Emendas de relator

Orçamento secreto reacende debate sobre verbas públicas para base governista no Congresso

Falta de transparência em relação às chamadas emendas de relator será analisada pelo STF

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STF e Congresso Nacional vivem embate sobre legalidade das "emendas de relator" - Agência Câmara

O uso que os parlamentares brasileiros fazem de verbas públicas voltou a despertar a atenção quase duas décadas depois de um dos mais emblemáticos casos de corrupção política do país, a CPI dos Anões do Orçamento, em 1993.

Naquela ocasião, ainda no início do processo de redemocratização, descobriu-se que deputados desviavam dinheiro para obras superfaturadas por meio das chamadas emendas parlamentares.

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Hoje, a falta de transparência em relação ao uso de emendas, num orçamento cada vez mais ínfimo para os investimentos e políticas públicas bem planejadas, volta a gerar desconforto e será objeto de análise do Supremo Tribunal Federal (STF).

Diferentemente da década de 90, o que suscita dúvidas, agora, são as chamadas emendas de relator, o que passou a ser chamado de orçamento secreto pela imprensa brasileira.

As maneiras encontradas pelos parlamentares para ter o controle de fatia relevante das verbas federais e beneficiar redutos e projetos eleitorais próprios mudaram ao longo do tempo, mas alguns questionamentos centrais permanecem: a que e a quem serve o orçamento e como a pulverização de recursos da União fragiliza a construção de projetos de real interesse público?

Além disso, o que está por trás deste debate é a forma como o Executivo destina verbas para cooptar sua base aliada no Congresso.

Joia da coroa para parlamentares

Para entender por que as emendas de relator se tornaram a joia da coroa para deputados e senadores, é preciso resgatar mudanças na Constituição que foram feitas pelo Congresso nos últimos anos.

"Sempre existiu emenda de relator-geral do orçamento. O que acontece é que, de uns tempos pra cá, elas ganharam importância. A questão é que essa forma de emendar o orçamento é pouco transparente", afirma o economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) e especialista em finanças públicas.   

"A Constituição, no seu artigo 166, que trata do orçamento, diz que as emendas podem ser feitas com a anulação de uma despesa – então você anula uma despesa e pode colocar outra no lugar­ – ou corrigindo erros ou omissões. O problema é que essa questão de erros e omissões é muito abrangente desde a forma como vem sendo interpretada desde 1989, que foi o primeiro orçamento realizado depois da promulgação da Constituição", explicou à DW Brasil.

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Assim como Salto, a economista Mariana Almeida, professora de planejamento e orçamento público do Insper, frisa que "o ciclo orçamentário, desde a Constituição, tem uma etapa que passa pelo relator".

"Na Comissão Mista de Orçamento do Congresso já temos o relator. A Constituição dá ao relator o direito de revisão do orçamento proposto pelo Executivo", complementa a professora.

Segundo ela, quando começaram a surgir reportagens sobre como a base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso estava se beneficiando com verbas orçamentárias por meio de emendas de relator sem a devida transparência – a primeira delas publicada no jornal O Estado de S.Paulo –, houve até uma dificuldade inicial de especialistas em compreender o que de fato estava ocorrendo na prática, uma vez que tais emendas são lícitas e legais.

"Essa ideia de orçamento secreto ganhou força por conta do perfil do atual governo, pela desorganização do processo orçamentário em geral e por um conjunto de normas não seguidas", enfatiza Almeida.

A professora afirma que o Brasil tem evitado, há décadas, fazer um debate profundo sobre as emendas parlamentares e sobre qual é o papel do Legislativo na definição orçamentária.

"Na minha opinião não deveria haver emenda nenhuma, nem impositiva. O Legislativo poderia revisitar o orçamento num processo de debate, discussão e ajuste, mas num acordo com o Executivo. Essa ideia de que o parlamentar tem poder de escolha de um pedaço para ele, não cabe. Quem vai executar é o Executivo. Vejo isso tudo como um desvio anterior. Eles [os parlamentares] foram colocando emendas, e nós fomos aceitando, normalizando algo que não é normal. E as fatias de emendas têm crescido num orçamento super justo, onde já há pouco espaço para investimento. Um pedaço importante da verba pública brasileira está pulverizada sem visão estratégica para isso", afirma.

O diretor do IFI concorda. "No fim das contas, neste ano tem cerca de R$ 17 bilhões [de emendas de relator no orçamento]. Isso deveria ser gasto ou não? Como se dá a barganha entre o Executivo e o Legislativo, que é algo típico do processo de checks and balances entre os poderes? Essa discussão é importante e não pode ser deixada de lado", considera.

Executivo, Legislativo e Judiciário, sustenta Salto, precisam encontrar uma saída para o atual problema, pois, da forma como as emendas de relator estão sendo utilizadas, ou elas não são identificadas ou é bastante complexo identificar o destino e o uso deste dinheiro. "Seria importante se a gente encontrasse uma solução em direção a uma maior transparência."

De acordo com Salto, em 2016 o Congresso modificou a Constituição (Emenda 86) para tornar as emendas individuais (que cada parlamentar apresenta) impositivas, ou seja, quase que obrigatórias.

Foi uma maneira que deputados e senadores encontraram para ter mais voz no destino do dinheiro, uma vez que o Executivo não era obrigado a pagar essas emendas e acabava contingenciando esses gastos.

"Isso foi uma resposta a uma demanda do próprio Legislativo, que não queria ter incertezas. O Executivo só pode agora cortar emendas se ele cortar também as despesas discricionárias dele próprio. Foi um avanço no sentido de que você tornou as despesas parlamentares quase que obrigatórias", elucida o diretor do IFI.

Teto de gastos

Outro marco importante neste debate é o teto de gastos, que foi estabelecido também por outra mudança constitucional em 2016. O teto de gastos, explica Salto, deixou a estratégia do Congresso de sempre reestimar as previsões orçamentárias com os dias contados.

"De nada adiantaria você reestimar despesas, o tanto que você quisesse, porque [o Legislativo]  não iria poder fixar essas despesas se o teto estivesse sendo descumprido, a partir desta reestimativa."

Segundo o economista, em 2019 outra mudança constitucional foi editada (Emenda 100) e também fixou percentuais da receita corrente líquida para as emendas de bancada.

Neste mesmo ano foi criado um novo classificador de despesas que é o RP9 (despesa primária discricionária, decorrente de emendas de relator-geral, excluídas as de ordem técnica, consideradas no cálculo do resultado primário).

"Antes de 2019 não tinha esse carimbo. Então nem dá para saber quanto foi gasto [de emenda de relator] em 2016, 2017, 2018. Mas de 2019 pra cá isso ganhou um volume muito expressivo, de tal forma que é um orçamento significativo, que tem vários problemas, porque são emendas genéricas e não identificadas."

Sem fazer juízo de valor sobre as emendas, Salto observa que algumas delas podem até ser positivas para políticas públicas, mas o grande problema é que não há controle.

"E mais do que isso: há demandas que vêm do próprio Executivo, como aconteceu neste ano, em que uma parte das emendas de relator foi para atender o Ministério de Desenvolvimento Regional. Então veja: você tem ali uma espécie de orçamento paralelo em que se acaba gerando um prejuízo ao processo orçamentário como concebido na Constituição."

Pressão por transparência

Com a decisão do STF, em caráter liminar, de obrigar o Legislativo a ser transparente com as emendas de relator, especificando qual parlamentar solicita a verba e para onde ela é destinada, o Congresso foi obrigado a agir para dar uma resposta à decisão judicial.

Foi aprovado um projeto de resolução, mas os parlamentares alegam que não há como identificar quem solicita a emenda ao relator.

"O que o Congresso fez agora com essa resolução é dizer o seguinte: vamos continuar fazendo da mesma forma que estávamos fazendo, só que agora a gente está pondo no papel", diz Salto.

No último dia 9 de dezembro, o Executivo editou um decreto presidencial determinando que é preciso explicitar as solicitações que justificam as emendas de relator. Porém, não há nenhuma obrigatoriedade para que o parlamentar que demanda a verba seja identificado, como havia pedido o Supremo. O STF vai julgar, nos próximos dias, o mérito do caso.

"Nós já temos um encontro marcado, em 2023, com uma nova discussão fiscal. Porque o que está sendo feito agora com o teto, o regime de precatórios, tudo isso vai produzir efeitos em 2022", avisa Salto.

Para o economista, o que de fato mobiliza "corações e mentes" é quanto vai sobrar em 2022, um ano eleitoral, para o governo gastar, e quais serão esses gastos.

"Agora, o grande desafio é como conciliar a necessidade posta pelo próprio processo democrático de participação dos agentes políticos no orçamento com o outro lado da história, que é a responsabilidade fiscal, a transparência, a impessoalidade, que são princípios constitucionais importantes", enfatiza Salto.

Na opinião de Almeida, a decisão do Supremo não ataca o cerne do problema.

"O relator do orçamento desviou a natureza do seu trabalho. O trabalho do relator de orçamento não é premiar um ou outro parlamentar, uma ou outra bancada. É um outro olhar que o relator deve ter. Essa disputa de entregar para cada um já estava nas individuais e de bancada. Mas aí o relator começou a mexer um monte na lógica de distribuição de recursos, e a gente não enxerga para onde vai. Virou um banco de negociações que subverte totalmente a função do relator", analisa a economista.

A professora não acha que haverá intenção do Congresso em rever essas questões antes da eleição presidencial de 2022. O que resta, por ora, é o acompanhamento da execução orçamentária, que cabe aos órgãos de controle, em especial ao Tribunal de Contas da União.

Em paralelo, a sociedade civil deveria criar instrumentos para entender melhor essa confusa linguagem orçamentária, cheia de códigos e classificações.

"É um assunto em que propositalmente não se tem muito interesse que os outros se aproximem. Tem muita armadilha no debate orçamentário", ressalta a economista. "É preciso restringir o papel do relator, deixar isso claro. Mas é pouquíssimo provável que o Congresso faça esse debate."