Os grandes embates na Corte nos últimos anos têm sido sobre o direito penal
Durante as mais de oito horas em que foi sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal nesta quarta-feira, 1º de dezembro, André Mendonça, o indicado “terrivelmente evangélico” de Bolsonaro, comportou-se como um democrata, progressista e defensor dos princípios republicanos.
Humilde e educado respondeu a senadores e senadoras afirmando que a Constituição é e deve ser o único livro a ser adotado por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Afirmou defender a laicidade do Estado, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, assumiu o compromisso de garantir os direitos de todas as minorias, sem qualquer compromisso com as pautas reacionárias do governante que o indicou ao cargo. Justificou as medidas judiciais de perseguição contra servidores públicos, militantes antifascistas, jornalistas e opositores do governo como “dever de ofício”.
A tônica central de seu discurso político era afastar qualquer alusão de que sua prática religiosa terá relação com o exercício de sua função pública e que será imparcial quanto às pautas do governo Bolsonaro. Abusou dos jogos de palavras de forma muito hábil, inclusive quando precisava responder a senadores da própria base do governo que atacavam o suposto ativismo judicial do STF.
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Imediatamente após sua aprovação no plenário do Senado, já liberado da fantasia imposta para conquistar votos, um André Mendonça muito mais autêntico falou à imprensa, afirmando, em sua primeira entrevista coletiva.
“Um passo para um homem, um salto para os evangélicos.(...) uma nação de 40% dessa população que hoje é representada no Supremo Tribunal Federal.(...) nós queremos dizer ao povo brasileiro que o povo evangélico tem ajudado esse país e quer continuar ajudando esse país, fazer desse país uma grande nação. Fazer da justiça brasileira uma referência...”
Tudo aquilo que foi estudadamente represado na sabatina foi dito aos jornalistas. Todas as referências, os agradecimentos, as menções, foram aos líderes evangélicos do Congresso, a Deus, sua religião e sua família. Não mencionou, em momento algum, a Constituição Federal ou de qualquer compromisso com o Estado democrático de direito, laico, plural e inclusivo.
Ali já era o André Mendonça aprovado e livre para expressar sua verdade, evidenciadora do real motivo de sua indicação para ocupar um cargo de juiz da Suprema Corte do país. Demonstra que o preço a pagar pela sociedade brasileira, por esse imenso erro cometido pelos senadores com sua aprovação, pode ser muito grande.
A senadora Eliziane Gama (Cidadania/MA), ao defender em seu relatório a aprovação do nome de Mendonça, afirmou que ele não poderia ser vetado por pertencer a uma determinada religião. Cometeu a senadora, também ela evangélica, a mesma distorção, que parece comum. A religião de nenhum cidadão pode ser questionada, a fé é uma questão de foro íntimo. O que não se pode é indicar alguém a um cargo público por motivo religioso, como tampouco se pode misturar religião com Direito.
Os exemplos históricos de exclusão social em nome da moral religiosa são incontáveis, em regra travestidos da preservação da família e de resgatar valores, censurando temas como sexualidade e gênero, adoção, educação, negando toda a evolução do pensamento científico e dos avanços sociais.
A noção de Estado laico externada pelo sabatinado André Mendonça jamais daria guarida ao advogado geral da União, André Mendonça, que defendeu a reabertura dos templos em abril de 2021, há apenas sete meses, no auge da pandemia de covid-19, com o “argumento” de que cristãos estavam dispostos a morrer por sua fé. Uma horrenda manipulação do princípio de liberdade de religião e de crença, em que não haveria obrigações coletivas ou considerações pelo direito à saúde dos demais cidadãos.
Para além disso, as expectativas em relação à postura de André Mendonça no STF não se limitam à chamada pauta de costumes ou morais ditadas por sua fé.
Os grandes embates na Corte nos últimos anos têm sido sobre o direito penal, com temas de alta relevância sendo decididos por maioria apertada, como a prisão em segunda instância que, a propósito, Mendonça já se manifestou favorável no passado em vários momentos. Exceto, por evidente, em sua sabatina nesta quarta-feira, quando se apresentou como um garantista. Essas matérias tinham no ministro Marco Aurélio, que se aposentou, um opositor ferrenho, e no atual presidente e comandante da pauta do plenário, Luiz Fux, um ardoroso defensor.
O discurso que um sabatinado ao STF faz para ser aprovado, regra geral, precisa ser modulado para conseguir votos. Isso é normal. Despir-se de tudo que sempre defendeu e de suas convicções, como fez André Mendonça, para angariar simpatia e se afastar do bolsonarismo, foi um pouco além. De todo modo, o comportamento que adotará para os julgamentos em geral só saberemos de fato a partir de sua posse e não imediatamente, quando provavelmente ele tentará mostrar alguma fidelidade aos compromissos verbais assumidos com senadores.
Serão longos 27 anos em que a retórica cederá lugar ao que pretende ser de fato o juiz. Em que a razão, que deve guiar as decisões judiciais, será confrontada com a percepção que o pastor possui dela; que as verdadeiras convicções jurídicas, ora camufladas, se revelarão.
Fato incontroverso para um debate mais profundo, urgente e necessário, é que processos de indicação como os de Mendonça comprometem a efetividade dos tribunais, aguçando a crise de legitimidade do Poder Judiciário. Notório saber jurídico e reputação ilibada tornaram-se jargões apenas, usados ao bel prazer de quem faz as indicações.
Por isso, é preciso pautar a qualificação e a reforma das instituições democráticas para fortalecê-las. Questões como estabelecimento de mandato para ministros do STF, por exemplo, passam do tempo de entrarem na agenda política e serem levadas a sério.
*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb - GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Anelize Moreira