“Não adianta eu ter um diploma, eu continuo preta”. O depoimento é da cientista política Kellen Vieira, 24 anos, negra e desempregada. No DF, a realidade do desemprego que recai sobre Kellen é também vivida por milhares de outras famílias, e impacta em disparada a população negra da capital federal.
De acordo com o boletim anual “População Negra e Desemprego no Distrito Federal", lançado no dia 18 passado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o número de pessoas negras desempregadas cresceu nos seis primeiros meses de 2021.
O documento aponta que entre o 1º semestre de 2021 e o 1º semestre de 2019, período anterior ao da pandemia de covid-19, constatou-se que a população negra reduziu sua presença no mercado de trabalho do DF, passando de 69,9% para o patamar atual de 63,9%.
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“Esta retração ocorreu para mulheres e homens negros, porém, de modo mais intenso, para elas, cuja proporção era de 34,5% no 1º semestre de 2019, enquanto a parcela masculina negra era de 35,5%”, destaca o estudo. De modo oposto, a população não negra elevou sua presença na ocupação regional, entre o período pré e pós pandemia.
A rotina vivenciada por negros e não negros no mercado de trabalho é distinta em vários aspectos. Dentre eles, o tempo médio para se conseguir uma vaga de emprego.
No 1º semestre de 2019, do contingente negro desempregado, 30,4% levava mais de 6 a 12 meses para garantir uma vaga de trabalho, esse percentual aumentou de forma constante do 1º semestre de 2020 até o 1º semestre de 2021, quando chegou a 37,7%, se estabelecendo num patamar bem acima do observado no período inicial.
Segundo o boletim, as proporções da população negra que despendia mais que 1 ano na busca por um posto de trabalho também experimentou crescimento no 1º semestre de 2020.
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Racismo
Para Kellen Viera, “achar vagas é difícil aqui no DF”. Ela conta que após várias tentativas frustradas de conseguir uma vaga na área de formação, passou a buscar outras oportunidades e se candidatou a uma vaga de telemarketing.
Após passar na entrevista, foi direcionada ao treinamento exigido. Porém, o supervisor “disse que eu não tinha a aparência adequada para trabalhar na empresa. Era uma empresa de telemarketing, ninguém ia ver minha cara, as pessoas iam ouvir minha voz. Então qual é a aparência adequada para você ser um telemarketing, né?", questiona.
“Isso foi um racismo explícito e foi a partir daí que parei de procurar emprego e comecei a pensar o que eu poderia fazer através da minha formação. Atualmente, dou aula de inglês online e também produzo eventos”.
A cientista política observa que “o fato de você ser negro já é um agravante” na hora de ser candidatar a uma vaga de emprego. “Você chega no local e questionam: você está se candidatando pra essa vaga? Eu sei que você tem graduação, mas precisa de algo mais. Mas o que é esse algo mais?”, contesta.
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Juventude
A pesquisa registrou a concentração dos desempregados negros em duas faixas etárias: jovens entre 18 e 24 anos, e adultos entre 30 e 39 anos. Os grupos somavam mais da metade dos desempregados negros nos primeiros seis meses de 2021, cerca de 51%.
As mulheres e homens negros entre 18 e 24 anos correspondem ao maior grupo dentre os desempregados, representando 31,9% e 34,0%, respectivamente, no primeiro semestre deste ano.
“A dificuldade de se encontrar trabalho no DF é muito grande para quem é jovem e não tem experiência” diz Micael Amorim. O jovem, de 26 anos, relata que, em meio à pandemia, começou a empreender com a produção e venda de doces caseiros. “E essa se tornou a minha renda principal. Os doces são produzidos em casa e vendidos na rua”.
Amorim conta que é estudante de artes cênicas da Faculdade Dulcina de Moraes e está com o curso “trancado por dificuldade em conciliar o trabalho com os estudos. Inicialmente, o meu foco era vender os doces para pagar a faculdade, e estava conseguindo, mas estava trabalhando tanto que não conseguia aproveitar as aulas”.
Para ele, o racismo existente no mercado de trabalho para o jovem negro “é muito cruel”, diz. “O protagonismo sempre foi do homem branco, o acesso e as oportunidades. Isso afetou bastante na auto-estima, nem conseguia me ver dentro de espaços formais, afinal o que a sociedade quer é te embranquecer e anular a sua identidade”.
Sem acesso a um emprego formal, Kellen Vieira destaca que começou a buscar outras formações na área de produção cultural “pra criar o meu emprego e a empregabilidade para os meus , porque essa dificuldade de conseguir um emprego não é só comigo, mas com todos os meus amigos”, expõe.
Ela afirma que a população negra, em questão de índices é sempre a preterida, é a que recebe menos e é a que não consegue emprego por não ter “a aparência adequada para trabalhar na recepção, não tem a aparência adequada para estar em posições de escolha. Mas a gente tem a aparência adequada para ser a camareira, pra ser a que varre o chão e a que fica nos bastidores”.
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Políticas públicas
A coordenadora do Programa Jovem de Expressão, Rayane Soares, defende que, com o resultado da pesquisa, é necessário que o governo crie iniciativas para reverter esse quadro.
“A população negra é um grupo que está na base da pirâmide social, onde seus direitos são negados há muito tempo e com os impactos da pandemia esses dados ficaram alarmantes, e com o resultado do estudo feito pela a Pesquisa de Emprego e Desemprego no Distrito Federal (PED-DF) só colocou mais em evidência as desigualdades sociais sofridas pela população negra, e principalmente as mulheres negras”, observa Soares.
Para a coordenadora, o governo do DF têm poucos projetos relacionados à política afirmativas de inclusão das pessoas negras no mercado de trabalho, “principalmente mulheres negras, que muitas vezes são as chefes de família, quando falamos dessas mulheres fora do mercado de trabalho estamos falando de mais gente em situação de vulnerabilidade”.
Mulheres negras
O boletim identifica que a intensa presença negra no desemprego do Distrito Federal, em todos os semestres analisados, reflete, sobretudo, “a condição desfavorável vivenciada pelas mulheres negras”.
“No que tange à distância entre sua presença no mercado de trabalho e no desemprego, dentre os grupos de sexo e cor/raça, as mulheres negras constituíram o único grupo que não melhorou sua condição no confronto com o 1º semestre de 2019”, demonstra o documento.
O deputado distrital, Fábio Félix (PSol), frisa que é preciso exigir do poder público ações afirmativas para o acesso de pessoas negras ao mercado de trabalho formal e não precarizado.
“A pandemia gerou uma onda de desemprego que botou o DF no topo do ranking. O setor de serviços é o que gera mais empregos no DF para a população negra; são empregos precários e com vínculos trabalhistas frágeis. Este foi um dos setores mais afetados também pela crise econômica agravada na pandemia, o que levou muita gente a ficar sem renda, agravando ainda mais os abismos sócio-raciais”, aponta do distrital.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino