Neoliberalismo

Perigo à vista? Privatizações podem ameaçar a democracia

Julgamento do Supremo dos EUA ajuda a compreender os limites da participação privada em assuntos de Estado

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |

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Homem espera ônibus em Chicago. Máquinas de estacionamento da cidade são ponto de controversia. - Scott Olson / Getty Images via AFP

A Suprema Corte dos Estados Unidos vai julgar o caso da cidade de Chicago contra a CPM, empresa responsável por operar as máquinas de estacionamento no município. O processo se dá pela forma como a privatização foi feita. Chicago concedeu à CPM o direito de explorar o sistema de estacionamento por 75 anos, o que levou a taxas mais elevadas, aumento das praças de cobrança e restrição ao transporte público.

"Agora, se a prefeitura quiser instalar novos pontos de ônibus, por exemplo, o governo precisa comprar essas vagas de volta da CPM, o que não acontece, porque não há dinheiro", conta ao Brasil de Fato o historiador Donald Cohen, autor do recém-lançado "Privatization of Everything" – "A Privatização de Tudo", em tradução literal.

 

Cohen, que fundou e dirige o In The Public Interest, projeto sem fins lucrativos que estuda serviços e bens públicos, diz que a privatização, quando feita de forma pouco cautelosa, é uma grande ameaça à democracia

"A privatização nada mais é que entregar à iniciativa privada a autoridade, o controle e o acesso a bens públicos, muitas vezes necessários à população", explica.

É justamente por isso que o especialista se preocupa quando ouve que, no Brasil, pré-candidatos à presidência insistem em hastear a bandeira da privatização como símbolo de progresso.

O atual governo Bolsonaro, por exemplo, começou o ano com a missão de desestatizar 9 empresas públicas, entre elas a Eletrobras, que desempenhou um papel fundamental na crise elétrica do Amapá, em novembro de 2020. O estado viu mais da metade de seus municípios ficarem no escuro por longos períodos, o que culminou na morte de pelo menos 8 pessoas. A responsável pela energia no Amapá é uma empresa privada que não investiu em um transformador reserva, e precisou do resgate da Eletrobras para restabelecer a normalidade na área.

Casos assim não chocam Cohen, que viu algo semelhante acontecer no Texas, em fevereiro deste ano. "Quando não controlamos serviços vitais, é isso o que acontece mesmo. Lá no Texas, a empresa responsável pela rede elétrica no estado não investiu o necessário para manter o sistema no ar e oops. Para onde foi esse dinheiro?", questiona. 

A falta de monitoramento dos recursos é apenas um dos problemas da privatização. Para Cohen, o maior perigo é o choque de interesses. O especialista lembra que o objetivo de companhias privadas é maximizar o lucro, e que, para fazer isso, às vezes se vai contra o interesse público.

"Uma companhia de água, por exemplo, quer que as pessoas consumam cada vez mais, então o racionamento ou a conscientização não lhe interessa, entende?", diz.

Apesar das críticas, Cohen sabe que é impossível ignorar a privatização, e que é preciso cuidado para não demonizá-la. "Tudo é público e privado ao mesmo tempo", propõe, "as estradas, por exemplo: são vias públicas, mas construídas por empresas privadas, contratadas pelo governo".

O segredo para manter o equilíbrio entre as forças tem a ver com a manutenção do cidadão como tal, e não como um consumidor. "A gente não pode permitir que os interesses das corporações sobreponham às necessidades da população, e sejam protegidos nas decisões públicas". 

Sobre o argumento de que as empresas privadas sejam mais eficientes que as governamentais, Cohen lembra que não há estudos relevantes que provem tal afirmação, repetida à exaustão por neoliberais. "A privatização virou uma ideologia", completa, "os conservadores e liberais não acreditam no estado, e há os corporativistas, que ganharam fôlego na década de 80, no auge das privatizações em território estadunidense". 

Décadas após esse apogeu, a impressão que se tem é que as lições não foram aprendidas. Os Estados Unidos continuam, por exemplo, sem um sistema público de saúde, relegando sua população às regras das companhias particulares. 

A repetição desse erro acontece também em nível global – e a pandemia da Covid-19 é o mais recente exemplo disso. "Acho okay permitir que Pfizer, Moderna e Johnson&Johnson tivessem certas liberdades para fazer seu trabalho, mas esperar que elas controlem a pandemia? Olha o que aconteceu na África e percebam que é exatamente esse o resultado da privatização: as empresas vão agir de acordo com os seus interesses, que levam à redução de despesas e aumento dos ganhos, ainda que isso vá de encontro com o que precisamos".

Edição: Thales Schmidt