoje, esses locais são considerados pontos turísticos importantes e são territórios fortemente marcados pela história negra na capital paulista.
“Delimitei pelo centro porque São Paulo nasceu no Pátio do Colégio e, posteriormente, selecionei os outros distritos. A Liberdade, por exemplo, originalmente era um bairro de forte presença negra e há marcas que ainda resistem naquele local, como a Capela dos Aflitos”, destaca a pesquisadora.
Invisibilização
Ao mesmo tempo em que o turismo reforça uma narrativa de apagamentos por meio de políticas oficiais que destacam a presença imigrante e bandeirante, essa narrativa é confrontada por meio de iniciativas de afroturismo. Denise explica que o “afroturismo é um conjunto de práticas de resgate, valorização, preservação, reconexão com a identidade e história por meio dos bens culturais, materiais e imateriais, as quais têm os sujeitos negros como protagonistas.”
A pesquisadora evidencia em seu estudo como o racismo permeou a sociedade e trouxe consigo uma “perspectiva eugenista”, e como a política de branqueamento da população e da cultura negra ocorre na cidade de São Paulo. “É quando a população imigrante é trazida com vários incentivos e a população negra fica desamparada no período pós-abolição”, descreve a turismóloga ao Jornal da USP. “Até mesmo lugares da cidade que tinham uma marcante presença negra foram substituídos e esquecidos com as políticas de modernização da cidade.”
Denise cita como exemplo a demolição da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, construída entre os anos de 1711 e 1725 na atual Praça Antonio Prado. Segundo ela, a igreja foi desapropriada e demolida em 1903, no início do século 20, para dar espaço à “modernização”. Posteriormente, em 1906, passou a funcionar no Largo do Paissandu”, conta. Mas, até mesmo para o funcionamento da igreja no novo endereço, conforme constam em atas da administração pública, houve conflitos. “Os moradores locais não queriam, pois a igreja concentrava negros com suas rezas, festas e quituteiras”, conta Denise.
Entre as justificativas da administração pública para a mudança de endereço estava a de que o Largo do Paissandu iria ajudar a repovoar o local. “Aquele endereço ainda não era devidamente estruturado à época”, destaca a pesquisadora.
Apagamento
Além das iniciativas que buscavam “invisibilizar” a presença negra, existiram e existem ações que favorecem um “apagamento”. De acordo com a pesquisadora, os encartes turísticos oficiais, até hoje, pouco retratam os pontos da cidade onde houve forte presença negra. “Passamos por lugares turísticos que não retratam que ali teriam sido locais de presença negra. Não há informações!”, lamenta a pesquisadora.
Para realizar seu estudo, Denise fez um recorte histórico do século 19, desde a lei de proibição do tráfico negreiro. Ela também comparou mapas – oito ao todo – feitos pela administração pública em homenagem ao quarto centenário da cidade de São Paulo. As plantas publicadas no livro São Paulo antigo, plantas da cidade, de 1954, mostravam o crescimento e expansão da cidade e já ocultavam a maioria dos lugares de presença negra.
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Um dos principais questionamentos de Denise é a ausência de informações culturais negras nos roteiros turísticos da cidade. Afinal, segundo a pesquisadora, São Paulo foi uma cidade escravista. “A Liberdade, por exemplo, é pouco conhecida historicamente como um local habitado por negros”, destaca.
E os problemas com as informações da administração municipal se mantêm até os dias atuais, segundo a pesquisadora. Ela cita como exemplo um roteiro temático afro de 2012, elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Turismo e pela SPTuris. “Mesmo nesse documento há problemas de informações e desvinculação da história do negro com a cidade”, adverte, destacando que em outros encartes turísticos oficiais os lugares de presença e memória negra quase não são citados, a única exceção é o Museu Afro Brasil.
A pesquisadora analisou, ao todo, três guias turísticos: O Roteiro Afro, “exclusivo” sobre cultura negra na cidade, que está incompleto, carece de informações que o vinculem à população negra e com a história da cidade; o Guia da Cidade; e o Mapa Geral. “Esses dois últimos só citam o Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, em uma pequena parte, enquanto em outros momentos eles destacam a Liberdade como bairro típico japonês ou o Bixiga, como italiano”, descreve Denise.
Além dos guias turísticos, Denise selecionou seis locais da cidade em que havia forte presença negra: a Forca, que ficava no bairro da Liberdade; o Cemitério e a Capela dos Aflitos (de 1775 e 1779, respectivamente); o Pelourinho, próximo onde hoje é o Fórum João Mendes; a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; e o Obelisco dos Piques, ao lado da atual estação do Metrô Anhangabaú.
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“A Forca, por exemplo, teria de ter visibilidade nos mapas da época. O local, onde hoje é a estação Liberdade do Metrô, somente é representado em uma das oito plantas e o que há de informação, atualmente, é uma pequena placa do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) que muitos sequer percebem”, diz a pesquisadora.
Já no Cemitério e na Capela dos Aflitos, que também ficam na Liberdade, eram sepultados os que eram enforcados, como os desertores do exército, indígenas e, inclusive, escravizados. Ainda é possível ver traços da presença negra, mas a Capela não consta no roteiro afroturístico oficial da cidade.
“No Pelourinho, próximo ao Fórum João Mendes, há somente uma pequena placa, do tamanho de um prato, que lembra que ali houve a presença negra”, conta Denise. Com relação à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a pesquisadora conta que, no ano de 2016, onde funcionou a primeira sede da igreja, foi inaugurada uma estátua de Zumbi dos Palmares.
Denise conta que o Obelisco dos Piques não foi erguido com o intuito de relembrar a presença negra. “Algumas pesquisas indicam que ali era um mercado de escravizados. Não se sabe exatamente por que foi erguido, mas aquele espaço, além de um mercado de pessoas negras, era onde os negros iam buscar água”, conta.
Roteiros afros
Como sugestões à ausência de informações sobre a presença negra na cidade, o estudo de Denise sugere iniciativas que deem protagonismo à população negra.
“A administração pública poderia elaborar, por exemplo, roteiros e city tours feitos pela própria população negra. Afinal, o que há de roteiro atualmente está incompleto”, lamenta.
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Segundo a pesquisadora, há iniciativas que buscam soluções ao problema encontrado. Dentre algumas, ela destaca as empreendidas por organizações e coletivos negros, como a Caminhada São Paulo Negra – elaborada pelo Guia Negro; o Itinerário da Experiência Negra, do coletivo Crônicas Urbanas, que traz uma perspectiva histórica; Volta Negra, do coletivo Cartografia Negra; e o projeto Sampa Negra, com vários roteiros que reforçam a participação e a presença afro-paulistana.
“Há ainda o Instituto Bixiga, com os Rolês SP, que faz roteiros negros pela cidade de São Paulo”, lembra.
Além da consulta de documentos, Denise também entrevistou pessoas ligadas às iniciativas de afroturismo, ativistas dos movimentos negros e culturais que atuam na luta pela preservação da memória negra na cidade.
Iniciativas recentes e positivas
Apesar das evidências de que houve historicamente um “apagamento” das memórias negras da cidade, Denise destaca as recentes iniciativas positivas da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo.
No início deste ano de 2021, a administração municipal aprovou a construção de estátuas que homenageiam personalidades negras da cidade de São Paulo. Ao todo, serão cinco monumentos. No dia 15 de dezembro, no bairro da Penha, na zona leste, foi inaugurada a estátua do cantor Itamar Assumpção.
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De acordo com informações que constam no site da secretaria, está prevista para 2022 a instalação de mais quatro estátuas em outros pontos da cidade. A primeira delas, dedicada à escritora Carolina Maria de Jesus, será colocada em Parelheiros; a segunda, do cantor e compositor Geraldo Filme, terá lugar no bairro da Barra Funda, na zona oeste. O atleta Adhemar Ferreira da Silva será o destaque da Avenida Braz Leme, em Santana, na zona norte. E a peça que reverencia a sambista e ativista Deolinda Madre ficará na Praça da Liberdade, no Centro.