O dia 19 de outubro seria mais um dia normal na vida de uma professora de Geografia da Escola Estadual Bonifácio Camargo Gomes, de Bonito (MS), se uma aula dada sobre problemas ambientais não tivesse sido gravada por uma aluna que se sentiu ofendida pelo conteúdo.
No dia seguinte à classe que deu para uma turma do nono ano, a professora, que pediu para não ter seu nome identificado por conta do clima de hostilidade, foi chamada pela direção da escola e informada que sua apresentação havia sido gravada por uma aluna. Como se não bastasse, o pai da estudante havia denunciado a docente ao prefeito da cidade, Josmail Rodrigues (PSB), que, por meio da Secretaria de Educação do município, teria procurado a escola para pedir explicações sobre o conteúdo dado em sala.
O pai da estudante teria dito que se sentiu prejudicado e que a professora “menosprezou o agronegócio”. Ele também teria mencionado o fato de a educadora ser casada com um indígena, a quem mencionou como “cacique”.
Entre o material apresentado pela educadora, estava a matéria “Os números mostram: agronegócio recebe muitos recursos e contribui pouco para o país”, publicada pelo Joio em 7 de outubro.
Acusada de “fazer militância nas escolas”
Além da reclamação feita na prefeitura, houve uma postagem em uma página sobre a cidade na rede social Instagram que dizia: “tem prof geografia fazendo militância nas escolas, falando mal das empresas dak [daqui] e agronegócio”.
Uma semana depois, no dia 26, em aula para a mesma turma, a professora solicitou por duas vezes que os alunos guardassem os celulares. Na terceira, dirigiu-se à aluna que gravara a aula na semana anterior, mas a garota saiu da sala sem autorização. Quando a aula terminou, a professora foi informada que a Polícia Militar foi à escola a pedido da família da estudante, sob a alegação de que a professora teria “coagido” a aluna. A ligação para a PM teria ocorrido por orientação do vice-prefeito do município, Juca Ygarapé. Um dos policiais militares teria participado de uma reunião na escola, junto com a direção e a família da estudante.
“É uma interferência muito grande na autonomia do professor em sala de aula”, afirma a docente, que nasceu e cresceu em Bonito e leciona nas turmas de sexto ao nono ano na Camargo Gomes. Sobre a menção por parte do pai da aluna ao fato de seu companheiro ser indígena, ela afirma que houve “racismo, discriminação e aversão aos povos indígenas e suas culturas”.
Censura e coerção
Na avaliação de Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o caso é “um misto de censura, coerção à liberdade de cátedra e da garantia plena do direito à uma educação crítica”. E, segundo ela, “verificamos o uso do Estado para esse tipo de censura e de avanço do interesse privado sobre o público, quando utilizam a Secretaria de Educação como canal para chegar à pressão na escola, junto à professora”.
O episódio é semelhante a outros ocorridos em diversos estados do país, como o de uma professora da Bahia que foi intimada pela polícia após uma aluna denunciar “conteúdo esquerdista”. Para Pellanda, a situação é resultante “dos avanços do conservadorismo no país e, pior, da legitimação da violência por parte do governo federal e de outros governos subnacionais aliados”.
“É uma situação que tem sido repetitiva em várias esferas e a educação está no centro dos ataques, já que a educação é apropriação de cultura e a reforma que este governo pretende é enraizar uma cultura de opressão, de desigualdade, de conservadorismo”, avalia.
Para ela, o episódio envolvendo a professora de Bonito precisa ser levado à Corregedoria da PM e também a júdice, “já que é um caso que precisa ser analisado quanto ao autoritarismo, intimidação, intervenção em um espaço e ação pedagógica e de defesa de interesse privado. Ainda, é necessário que a professora seja colocada em uma situação de proteção contra potenciais escaladas de ameaças e violências contra ela”.
Assunto polêmico
A professora pediu apoio do Sindicato Municipal dos Trabalhadores em Educação (Simted) de Bonito e da Federação dos Trabalhadores em Educação do Mato Grosso do Sul (FETEMS). A reportagem procurou os sindicatos para saber como se posicionam em relação ao pedido de ajuda.
A presidente do Simted, Maria do Carmo Drumond, disse: “Temos encaminhamento que esses assuntos são tratados pela nossa federação. É um assunto polêmico, que envolve uma questão política, de conjuntura. Então nossa decisão é de que quem vai falar [com a reportagem] é o presidente [da FETEMS]”.
Procuramos, então, a FETEMS. O presidente da Federação, professor Jaime Teixeira, disse que no dia 15 será lançada uma moção de repúdio ao “setor organizado que segue defendendo a lei da mordaça”, no Mato Grosso do Sul, disse, referindo-se ao projeto “Escola sem Partido”, que defende a ideia de um “ensino neutro”. Segundo Teixeira, o caso da professora de Bonito não é o único. “Houve mais dois casos”, contou. “Queremos uma escola laica, democrática. E esses casos também demonstram machismo”, afirma ele, que disse que a federação está à disposição para dar apoio jurídico à professora.
A reportagem ligou algumas vezes para a escola e chegou a falar duas vezes por telefone com a diretora-adjunta da Escola Estadual Bonifácio Camargo Gomes, Rosemere Pereira de S. Lima, que disse que não poderia atender à solicitação de entrevista por estar muito ocupada.
A reportagem também procurou o prefeito Josmail Rodrigues, que não se pronunciou até o fechamento da matéria.