Há quase 100 anos, a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) adotava o slogan “Brasil, celeiro do mundo”, manifestando pela primeira vez de forma institucional a concepção de que o papel do país no mundo globalizado que estava por vir seria o de produtor e exportador de alimentos.
Faz sentido: o Brasil tem território continental, abundância de água doce e clima favorável para agricultura; além disso, as inovações tecnológicas desde meados do século 20 permitiram saltos antes inimagináveis de produtividade.
Essa aspiração geopolítica ainda segue por se realizar, mas o ideal de conquistar a posição estratégica de “celeiro do mundo” nunca desapareceu completamente do imaginário político e popular.
Nas décadas seguintes ao fim da segunda guerra mundial, o Brasil viveu um breve e tumultuado período democrático (1945-1963), uma ditadura civil-militar conservadora (1964-1985), um ciclo de reformas neoliberais (1986-2002), um ciclo de reformas trabalhistas e sociais (2003-2015), e, desde a eleição presidencial de 2018, uma onda populista de ultradireita.
À primeira vista, cada um desses capítulos da história recente do país parece dominado por projetos concorrentes, como se a sociedade se movesse da esquerda à direita em movimentos pendulares.
Mas, sob a superfície das disputas políticas imediatas, o agronegócio sempre sustentou e foi sustentado pelo poder institucional, avançando seus planos de negócios sem deter-se pela ideologia da vez.
Essas constatações nada têm de novas: é o que chamamos de vida normal sob o sistema capitalista. Do ponto de vista de um cidadão-consumidor convicto, a relação íntima entre os poderes econômico e político é apenas natural, e a dinâmica do mercado parece eterna e imutável: quem produz, vende; quem pode, compra.
O caminho do dinheiro no mercado de alimentos, porém, está se tornando cada vez mais complexo e sujeito a interesses que vão muito além de relações diretas de oferta e demanda ou qualquer conceito de segurança alimentar.
Com o mercado financeiro cada vez mais envolvido em todas as etapas do agronegócio, o “celeiro do mundo” deu lugar ao “agro é pop”, e a ambição de acabar com a fome mundial foi substituída pela oportunidade de criar produtos financeiros de baixo risco para investidores, mesmo que, em longo prazo, isso possa significar aumento de preços e desabastecimento.
Para compreender o quão significativas são as mudanças em curso e como elas podem influenciar o seu acesso a alimentos no futuro próximo, é necessário compreender o conceito de “regime alimentar”, concebido pelos professores Harriet Friedmann e Philip McMichael em 1989 para referir-se ao conjunto de sistemas socioeconômicos envolvidos no financiamento, produção, estoque e comercialização de alimentos.
À época, Friedmann e McMichael identificaram dois regimes alimentares distintos em vigência nos séculos 19 e 20. O que estamos vivendo hoje é a inauguração de um terceiro ciclo, e a incorporação do agronegócio brasileiro é essencial para a consolidação desse novo modelo.
Terceiro regime alimentar: a era das corporações
“O trabalho de Harriet Friedmann em especial, como primeira proponente desse tipo de análise, representa uma tentativa de compreender de forma ampla a política econômica da comida no âmbito da economia global. Essa tentativa de identificar os princípios que governam a produção e o comércio de alimentos é muito útil para todos que tentam observar a agricultura em uma escala global”, explica o professor Gerardo Otero, presidente da Associação de Estudos Latino Americanos da Simon Fraser University, de Vancouver, Canadá, e especialista em regimes alimentares – ele é autor do livro The Neoliberal Diet [A dieta neoliberal].
No artigo que funda essa linha de análise, Friedmann e McMichael argumentam que o primeiro regime alimentar consolidou-se em meados de 1870, e durou até o início da primeira guerra mundial, em 1914.
“O primeiro regime alimentar é caracterizado por uma natureza extensiva, ou seja, foi um período em que para aumentar a produção de alimentos, era preciso incorporar mais e mais terras. A tecnologia estava estagnada, portanto a única forma de aumentar a produção era ter mais terras cultiváveis à disposição”, explica Otero.
Foi a era do imperialismo europeu, liderado pelo Império Britânico, que, no seu ápice, controlava 25% do território global e estabeleceu latifúndios monocultores com mão de obra escravizada em todas as suas colônias.
O segundo regime alimentar surgiu após a segunda guerra mundial. “Em 1945, ocorreu a ascensão do segundo regime alimentar, em um mundo não mais dominado pelo Império Britânico, mas pelos Estados Unidos. Nessa época, os EUA estavam vivenciando uma revolução tecnológica na agricultura que levou à mecanização dos processos e à concepção de sementes híbridas, além do advento de uma revolução petroquímica que resultou em novos fertilizantes e pesticidas. Esse processo gerou um regime alimentar em que não era mais obrigatório expandir a fronteira agrícola para aumentar a produção, pois atingiu-se um novo patamar de eficiência graças à tecnologia”, afirma o professor.
“Em um determinado momento, produzia-se tanto alimento nos Estados Unidos que o novo desafio era gerenciar o excesso. Portanto, se o primeiro regime alimentar era extensivo, o segundo era intensivo”, prossegue Otero. Foi a era da Guerra Fria, em que o robusto estoque de trigo dos Estados Unidos era utilizado para premiar com preços subsidiados seus aliados geopolíticos. “O Egito ganhou essa benesse após o início de um processo de paz com Israel em 1979. O Chile de [Augusto] Pinochet também foi agraciado por ter eliminado o governo socialista de Salvador Allende em 1973”, exemplifica o professor.
Novo rumo para a agricultura global
O caráter político da gestão de estoques nacionais de alimentos nesse período impediu que o mercado financeiro começasse, já naquela época, a transformar o setor agrícola. “Um fato interessante sobre o sistema agrícola pós-guerra mundial é que, enquanto a maioria dos mercados no mundo haviam sido ‘liberalizados’ por meio de instituições como o Banco Mundial e o FMI, a agricultura se manteve como um regime de exceção”, pondera Otero.
Essa tendência mudou após o colapso da União Soviética, e um novo rumo para a agricultura global, já transmutando-se em agronegócio, foi inaugurado com a Rodada de Negociações Multilaterais do Uruguai (1986-1994), conduzida pela Organização Mundial do Comércio.
O Acordo Sobre Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual (Trips, na sigla em inglês), assinado em 1987, garantiu, pela primeira vez, a propriedade intelectual de empresas privadas sobre sementes geneticamente modificadas. Sementes são modificadas não apenas para adquirir resistência a pragas e mudanças climáticas, mas também para produzir plantas com um ciclo de reprodução irregular, que não geram novas sementes depois de crescidas. Assim, os produtores rurais passaram a ser obrigados a comprar novas sementes a cada safra ao invés de manter seus próprios estoques.
Nas décadas seguintes, as sementes transgênicas se tornaram o padrão, e foram instrumentais para consolidar o domínio das grandes corporações transnacionais sobre a agricultura. Em 2017, de acordo com dados do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC Group, na sigla em inglês), 77% da produção mundial de soja, 80% da produção mundial de algodão e 32% da produção mundial de milho foram transgênicas. Já o índice de transgênicos entre as culturas brasileiras de soja, milho e algodão foram de 96,5%, 88,4% e 78,3%, respectivamente, em 2016. O levantamento é do Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia (ISAAA, na sigla em inglês).
Segundo o professor, os acordos da Rodada do Uruguai marcaram o início do terceiro regime alimentar, caracterizado pela consolidação das grandes corporações transnacionais de alimentos, fusão dessas empresas em grandes conglomerados que atuam em múltiplas etapas da cadeia produtiva, e posterior aquisição dessas empresas por agentes do mercado financeiro.
No mundo acadêmico, tanto brasileiro como internacional, o terceiro regime alimentar é considerado uma “era da desregulamentação”, pois o atual ciclo de incorporações e financeirização do mundo rural só teria sido possível graças a um recuo dos Estados nacionais do palco geopolítico alimentar. Otero, no entanto, tem um enquadramento diferente.
O Estado como protetor dos direitos das transnacionais
“Eu acredito que ao se colocar excessiva ênfase na ideia de ‘desregulamentação’, isso pode se tornar problemático, porque transmite a impressão de que o Estado não tem mais um papel a exercer, como se os governos tivessem simplesmente desaparecido da cena, mas não é esse o caso”, explica o professor.
“O Estado pode ter mudado o sentido de suas intervenções, mas continua sendo central [na composição do regime alimentar] quando decide proteger os direitos de propriedade intelectual corporativos, por exemplo. É o Estado que introduz o neoliberalismo, e, portanto, é o Estado que permite que as corporações transnacionais se tornem atores econômicos centrais do sistema”, complementa Otero. “E as soluções para os problemas trazidos pelo terceiro regime alimentar também passam pelo Estado. Isso é algo de que os movimentos sociais não devem se esquecer.”
Para o professor, o termo “neoregulamentação” é mais preciso, pois aponta para a verdadeira viga de sustentação do terceiro regime alimentar: Estados nacionais que utilizam o poder regulatório que ainda detêm para agir invariavelmente em favor das margens de lucro do mercado financeiro, fragilizando, cada vez mais, a ação do poder público sobre o setor de alimentos.
A participação do Brasil é essencial para o esquema global
O desenvolvimento do agronegócio no Brasil nas últimas décadas oferece argumentos convincentes para a tese de “neoregulamentação” defendida por Otero: de forma geral, o Estado brasileiro sempre privilegiou o poder econômico em detrimento do interesse público, mas, quanto mais dinheiro o mercado financeiro despeja sobre o agro, mais volumosas, céleres e inconsequentes são as ações do Estado em favor dos interesses corporativos estrangeiros.
O Brasil tem idiossincrasias em relação às manifestações globais dos regimes alimentares, mas está cada vez mais integrado ao sistema global e pode ser considerado, hoje, um dos países que mais faz uso da “neoregulamentação” para beneficiar o status quo alimentar.
Sérgio Pereira Leite, professor do programa de pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, é um pesquisador especializado nessas movimentações de Estado e mercado. No artigo “Análise do financiamento da política de crédito rural no Brasil (1980-1996)”, por meio de dados oficiais do governo brasileiro, Leite demonstra as diferentes fases de um processo contínuo de privatização e financeirização da terra e, consequentemente, dos alimentos.
O professor identifica que o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), criado pela ditadura civil-militar em 1965 com o objetivo de reorganizar os diversos subsídios e linhas de crédito públicas concedidos pelo Estado brasileiro, foi bem sucedido em expandir a oferta de dinheiro público para a agricultura; a destinação desses recursos, porém, encontrava-se sob controle de um governo livre de quaisquer instrumentos de transparência ou controle, e cuja prioridade era favorecer a concessão de latifúndios monocultores a seus aliados políticos regionais.
“Os recursos públicos [do SNCR] provinham da administração de fundos e programas realizada pelo Banco Central e, dada a vigência das ‘contas em aberto’ no Orçamento Monetário, também originavam-se da categoria de ‘recursos não especificados’ inscrita no orçamento”, explica, em seu artigo. “[Mas] vimos que a abundância de recursos não significou necessariamente sua utilização da forma mais eficiente, quer em termos da alocação dos recursos nas atividades-fim, quer ainda se pensarmos na noção de eficiência distributiva.”
Os primeiros instrumentos estatais de transparência e controle sobre o investimento estatal no agronegócio foram instituídos apenas a partir da Constituição de 1988, quando a economia brasileira se encontrava em um cenário de hiperinflação, e o Estado, em grave crise fiscal – em grande medida por conta da má gestão do crédito rural por parte dos bancos públicos. A economista Vivian Fürstenau identifica na década de 1980 as primeiras concessões do Estado brasileiro à pressão do Banco Mundial por uma agricultura de “livre mercado”, sem suporte financeiro estatal.
Leite destaca que, ao fim da década de 1980, os subsídios financeiros do Estado a setores específicos da economia, incluindo a agricultura, chegaram a somar quase 8% do PIB, recorde histórico e um patamar ainda mais elevado do que os dados mais recentes divulgados pelo governo, mas, desde então, apenas despencaram. Em 2019, os subsídios federais podem ter somado até 4% do PIB.
O Brasil foi finalmente enquadrado pelo sistema financeiro mundial ao longo da década de 1990, com os programas de privatizações e reformas neoliberais dos governos de Fernando Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), que, sob o pretexto de recuperar a economia, buscaram empréstimos estrangeiros e submeteram formalmente seus governos às orientações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. “A pressão do FMI sobre o controle do déficit público, condicionando a efetivação dos empréstimos para o programa de ajuste, voltou-se também sobre os mecanismos atuantes no Sistema Nacional de Crédito Rural, constrangendo a manutenção de subvenções nos níveis da década anterior”, avalia Sérgio Pereira Leite.
Otero destaca o mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010) como um período em que o Estado voltou a usufruir de seu poder regulador para tomar inciativas de proteção da soberania alimentar. “Isso aconteceu, temporariamente, pelo menos, no Brasil, quando Lula esteve no poder, com o programa Fome Zero e o relacionamento com o MST para fornecer as merendas das escolas públicas. Criou-se um relacionamento entre o estado e os movimentos sociais para reconquistar a soberania doméstica de alimentos”, pondera.
No mesmo período, porém, as mudanças estruturais trazidas pela integração do agronegócio ao mercado financeiro continuaram em curso. A política de “campeãs nacionais” da Era Lula empenhou financiamentos públicos do BNDES para diversas gigantes do Terceiro Regime Alimentar, em especial o conglomerado JBS, a maior empresa de um dos setores que mais agride o meio ambiente no mundo. Em 2012, a revista IstoÉ Negócios dedicou uma de suas edições a celebrar “A Era das IPOs” sob a gestão de Lula, período em que as capitalizações de empresas brasileiras, com detaque para JBS e Marfrig, movimentaram R$ 8,6 bilhões em um ano.
A “neoregulamentação” da agricultura em favor dos interesses do mercado financeiro avança a passos largos também sob a gestão de Jair Bolsonaro, inclusive de forma extraoficial: o apagão da fiscalização do Ibama, por exemplo, nos levou às maiores taxas de desmatamento desde 2008. Ao mesmo tempo, a liberação de uso de agrotóxicos no agronegócio atingiu a maior marca histórica em 2020. Combinados, esses processos ajudaram a “limpar” 10.476 km² de área florestal apenas na área da Amazonia Legal entre 2020 e 2021, preparando-a para futura exploração e eventual capitalização.
“A partir do momento que nós reconhecermos que o Estado pode mudar o sentido de suas intervenções, mas continua sendo central na composição do regime alimentar, então nós poderemos imaginar que tipo de reforma os movimentos sociais progressistas gostariam de promover”, conclui Otero. “Se chamarmos o Terceiro Regime Alimentar de ‘neoliberal’, então entendemos que o neoliberalismo é a questão central, um sistema que foi introduzido pelo Estado e que pode, portanto, ser modificado pelo Estado se a população e os movimentos sociais fizerem pressão por isso”.
Para o professor, o momento de decidir sobre que mudanças de rumo serão necessárias está próximo. Questionado pela reportagem do Joio sobre as condições que o atual Regime Alimentar tem de enfrentar os desafios propostos pelas mudanças climáticas, Otero, meticuloso e detalhado ao discutir qualquer assunto, responde com poucas palavras: “Simplesmente não estamos equipados para lidar com isso”.