Rio de Janeiro

Indignação

“O corpo dele ficou dentro da viatura sangrando”, diz familiar de morto em ação policial no RJ

O entregador de aplicativo Elias de Lima Oliveira morreu após uma abordagem policial no Morro do Palácio, em Niterói

Brasil de fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Elias deixou esposa e uma filha de pouco mais de um ano de idade - Foto: Arquivo Pessoal

Morro do Palácio. Dia 24 de novembro de 2021. A data ficou marcada para a família do entregador de aplicativo e DJ, Elias de Lima Oliveira, de 24 anos. Jovem e negro, o morador da comunidade localizada no bairro do Ingá, na zona sul de Niterói, na região metropolitana do Rio, foi morto durante uma abordagem policial no intervalo do trabalho.

De acordo com os moradores, não houve tiroteio na comunidade no momento em que Elias foi alvejado, como a polícia argumentou. Segundo a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), equipes do 12ºBPM (Niterói) foram atacadas a tiros enquanto realizavam um patrulhamento em uma das vias que dão acesso ao Morro do Palácio, gerando confronto.

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Na versão da polícia, Elias foi encontrado ferido após a troca de tiros, levado para ser socorrido no Hospital Estadual Azevedo Lima (HEAL) e não resistiu. A polícia informou ainda que na ação, um homem foi preso com uma pistola e entorpecentes. 

Os policiais envolvidos na ocorrência foram preventivamente afastados da atividade operacional e estão realizando serviços internos. Um Inquérito Policial Militar (IPM) foi instaurado para averiguar as circunstâncias da ocorrência, além das investigações a cargo da Polícia Civil na Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSG). 

As investigações estão na etapa de ouvir as testemunhas e realizar outras diligências para esclarecer os fatos. A polícia informou ainda que aguarda o laudo da perícia das armas.

O Brasil de Fato conversou com um familiar de Elias que preferiu não se identificar. Na conversa, o parente do jovem conta um pouco a história do rapaz que sonhava em ganhar fama a partir do seu trabalho como DJ. Elias foi morto com um tiro no tórax e deixou a esposa e uma filha de pouco mais de um ano de idade. 

"Eles matam e a gente ainda tem que se virar para enterrar, para a pessoa não ser enterrada igual bicho, igual cachorro, que você cava o buraco e joga dentro", desabafou o familiar à reportagem.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Quem era o Elias? 

R: O Elias tinha 24 anos, concluídos no dia primeiro de agosto. Um dos seus primeiros sonhos foi ser jogador de futebol, chegou a jogar até em algumas escolinhas de futebol, mas não conseguiu concluir essa meta. Ao longo do tempo, ele teve paixão pela música e começou a tocar em festas e raves como DJ, então, de lá para cá, esse passou a ser o sonho dele: ser DJ. 

Durante um período ele trabalhou como entregador do sacolão de Icaraí. Comprou uma moto para facilitar o trabalho e começou a trabalhar como freelancer, fazendo entrega em pastelaria, pizzaria, lanchonete e trabalhava também em aplicativos como Uber EatsIfood.

Após a saída do sacolão, ele trabalhava durante a semana no aplicativo e de freelancer e aos finais de semana, para complementar renda, como DJ tocando em algumas festas, aniversários.

Conte-nos um pouco sobre a família do Elias.

R: Ele era casado, namorava desde novo com a Letícia. Ele era casado, não no civil, dentro da comunidade, temos o costume de dizer que duas pessoas que são "juntadas"  são casadas, mas no civil não, mas moravam juntos.

Eles têm uma filha de um ano e pouco que começou a andar há pouco tempo, já está começando a falar.

Um dos sonhos do Elias, além de ser um DJ muito conhecido, ele também tinha o sonho de ver a filha crescer e doutriná-la. Era um dos sonhos dele. São cinco irmãos. Três meninos e duas meninas. O Elias era o filho caçula, o mais novo.


Na foto, Elias posa junto com a filha / Foto: Arquivo Pessoal

O Elias já teve alguma passagem pela polícia?

R: Não. Nunca teve envolvimento com droga, passagem pela polícia. Já aconteceu dele ser confundido com uma outra pessoa que a polícia investiga ou procura, mas não deu em nada, até por causa da documentação. Temos o RG. Essas coisas são comuns em comunidades quando tem uma investigação da polícia, uma operação. Mas fora isso, o Elias não tinha antecedente criminal.

O que aconteceu na tarde de quarta-feira do dia 24 de novembro?

R: Quando tive a informação de que o Elias foi baleado, fiquei surpreso, não imaginada que a situação tinha ido tão longe. Segundo a informação que eu tive, ele estava descendo para trabalhar. Outros já dizem que como ele trabalhava no aplicativo, ele estava subindo para almoçar, lanchar e retornar ao trabalho e quando ele foi abordado pela polícia.

Segundo a informação que me passaram, tinha uma boca de fumo próxima ao local, não tão perto de onde ele passava, mas próximo, e ele foi enquadrado pela polícia, foi alvejado a tiro.

De acordo com o que me passaram, ele falou que era morador. Os policiais subiram de carro particular, à paisana e ele falou: "Eu sou morador, trabalhador". Segundo testemunhas, ele ainda estava vivo, não estava baleado. Estava ileso. Eles [policiais] mandaram os moradores voltarem e no período de 30 a 40 segundos, eles ouviram dois disparos.

Moradores viram ele baleado, começaram a falar que o Elias era "morador, trabalhador". E dizem que foi onde o policial colocou a mão na cabeça e viu que tinha feito besteira. Outras informações dizem que os policiais falaram no termo como eles [ policiais] dizem, "morador é o caralho, você é bandido", xingando. 

Depois, eles chamaram uma viatura, arrastaram o corpo do Elias, jogaram dentro da viatura. Segundo informações, o corpo dele ficou dentro da viatura no pé do morro, antes deles prestarem socorro.

Elias ficou sangrando ali dentro.

A polícia levou ele para o hospital CPN [atualmente Hospital Municipal Carlos Tortelly], só que eles sabem que esse hospital não tem uma estrutura para atender uma pessoa ferida à bala. Todos nós sabemos que só o Azevedo Lima atende essas emergências. É o único hospital público em Niterói que tem essa estrutura médica.

Houve tiroteio na comunidade?

R: Não houve tiroteio. A comunidade é de estrutura pequena, não é uma comunidade "braba". A nossa comunidade é tranquila. Aqui é uma das únicas comunidades do Rio de Janeiro que tem um projeto do Oscar Niemeyer dentro. Temos o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e dentro da comunidade temos o Maquinho.

A nossa comunidade não aparece no mapa como morro, aqui é ponto turístico e por ser ponto turístico não aparece morro e sim como parte do bairro Ingá. Tem o Maquinho e a pessoas vêm olhar a paisagem e a beleza de Niterói. Vem gente mundialmente. É um privilégio dentro da comunidade.

Quantos tiros ele levou?

R: A bala foi no tórax, só que ela não pegou de frente, ela pegou de lado. A bala pegou da parte do ombro até o meio do tórax. Causou uma hemorragia.

Numa conversa informal, você comentou sobre a dificuldade de arcar com os custos do velório e enterro do Elias.

Além da ação desastrosa da polícia, nós não tivemos ajuda nenhuma do Estado. O enterro com a coroa com tudo, saiu a R$ 2.400,00. Saiu do bolso das irmãs do Elias. Não houve ajuda.

Eles matam e a gente ainda tem que se virar para enterrar, para a pessoa não ser enterrada igual bicho, igual cachorro, você cava o buraco e joga dentro.

Hoje qual é a maior luta da família do Elias?

R: Hoje [dia 8 de dezembro] está completando duas semanas que ele faleceu. A maior luta da família é se recuperar desse trauma e revolta, tentar viver com essa atrocidade da polícia. Não morreu só o Elias, morreu um pedaço da família. Todos estamos sofrendo, por mais que tentemos nos mostrar fortes.

Perder um filho, um irmão, um pai e uma mãe, é uma ferida, ela vai cicatrizar, mas a cicatriz é uma lembrança de uma marca que você vai carregar para o resto da vida. Não vai ter como você se livrar nunca. Toda a vez que olhar para a cicatriz, você vai ter memória do que aconteceu, é um sofrimento eterno.  Roubaram um sonho do Elias. O sonho que fica é só revolta. Nesse momento não existe palavra para confortar.

Edição: Mariana Pitasse