Há uma década, em 18 de novembro de 2011, a então presidenta Dilma Rousseff (PT) promulgava a Lei 12.528, que instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar as violações de direitos praticadas pelo Estado entre 1946 e 1988, com foco nos 21 anos de ditadura militar. Passados 10 anos da data, sob gestão Bolsonaro (sem partido), levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) identifica 6157 militares em cargos civis do governo.
Um evento realizado no emblemático Centro Maria Antônia da USP foi feito, nesta quinta (18), para celebrar os dez anos da instituição da Comissão da Verdade, com o intuito de debater os avanços e recuos das lutas por memória e justiça. Com participação de Dilma Rousseff, o evento teve transmissão online e foi organizado por integrantes da instância paulista da Comissão da Verdade, batizada com o nome de Rubens Paiva, político desaparecido pelo regime militar em 1971.
Mediada por Adriano Diogo, geólogo e ex-parlamentar do PT que presidiu a Comissão da Verdade Rubens Paiva, a atividade contou com falas de sobreviventes da ditadura militar e comissários da CNV. Entre elas, Amélia Teles, Ivan Seixas, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso.
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"Ignorar a história não apazigua”
Diferentemente dos processos de redemocratização da Argentina e do Uruguai, o Brasil teve a Comissão da Verdade instaurada mais de 30 anos depois de aprovada a Lei da Anistia, em 1979.
Rousseff iniciou sua fala apontando que esse fato expressa o que considera uma transição tipicamente brasileira da ditadura para a democracia: “não digo só que é parcial, é mitigada: tem restrições, limites nos quais ela pode se dar. Daí que a própria Lei da Anistia, por ser recíproca, coloca uma igualdade quase inaceitável entre o poder do Estado e dos indivíduos”.
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“A verdade não abriga o ressentimento ou o ódio, mas tampouco implica o perdão”, disse a ex-presidenta, para quem “a verdade é tão somente o oposto do esquecimento. Ela é o direito de conhecer. É a capacidade que temos de contar o que aconteceu”.
Nesse sentido, emendou Dilma Rousseff, referendar a importância das comissões que investigaram as violações cometidas pelo regime militar “tem um poder saneador nesse momento”. Em sua visão, “é muito importante que lembremos o que são os governos de exceção, mesmo que aqueles produzidos por ditaduras militares e os produzidos por golpes de segunda geração sejam diferentes”.
Em sua fala, a ex-presidenta petista reafirmou que hoje se vive sob o governo de um partido militar, legitimado por atributos “absurdos” que delegam às instituições militares condições de tutela ou de poder moderador sobre o Brasil.
“Os regimes de exceção se perpetuam pela interdição do conhecimento da verdade. As consequências desse processo de encobrimento continuam”, disse Dilma Rousseff. “Ignorar a história não pacifica. Pelo contrário: mantém latente ódios, mágoas e versões que de repente emergem. A desinformação não ajuda a apaziguar, ela facilita o trânsito para a intolerância”, avaliou.
"Não conheço terrorista, quem está tocando terror aqui são vocês”
Jornalista, escritora, e ativista sobrevivente de sessões de tortura no Doi-Codi, Amelinha Teles destacou o quanto a Comissão da Verdade foi fruto da “luta incansável” de vítimas e familiares de pessoas que sofreram atrocidades durante os chamados anos de chumbo, muitas das quais já não estão mais vivas.
José Carlos Dias, advogado que durante o regime militar atuou na defesa jurídica de mais de 500 pessoas perseguidas pela ditadura e também integrante da CNV, salientou que em sua maioria, “as recomendações que deixamos não puderam ser implementadas”.
O relatório final da Comissão orienta que o Estado brasileiro responsabilize juridicamente as pessoas apontadas como responsáveis pelas violações de direitos. Além disso, sugere que seja criado um órgão do governo para dar continuidade às buscas de restos mortais de 210 pessoas que seguem desaparecidas.
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“O que vivemos hoje, dá vontade de se despedir do Brasil. Mas o Brasil não pode se despedir de nós. Então precisamos seguir. Temos que lutar para ressuscitar esse país enfermo. Ou damos um basta ou então estará tudo perdido”, afirmou Dias.
A psicanalista Maria Rita Kehl fez uma rápida explanação sobre a pesquisa que fez pela CNV das violações de direitos cometidas pelo regime militar contra camponeses e indígenas. Destacando a coragem de camponeses do Araguaia, Kehl relatou que em entrevistas feitas por ela, soube que havia uma frase de praxe que a comunidade costumava dar quando, na década de 1970, questionados por militares, não revelavam o paradeiro de guerrilheiros. “Eu não conheço nenhum terrorista, quem está tocando o terror aqui são vocês”.
Ao citar que, quando instaurada a Comissão da Verdade, uma parte da sociedade tenha manifestado uma angústia ou um desejo de não revirar as histórias da ditadura militar, Maria Rita Kehl compartilhou uma análise psicanalítica de um dos aspectos que entende fazer parte do processo político que elegeu Bolsonaro.
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“Essa pequena parte é representada pelo capitão reformado que numa audiência pública da CNV elogiou o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais violentos torturadores da época”, contou Kehl. “Essa parte da população não queria saber dessa história não por ser perversa, mas para não se angustiar. E então o eleito foi ele. A gente chamaria na psicanálise do retorno do recalcado. O pior volta. Não elaborado, mas em ato”, disse.
Resultados da Comissão Nacional da Verdade
A CNV foi um órgão temporário criado pela Lei 12.528 e encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014, com a entrega de seu relatório final. Nele, a comissão elencou 434 pessoas como mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar.
O relatório aponta 377 agentes de Estado como responsáveis por graves violações contra os direitos humanos, tais como sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, violências sexuais e ocultação de cadáveres.
Entre os agentes responsabilizados, estão o general reformado Leônidas Pires Gonçalves, que esteve à frente do Ministério do Exército durante cinco anos do governo Sarney e morreu em 2015; o delegado Romeu Tuma, que morreu em 2010 e cujo filho tem cargo no governo Bolsonaro; e o médico Harry Shibata, que em 1975 assinou o laudo médico mentindo que o jornalista Vladimir Herzog havia se suicidado.
Edição: Vinícius Segalla