Os escravizados traziam na memória os usos e os gostos de suas terras, segredos de nossos ancestrais
Quiabo, coentro, inhame, leite de coco, pimenta malagueta, noz moscada, café, gengibre, jiló, amendoim e azeite de dendê. Não importa em que lugar do país você esteja, se procurar na sua cozinha certamente vai encontrar pelo menos um desses ingredientes.
O que eles tem em comum? São uma pequena parte dos alimentos típicos de África que foram trazidos para o Brasil nos navios negreiros e hoje são fundamentais na culinária do país, provando a importância da resistência negra na nossa cultura.
E não são apenas ingredientes, mas muitas das receitas e dos modos de fazer que fazem parte do dia a dia dos brasileiros tem como origem os saberes ancestrais de africanos escravizados, em especial das mulheres. Afinal, eram elas que cozinhavam nas casas grandes a partir de seus conhecimentos tradicionais. Assim, elas introduziram na culinária brasileira receitas saboreadas em diversas regiões, como cocada, angu, cuzcuz, pamonha, quindim, mungunzá, moqueca e vatapá.
Vale lembrar que as pessoas de África escravizadas encontraram também ingredientes nativos do Brasil e modos de preparo típicos da Europa e de diferentes etnias indígenas. Elas souberam incorporar esses sabores e aprimorar receitas, conquistando diferentes paladares e dando origem a chamada gastronomia afro-brasileira.
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“No lugar o inhame começaram a usar mandioca, para substituir o sargo passaram a usar o milho, para compensar algumas faltas de pimentas, começaram a utilizar condimentos que já tinham no Brasil”, exemplifica o chefe de cozinha Marcelo Reis, que se dedica a culinária afro-brasileira. “Os negros observaram os pratos preparados pelos indígenas, como o pirão, a moqueca e o bobó e os enriqueceram com produtos africanos, como o leite de coco. Eles também entraram em contato com os animais criados pelos colonizadores e assim surgiram receitas como vatapá, o sarapatel o xinxim de galinha. Se os traficantes de escravos traziam ingredientes, os escravizados traziam na memória os usos e os gostos de suas terras, segredos de nossos ancestrais.”
Parte importante da gastronomia afro-brasileira tem origem nos terreiros de candomblé, criados como as chamadas comidas de santo, que eram entregues a entidades espirituais como oferendas. É o caso do famoso acarajé, tombado como patrimônio cultural do Brasil. Ele começou a ser vendido em tabuleiros, em Salvador, por mulheres negras alforriadas e hoje é o carro-chefe da culinária baiana, ao lado do vatapá, do caruru e do abará.
Quem apendeu a cozinhar nos terreiros é cozinheira Solange Borges, de Camaçari, na Bahia, que é filha e neta de baianas de tabuleiro, que vendiam alimentos típicos da cultura afro-brasileira pelas ruas das cidades. “O povo de terreiro, no qual eu me incluo, e os terreiros são responsáveis por savalguardar este patrimônio que é a culinária afro-brasileira. Um dos exemplos mais incríveis é o caruru de Cosme e Damião. O quiabo é da descendência, é um alimento que a gente trouxe para a mesa. Mesmo sempre santos católicos, com o sincretismo a gente fez essa comemoração, que é uma oportunidade de homenagear os inquices como um todo.”
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Hoje, Solange trabalha no projeto Culinária de Terreiro, fundado por ela mesma, que tem o objetivo de preservar e valorizar os alimentos típicos da culinária afro-brasileira. Ela mesma produz a farinha de mandioca e o dendê-de-pilão que usa nas receitas, ambos feitos no fogão a lenha.
“Minha mãe era condomblecista e eu com seis anos frequentava os terreiros. Eu vi essa efervescência que é a cozinha, esse ambiente colorido, festivo, alegre, de muita afetividade, com muitos cheiros e afetos. A gente foi aprendeu nesse espaço sem nem perceber que estavam passando informações, era tipo uma brincadeira”, lembra.
Mas, sem dúvida, um dos pratos mais típicos da culinária afro-brasileira é a famosa feijoada, um símbolo da gastronomia nacional. Com diferentes versões, que variam de opções vegetarias àquelas apenas carnes nobres, o prato é tradicionalmente um cozido de feijão com carne de porco, que acompanha arroz, farofa de mandioca, couve, fatias de laranja e pimenta.
Ela é servida em geral às quartas e sábados nos restaurantes do país, mas cada família tem sua receita, desenvolvida a partir de sabores e saberes africanos, como lembra do chefe Marcelo Reis. “São receitas que não só alimentam os Orixás mas também minha essência. É todo um receituário que faz do comer uma ancestralidade que vem do meu povo, que foi escravizado.”
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Assim, a resistência negra se faz presente diariamente na mesa dos brasileiros, como um símbolo de luta por justiça social e como marca da formação da cultura brasileira.
Edição: Letícia Viola