Beatriz Santos da Silva, de 21 anos, hoje está dormindo na casa de conhecidos. Seus pais, em uma construção com um colchão que ficou encharcado pela água da enchente que atingiu Jucuruçu, a 800 quilômetros de Salvador, no sul da Bahia. O dinheiro que a família havia guardado ao longo de anos foi investido na pequena casa que hoje está soterrada.
O município foi um dos mais devastados pelas enchentes causadas pelas chuvas da madrugada do dia 8 deste mês, registrando o “colapso do sistema viário, inundações, grande número de desabrigados, desmoronamento de moradias e alertas de risco”, conforme informou a própria prefeitura.
Segundo o último balanço da Superintendência de Proteção e Defesa Civil do Estado da Bahia (Sudec), divulgado nesta segunda-feira (14), 11 pessoas morreram desde o início das tempestades, no começo de novembro, 267 ficaram feridas e 6.371 desabrigados e 15.199 desalojados em todo estado. No total, 220.297 pessoas foram impactadas de alguma maneira, e 51 municípios estão em situação de emergência.
Para Beatriz, o trauma é muito grande. A madrugada foi aterrorizante, com pessoas pedindo socorro. “No momento em que aconteceu foi tudo muito rápido, muita enchente. Quando eu acordei, a água já estava no meu quarto todo. Fui eu que acordei os meus pais que estavam dormindo na frente. Quando eles abriram a porta para me ajudar a sair do quarto, a água invadiu toda a minha casa e não deu tempo de salvar nada”, afirma a jovem.
O único lugar em que a família poderia se abrigar era a casa do avô de Beatriz, mas esta também foi destruída pelas enchentes. “A única casa que a gente tinha para ir era a do meu avô, mas também foi atingida. O povo que tirou ele de lá. E eu perdi a minha. Não tem para onde ir. É dormir na casa dos outros, porque o dinheiro que meus pais tinham, eles investiram na casa que caiu”, afirma Beatriz, que relembra a cama box e a televisão que seu pai sonhou em comprar, mas que foram levadas pela enchente.
“Minha mãe conseguiu pegar um colchão todo molhado, todo molhado mesmo, e eles estão dormindo nesse colchão. Não tinha colchão para mim, então eu estou dormindo na casa dos outros”, afirma.
Pior enchente em décadas
Reinaldo Rodrigues Salomão, de 58 anos, que nasceu e se criou em Jucuruçu, afirma que uma enchente semelhante à atual atingiu o município, em 1968. Ainda assim, para ele, nada se compara à tragédia atual.
Sua nora, Gabriela Ferreira Neres, de 36 anos, está hospedada na casa de uma cunhada, junto com seu filho de sete anos, o marido e o sogro. Tanto a casa de Reinaldo quanto a de Gabriela está inabitável. “A minha casa não caiu, mas a casa da vizinha do lado caiu e os entulhos estão encostados na parede da minha casa, então corre sério risco de desabar. Mas da minha casa eu fiquei vendo apenas o teto”, afirma Neres.
Infelizmente, ela conseguiu retirar poucas coisas de dentro da casa. “O fato de a minha casa ser na ponta da rua, demorou um pouco até a água chegar na minha casa. Então eu e meu esposo fomos ajudar os seus amigos quem moram próximo do rio [do Prado] que já estava alagando as casas. E aí quando eu percebi já foi tarde, a água já estava dentro da minha casa eu consegui salvar pouca coisa”, relembra. “Eu tenho 36 anos e nunca vi uma enchente dessa. Nasci e me criei aqui e nunca tinha visto.”
Município segue praticamente isolado
Assim como o município próximo de Itamaraju, Jucuruçu segue praticamente isolada, mesmo após uma semana da enchente. Segundo o prefeito Arivaldo Almeida Costa (PSDB), apenas duas retroescavadeiras trabalham para desobstruir os acessos, uma do município e outra de um consórcio da região. “Só tem duas máquinas, sendo uma da prefeitura, parece piada, mas é isso que nós temos”, disse ao Bahia Notícias. No dia da enchente, o prefeito decretou estado de calamidade pública, que segue vigente até o momento.
João Paulo Fagundes de Souza, de 39 anos, técnico de informática, que hoje abriga a mãe e dois irmãos que perderam a casa, afirma que, como o município segue isolado, os próprios moradores estão se ajudando. “Ainda bem que as pessoas de Jucuruçu são bastante solidárias. Mesmo aquelas que perderam tudo estavam ajudando.”
“A gente precisa de doação, porque como a enchente levou tudo, a gente não tem condição financeira de recuperar tudo. Foi muita coisa que foi levada. A gente precisa de ajuda, não só a minha mãe, mas todos que perderam suas coisas. Eu vejo pessoas que tinham alguma coisinha, hoje não têm nada, nada. Pessoas que batalharam a vida inteira para conseguir as coisas e hoje estão morando nos alojamentos”, afirma.
Em suas palavras, a enchente deixou um rastro de destruição. João conseguiu sair de Jucuruçu e ir até o município Itamaraju. Lá, ele conta, o cenário é o mesmo. “Nem acreditei quando eu entrei lá. É assim, a gente olha os lugares, os estabelecimentos, as casas, e está tudo destruído, tudo destruído. O pessoal não conseguiu recuperar nada”, afirma.
Em Jucuruçu, a casa de sua mãe, Hercília Pereira de Souza Fagundes, de 75 anos, ficou totalmente destruída. “Ela só conseguiu sair com a roupa do corpo. Quando a gente estava lá tentando resgatar alguma coisa, a água foi subindo e subindo e aí a gente precisou sair, porque senão ia tomar choque.”
Enchente não foi puramente natural
A chuva em excesso foi o suficiente para inundar as cidades como fez? Para Diosmar Filho, geógrafo e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF), a explicação é mais complexa, e a proporção das enchentes é provocada pelas mudanças da geografia local.
O pesquisador explica que as regiões do sul da Bahia e do norte de Minas Gerais foram tomadas nos últimos 35 anos por um processo de desmatamento da Mata Atlântica e do Cerrado, impulsionado por uma política de reflorestamento com monocultura de eucalipto. “Se você pegar a bacia hidrográfica da região, você vai ver que está toda cortada em topo de morro por monocultura de eucalipto”, afirma.
Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), os topos de morros são áreas de proteção permanente (APPs), de acordo com o que estabelece o código florestal do país, uma vez que a preservação desses espaços garante o funcionamento do ecossistema local.
::Enchentes não são “puramente” naturais, explicam pesquisadores::
Desmatados e invadidos pela monocultura, os topos de morros não servem mais como verdadeiras caixas d’água, ou seja, não conseguem mais absorver as águas das chuvas. Nesse sentido, a água, que era para ficar retida naquele solo, escoa para os vales, levando sedimentos e resíduos para os rios. Sem a mata ciliar, por sua vez, os rios passam por um processo de assoreamento, fazendo com que as inundações sejam mais recorrentes.
“A chuva não tem pra onde escoar. Ela está batendo na terra diretamente. Ela não tem as matas ciliares dos rios para que o leito do rio não seja assoreado. Há então um rompimento de barramento”, explica Filho. “A tragédia se torna natural porque foi a água. Mas, nesse processo, a tragédia tem um componente humano, que é uma política que foi feita nos últimos anos para o extremo Sul virar uma indústria de monocultura.”
Diosmar Filho afirma que as populações mais atingidas são em sua maioria das mais vulnerabilizadas, o que reforça a necessidade de incluir o racismo ambiental quando se fala de mudanças climáticas.
::Afinal, o que é racismo ambiental?::
“Se a gente faz um recorte, a população mais atingida foram comunidades de maioria de pessoas negras ou também de pessoas indígenas que estão próximo às cidades. Mas porque essas pessoas estão morando em áreas mais vulneráveis, como encostas de morros e beirando os rios? Na verdade, a terra está grilada pela monocultura. Então não tem terra para morar em lugares de segurança”, afirma.
“A questão é que resta para essas pessoas morar em áreas de insegurança, porque as áreas de melhor segurança estão tomadas pela monocultura, pela indústria de produção de celulose.”
Prefeitura de Jucuruçu
O Brasil de Fato entrou em contato com a Prefeitura de Jucuruçu para saber quais medidas de auxílio à população estão sendo tomadas. Até a publicação desta reportagem, no entanto, não houve uma resposta. O espaço continua aberto para posicionamentos.
Enchentes no Norte de Minas Gerais
As enchentes também atingiram o norte de Minas Gerais, nos Vales do Jequitinhonha, do Mucuri e do Rio Doce. Segundo informação da Defesa Civil do estado desta terça-feira (14), são 58 municípios afetados pelas chuvas, todos em situação de emergência. O último balanço do órgão (12) aponta para cinco mortes, 9.565 pessoas desalojadas e 1.979, desabrigadas no estado.
Na última sexta-feira (10), o governador Romeu Zema (Partido Novo) esteve em algumas áreas afetadas pelas enchentes e anunciou algumas medidas de apoio, como o envio de cestas básicas e colchões.
Edição: Anelize Moreira