Religião

Análise | Com Crivella na África, Bolsonaro põe Itamaraty a favor da Igreja Universal

O presidente tenta conter os prejuízos no continente para a igreja de Edir Macedo

São Paulo |
Marcelo Crivella
Crivella foi indicado para o posto de embaixadoor na África do Sul - Tomaz Silva/Agência Brasil

 

A indicação do bispo Marcelo Crivella para o cargo de Embaixador do Brasil na África do Sul traz reflexões sobre a medida em que o governo tem liquidado o patrimônio diplomático de uma das mais conceituadas e prestigiadas escolas da diplomacia mundial, a brasileira.  Por que tanta teimosia de Jair Bolsonaro em nomear uma pessoa com ficha suja, condenada e corrupta para representar a República num dos postos mais influentes do Continente Africano?

Visão provinciana e xenófoba de que aceitariam qualquer um? Ou será que o cerco evangélico está cada vez mais apertado e o medo de retaliação nas próximas eleições está provocando este desnorte político, ao ponto da insistência e súplica pela homologação sul-africana de um ninguém em estatura diplomática?

De fato, o desnorte de Bolsonaro parece ter razões de ser profundas, nas quais o escândalo IURDgate é apenas um dos reflexos da inflexão total da atual diplomacia brasileira no mundo. Mas não são as passeatas de moto no Catar que vão encobrir o fracasso da errática política do presidente.

Para entender a nomeação de Crivella é preciso enquadrá-la na relação promíscua do presidente Bolsonaro com uma das mais poderosas entidades religiosas do Brasil, a igreja Universal. De uma igreja pequena fundada em 1977, em São Paulo, por Edir Macedo, a instituição tornou-se um gigante no panorama religioso do Brasil. Tem mais de oito mil templos, 12 mil pastores e 1 milhão e oitocentos fiéis com sedes locais por todo o país, além de um aparato midiático personificado em diversos meios de comunicação, como a Rede Aleluia de rádio, a TV Universal e o jornal Folha Universal, além de gravadoras e editoras. 

A Record TV, segunda maior emissora de televisão no Brasil foi adquirida por Edir Macedo em 1989, e é utilizada de forma indireta para conquistar novos fiéis e aumentar a influência religiosa e política da Igreja Universal. A maior expressão do poder político do grupo se dá pelo partido Republicanos, fortemente associado à Igreja Universal. Um de seus líderes, o atual presidente do partido, Marcos Pereira, é um dos bispos da igreja. Sua representação política também se expressa na bancada evangélica no Congresso: a IURD é o segundo maior grupo dentro da bancada, que defende pautas de interesse dos líderes evangélicos.

A força da igreja Universal teve outro destino com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Em termos simbólicos, tanto a conversão ao neopentecostalismo e o batizado caricato do presidente de joelhos no templo de Salomão pelas mãos de Edir Macedo - prometendo a Bolsonaro “rebentar” na presidência-, que se tornou uma espécie de “guia espiritual” do presidente, reflete o assalto final da IURD ao panorama político do país.

Em termos internacionais, a estratégia de expansão da Igreja do guru Edir Macedo no mundo teve êxito total e a África foi um dos lugares de eleição da Universal. Acontece que esse período dourado está na sua fase de declínio se tomamos como exemplo o cenário angolano, onde a IURD teve experiência amarga vendo a humilhação a qual seus bispos e a própria Universal sofreram no país africano em 2021. A expulsão dos bispos brasileiros acusados por um conjunto de crimes levou não só à separação da Universal Angola de sua patrona no Brasil, mas à apropriação de todo o patrimônio bilionário que a IURD possuía em Angola, e causou a ira de Edir Macedo que viu o trabalho de décadas evaporando. 

Eis a razão de ser da nomeação de Crivella para o posto de Embaixador na África do Sul. Bolsonaro sente-se em divida para com seu guru Edir Macedo e fará o que for necessário para agradar o seu guia espiritual.

O ex-prefeito do Rio de Janeiro é acusado de ter comandado um suposto esquema de corrupção envolvendo propina durante a sua gestão na capital carioca. O Ministério Público estadual apontou que o “QG da propina” arrecadou mais de R$ 53 milhões em depósitos para mais de 20 empresas de fachada, em nome de laranjas, criadas pelo grupo de Crivella. O ex-prefeito é réu por corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Questiona-se como é possível nomear um não diplomata, um condenado e líder de gangue criminosa para o melhor posto diplomático no Continente Africano? Eis o paradoxo do governo Bolsonaro, que usou e abusou do sistema democrático para aniquilar um dos patrimônios mais preciosos do Itamaraty. A escola Rio Branco é considerada uma das melhores academias diplomáticas do mundo. 

As decisões erráticas de Jair Bolsonaro apenas revelam os desafios da democracia no mundo, alvo de populismo no qual Trump e Orban são uma amostra. No caso do Brasil, a teimosia em nomear uma pessoa indesejada no país de destino revela a superficialidade com que a política externa foi tratada durante os últimos três anos e, pior, o desprezo para com um continente em plena pujança, como é o africano. E se acrescentamos o sumiço das grandes empresas brasileiras da África, deixando o espaço livre aos concorrentes chineses e russos, evidencia o tamanho do estrago em termos dos interesses estratégicos nacionais.

*Mohammed Nadir, graduado em História pela Universidade de Rabat no Marrocos, Mestre e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pós-doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria, é professor visitante de Relações Internacionais e Oriente Médio na UFABC, pesquisador e integrante do OPEB (Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil – UFABC).

As opiniões contidas nesse artigo não refletem necessariamente a posição do Brasil de Fato

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho