Morte que atinge, pelo fuzil, quem trabalha duro, quem não trabalha, quem acha que está trabalhando
*Nilza Valéria Zacarias
Ao ouvir, estarrecida, sobre a Chacina no Salgueiro, em São Gonçalo, aqui no Rio de Janeiro, eu travei. Mais uma vez a mesma história. E estou indignada, e agradeço a Deus por eu não perder a capacidade de me indignar diante da banalização da vida, da violência extrema, do ódio, da ira.
Repito a mesma pergunta que me faço em todas as situações semelhantes: a quem interessa tanta morte? A quem?
Mais uma operação de vingança em que a morte de um policial (que não deveria morrer, é claro) vale a vida de 20 pessoas de uma comunidade de pobres, de pretos, sem estrutura. Mais um lugar onde o Estado dá as costas, e como diz a música do querido Chico Buarque, a estátua do Cristo Redentor também.
O que segura a onda é o Cristo vivo e real. Onde cada vez mais pretos e pobres se acolhem. Só Cristo mesmo para entender o que é sair de casa e não saber se volta. Cristo não tinha lugar para reclinar a cabeça.
Só Cristo mesmo para segurar na mão da dona de casa, que vive no alto do morro, que sai de casa para trabalhar e não sabe se seus filhos estão seguros. A escola não é atrativa. Não tem praça de lazer, não tem esporte.
A molecada cresce, e não tem futuro. Os pais se agarram em Cristo, os filhos - há os que se agarram no Cristo, há os que querem saber como é a vida que veem na TV.
A TV diz basta querer para ter qualquer coisa. Mas, tenta sair de São Gonçalo de ônibus em busca de um outro lugar. A passagem é cara, a ponte engarrafa, e não basta querer para ter.
O trabalho, mesmo que duro, está escasso. O trabalho fácil não é fácil, é morte.
Morte que atinge, pelo tiro de fuzil, quem trabalha duro, quem não trabalha, quem acha que está trabalhando.
O tiro que já atingiu, na mesma São Gonçalo, o menino João Pedro. Garoto de igreja, agarrado em Cristo. Menino. Não costumam chamar garotos negros de meninos, mesmo que tenham 14 anos. Eu chamo. João Pedro era um menino. E brincava enquanto o tiro o acertava.
Eram meninos que estavam em um carro fuzilado, há poucos anos, em Costa Barros, no subúrbio do Rio. Crianças, meninos, garotos que iam comemorar com um lanche o fato de um deles está trabalhando.
Comemoravam um trabalho, possivelmente, opressor, que pagava mal, que não tinha plano de carreira ou grandes possibilidades. Não era uma festa por entrar na universidade pública, em curso concorrido.
Nem assim eles sobreviveram. Mais de 100 tiros no carro e todos mortos.
Meu filho tem 25 anos. É doutor. Nunca viveu no morro. Estudou em escola boa. Teve as chances e oportunidades que todos os meninos pretos ou brancos devem ter. É difícil entender isso?
A gente passou a vida toda dele, até hoje, ensinando que ele não pode correr na rua. Perde a condução, mas não corre. Podia tomar um tiro e perder a vida. Não pode andar sem documento, pode ser esculachado. Pior, pode ser preso pelo maldito sistema de reconhecimento facial sem nunca ter cometido um crime. Anda com carteira de médico, meu filho.
Opa, essa é a notícia que não para de passar na TV esses dias. Gente presa sem cometer crime. Afinal, todos os pretos são iguais não são?
Tenha misericórdia Jesus, que não podemos continuar vivendo assim. O meu filho tem que permanecer vivo. O filho de qualquer mãe tem que permanecer vivo. A ordem natural é que eles nos enterrem.
Mas, tem mãe no Salgueiro enterrando seus filhos, mortos como animais e jogados no mangue.
Assim como aconteceu na Cidade de Deus, em 2017, são os moradores que recuperam os corpos. É morte indigna de gente que não viveu com dignidade, pois teve a dignidade roubada pela fúria do estado, pelo preconceito da sociedade.
Essa gente, e de novo cito o Chico (que não me sai da mente, pois na sua vasta obra tudo está lá), diz que tem que bater, tem que matar, essa gente engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.
Não leia os comentários dos jornais e portais. Eles não param de dizer que é necessário matar.
A Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, onde atuo, trabalho, milito, desde seu início é marcada pelo desejo de justiça. Pela cobrança ao Estado pelo sangue derramado na terra desse país. Na Cidade de Deus, quando os policiais mataram e jogaram os corpos na mata, fomos lá.
Um dos meninos era filho do pastor Leonardo, um homem simples, de pele retinta, que humilhado pelo policial desafiou o poder dos covardes que se escondem em coturnos, fardas e armas, e entrou na mata, com uma multidão, para que o corpo do seu filho ainda tivesse direito a qualquer dignidade, a qualquer respeito.
Ele diz que entrou pelo poder de Deus, em marcha, como em uma guerra. Eu acredito nele. Ele estava cercado de anjos. Só pode. A fé de Leonardo me inspirou, vocês não imaginam quanto.
Eu não posso ir no Salgueiro. Não posso falar até quinta. Mas, posso chorar, e choro. Eu tenho a cor da noite, sou filha do açoite, como são as mães dos meninos do Salgueiro. Como a mãe do João Pedro. Como as mães dos meninos de Costa Barros. Como a cor do pastor Leonardo.
Não morreram só meninos. Morreram homens também. As notícias citam mortos com a idade do meu marido no Salgueiro.
Se o médico deixar, semana que vem vou no Salgueiro. Convoco quem quiser ir comigo, que venha junto.
A gente se junta para que o cordão de três dobras não quebre. Nosso papel é ajudar na construção de um Brasil que seja para todos. Se não houver país para os nossos meninos, não haverá país para ninguém.
São muitas palavras pois são muitas as angústias.
Diferente do personagem da música do Chico que não crê e ora, eu creio e peço que Deus tenha misericórdia, e nos ensine a ser verdadeiramente cristãos. Não há dúvidas, para mim, que falta isso. Que a gente entenda, de verdade, o motivo dos pobres, pobres e favelados, agarrarem nas mãos do Cristo.
*Nilza Valeria Zacarias é jornalista e coordenadora Nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
**As opiniões contidas nesse artigo não refletem necessariamente a posição do Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse