Construção Histórica

Opinião | Pax Brasilis: a arte de matar, rematar e contramatar

Desonrado e transformado em alegoria animalesca, o cadáver era exposto nas vias públicas. Morte tripla

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A criatividade macabra das polícias brasileiras guarda semelhança com os massacres levados a cabo por liberais e conservadores na Colômbia - MAURO PIMENTEL / AFP

O título tomo emprestado da antropóloga Maria Victoria Uribes em seu estudo sobre os roteiros macabros nos assassinatos de dissidentes políticos em Tolima, na Colombia, onde paramilitares e guerrilheiros destruíam os corpos de suas vítimas como um cálculo político para apagar a memória, espalhar o terror e estabelecer controle total sobre a comunidade dos vivos. Primeiro matavam deferindo um golpe mortal com tiro, então rematavam com a decapitação. Em seguida, contramatavam com cortes ‘criativos’ que redesenhavam a anatomia (o corte gravata, por exemplo, consistia em uma abertura vertical no pescoço por onde se introduzia a língua da ‘presa’, os olhos eram removidos das órbitas e a cabeça reposicionada entre as mãos à altura do intestino exposto) e reafirmavam a desumanização prévia dos estupros, golpes e insultos. Desonrado e transformado em alegoria animalesca, o cadáver era exposto nas vias públicas. Morte tripla.

Correndo o risco da espetacularização midiática e comparação inoportuna com um conflito originalmente de base agrária, classista e partidário, a criatividade macabra das polícias brasileiras guarda semelhança com os massacres levados a cabo por liberais e conservadores na Colômbia. Por exemplo, a especialidade dos Highlanders, o esquadrão da morte no fundão da zona sul paulistana, era cortar e desaparecer a cabeça de jovens negros.

Também, as denúncias de organizações de direitos humanos baianas dão conta de atrocidades que fogem ao vocabulário humano. “A polícia toca o terror”. No Amazonas, o Conselho Indigenista Missionário denuncia que sob o pretexto de combate ao tráfico, comunidades indigenas e ribeirinhas são aterrorizadas com assassinatos e desaparições. Desnecessário mencionar as carnificinas que surgem durante as greves policiais país afora. Governadores (comandantes da tropa!) já denunciaram os usos do “terror” como pressão política por melhores salários. A quem recorrer? O diagnóstico da juventude negra das periferias brasileiras é uma explicação plausível para o que resiste explicação: “e no oitavo dia o diabo criou a polícia à sua imagem e semelhança”.

Ademais dos massacres e desaparições cotidianas que não aparecem nos jornais, nos acostumamos com uma economia racial da barbárie que bate seu próprio recorde no número de mortes. Chacina do Cabula (12), Complexo do Alemão (19), Chacina de Osasco (23), Jacarezinho (25), Carandiru (111), Crimes de Maio (530)…. Na lista infinita de vítimas (são em média seis mil mortes anuais nas contas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), sobra criatividade macabra, cumplicidade institucional, desumanização mediática e sanção social. É aqui que a equação matar, rematar e contramatar se revela em uma cadeia de cumplicidade na qual a polícia impõe a morte biológica, os órgãos de controle estabelecem a morte burocrática --- o que as Mães de Maio denunciam como “matar com a caneta”--, a mídia perpetua a morte simbólica (afinal, eram bandidos em confronto com a polícia) e finalmente, a sociedade do “homem cordial” celebra a paz social (“bandido com é bandido morto”).

Nessa “transação sangrenta” entre distintas instâncias de ordem, corpos sequestrados, abatidos e lançados nos manguezais constituem um espetáculo de governança que obrigaria Foucault a reescrever suas teses sobre o nascimento da biopolítica e o fim do poder da espada. Simples

assim, os regimes disciplinários não comportam alguns corpos que por seus “defeitos de cor” só podem ser governados pela morte. Os corpos e geografias negras das cidades brasileiras são “lugares” permanentes para o exercício mundano de uma soberania estatal peculiar, o que implica dizer que na genealogia foucaultiana do sujeito moderno as gentes negras são sujeitos ininteligíveis. De fato, se as relações de poder combinam distintos dispositivos e estratégias, a pax colonial revela uma singularidade negra que no mínimo questiona a suposta desqualificação da morte como exercício de dominação.

À esteira das reflexões abertas por Achille Mbembe, muitos têm caracterizado o tempo presente como o governo da “necrodemocracia”. Entre nós denunciada por Lélia González como “neurosis cultural”, por Abdias Nascimento como “democracia genocida” e por Débora Silva como “democracia das chacinas”, a democracia brasileira é letal não apenas pela centralidade da morte que no Brasil atual a aberração política Jair Bolsonaro encarna como ninguém em sua celebração odiosa do militarismo, mas também porque forjada na vitalidade da sociedade civil como espaço do exercício de direitos e como referência de vida vivível, dor doída e morte enlutável. Biopoder na veia. Foucault afinal merece algum crédito.

É aqui que podemos situar as mais recentes cenas de mães negras resgatando corpos mutilados lançados no mangue do Salgueiro, no Rio de Janeiro, como um destes momentos cotidianos de fazimento do nosso regime demo(terro)crático. Na verdade, a ‘cidade maravilhosa’ cantada e festejada na superficialidade da Bossa Nova, é uma metáfora do Brasil mutualmente constituído no abandono crônico das suas populações negras e na celebração do nosso experimento social -- nossa brasilianidade – como exemplo para o mundo. É exemplaridade no uso do terror racial sem racismo! A sociabilidade brasileira é celebração possível porque articulada em torno de uma comunidade imaginada como racialmente harmônica, ao passo em que uma ordem colonial teimosa justifica “a máquina de moer gente” e devorar corpos nas favelas e nas prisões.

Por que a cidade e o país não param com o assassinato de um, oito, dezenove, vinte e cinco, seis mil Sandra Blands e Michel Browns (já que a mídia nacional tem dado tanto destaque aos linchamentos raciais nos EUA), em que pese o protesto solitário do movimento negro e das famílias enlutadas? À esquerda ou à direita, são vidas indefensáveis na ameaça criminal que representam. “Crime” é a palavra que possibilita apagar a cor dos cadáveres, destruir suas biografias (o boletim policial serve como principal fonte para o noticiário que carimba nos corpos a insígnia de traficantes) e desumanizar as comunidades aterrorizadas.

Se na cidade (pós)colonial, a função da polícia é demarcar fronteiras -- cada macaco em seu galho ---, a este trabalho se soma o investimento coletivo em um discurso militar que hierarquiza as vítimas do terror policial entre culpadas e inocentes, boas e más. Há ainda os defensores de “melhores condições laborais” para policiais militares ou os porta-vozes da narrativa protocolar dos massacres como “confrontos” ou, ainda, a falsa equivalência entre vidas negras e vidas-policias. Policial é agente da formação estatal antinegra. É expressão central, ainda que longe de ser a única, da necrodemocracia. Se esse argumento, francamente óbvio e amplamente disseminado entre abolicionistas penais da diáspora africana, for levado às suas consequências entre nós, a coerência nos pede defender o fim da polícia. O movimento 3ds nos ensina o caminho rumo à abolição total: desfinanciar, desarmar e desmantelar.

É urgente, no longo caminhar abolicionista, defender a vida e recusar a desumanização das pessoas negras “com passagem pela polícia”, “bandidos” e “suspeitos”. Se trata de ação política para também defender nossa própria existência. Se o corpo negro é por definição legal corpo desviante --- afinal as demarcações jurídico(hetero)normativas traficante/trabalhador ou favela/comunidade colapsam nos encontros mortais entre a polícia e a empregada doméstica arrastada pela viatura policial, a criança morta com bala de fuzil a caminho da escola, a vereadora preta e lésbica assassinada no centro da cidade, ou o jovem abatido na volta da celebração do primeiro contracheque --, não seria mais que hora de insurgir contra o regime de legalidade nutrido no sangue negro?

Para quem habita as geografias da morte onde a lei não reconhece limites (necrópolis), não há lealdade possível com o regime de direitos porque a questão maior é quando, não se, o terror policial baterá à porta. Do ponto de vista do colonizador, somos sempre escravas, traficantes, corpos desviantes marcados para morrer. É por isso que a zona da morte, esta zona árida onde o projeto fanoniano de descolonização se descortina, é ao mesmo tempo a expressão máxima da dominação racial brasileira -- a pax brasilis -- e a possibilidade de uma geografia insurgente contra a ordem macabra do Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

 

*Jaime A Alves é jornalista e antropólogo.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Anelize Moreira